50.50: Investigation

Os principais defensores do ensino doméstico nos EUA dizem que os pais têm ‘direito’ a infligir dor

O movimento norte-americano de ensino doméstico tem também ligações a grupos que se opõem aos direitos das mulheres e LGBTQ+

Diana Cariboni
Diana Cariboni
22 Julho 2022, 3.33
Ilustração: Inge Snip

Grupos de extrema-direita norte-americanos defensores do ensino doméstico para cristãos estão a promover o espancamento e têm travado, igualmente, guerras contra os direitos das mulheres e LGBTIQ a nível internacional, descobriu a investigação da openDemocracy e da Agência Pública.

O grupo mais influente do ensino doméstico, a Home School Legal Defense Association (HSLDA), fundado em 1983, é um conhecido fomentador de espancamentos. Tem-se oposto também à contraceção, ao aborto e ao casamento entre pessoas do mesmo sexo e, em 2004, chegou a propor uma emenda constitucional para proibir a igualdade de direitos matrimoniais.

Os grupos aliados da HSLDA, a Alliance Defending Freedom (ADF) e a Focus on the Family, têm agendas semelhantes. E todos lançaram campanhas para levar estas causas além-fronteiras, em parceria, por exemplo, com a World Congress of Families – uma plataforma de grupos internacionais que se opõem à igualdade de direitos para as pessoas LGBTQ+.

A HSLDA é também uma aliada de alguns grupos conservadores e defensores do ensino doméstico mais influentes do Brasil. O país sul-americano está prestes a legalizar a educação domiciliária.

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Direitos parentais por oposição aos direitos das crianças

Os Estados Unidos são o único país do mundo que não ratificou a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança (que entrou em vigor em 1990). Os EUA são também um refúgio para o ensino doméstico, que foi legalizado nos 50 estados em 1993, mas permanece em grande parte não regulamentado. A HSLDA reclama os louros de ambas as situações.

A Convenção da ONU diz que os pais devem ajudar as crianças a ganhar consciência dos seus próprios direitos e estabelece quatro princípios fundamentais: a não-discriminação, o interesse superior da criança, o direito à sobrevivência e ao desenvolvimento e o direito de exprimir os seus próprios pontos de vista.

“Se as crianças têm direitos, podem recusar-se a ser educadas em casa”, defende o antigo advogado principal da HSLDA, Chris Klicka. “Além disso, retira aos pais o direito de disciplinar fisicamente os seus filhos.”

Sou um crente convicto – atrevo-me a dizê-lo – do espancamento

Michael Farris, fundador da HSLDA e presidente da ADF

O fundador da associação HSLDA, Michael Farris, explicou em pormenor por que e como acredita que as crianças devem ser espancadas no seu livro 'How a Man Prepares His Daughter for Life' (‘Como um Homem Prepara a Filha para a Vida’). "Sou um crente convicto – atrevo-me a dizê-lo – do espancamento", escreveu. "Quando as crianças são pequenas, espancarei qualquer dos sexos por desobediência deliberada a uma regra que lhes tenha sido ensinada."

Farris sugere que os pais usem as mãos ou um "pequeno objeto de madeira como uma colher", com moderação, e "apenas no rabo (…) vai enfrentar acusações de abuso infantil se alguma vez bater a uma criança na cara ou na cabeça".

A HSLDA vê os serviços de protecção infantil como uma "ameaça" para as famílias que optem pelo ensino doméstico.

No documento da HSLDA ‘The Social Worker At Your Door: 10 Helpful Hints’ (‘O Assistente Social à Sua Porta: 10 Dicas Úteis’), Chris Klicka aconselha os pais a "evitar situações potenciais que possam levar a uma investigação do bem-estar das crianças". Por exemplo: "Não espanque crianças em público (...) Não espanque o filho de outra pessoa, a menos que sejam amigos cristãos próximos".

"A HSLDA acredita muito firmemente na ideia de que os pais têm direitos universais de serem pais dos seus filhos como acham que devem ser”, disse à openDemocracy Ryan Stollar, um norte-americano ex-aluno do ensino doméstico e defensor das crianças e sobreviventes de abusos. “E o castigo corporal é provavelmente um dos principais direitos parentais em que a HSLDA mais se foca.”

Stollar referiu ainda que os castigos corporais eram "generalizados" entre as comunidades evangélicas de ensino doméstico nos EUA.

Mas, como a maioria dos estados americanos desregulamentou o ensino doméstico, é quase impossível obter números exactos.

À medida que as primeiras gerações de crianças educadas em casa se tornaram adultas, começaram a contar as suas histórias através de blogs e páginas de Facebook. Ex-alunos do ensino doméstico defendem reformas legais e melhores práticas centradas nos direitos das crianças; e houve artigos a expor casos de negligência, abuso e morte.

Uma base de dados criada em 2013, a Homeschooling's Invisible Children, "visa catalogar todos os casos conhecidos de crimes contra crianças que tenham ocorrido num contexto de ensino doméstico". A lista é comedida.

"Nos Estados Unidos, o ensino doméstico protege frequentemente os pais abusivos de escrutínio e, em consequência, as crianças sofrem. Permite também que os pais ensinem aos seus filhos ideologia extremista sem qualquer objeção", explicou a ex-aluna e sobrevivente de abusos norte-americana Jerusha Lofland à openDemocracy.

Lofland não é contra o ensino doméstico, uma vez que ela própria educou os seus filhos em casa. Há situações "em que a educação doméstica pode estar no melhor interesse da criança". Mas, acrescentou, "as crianças educadas em casa estão sujeitas a um maior risco porque estão isoladas dos seus pares e de outros adultos ".

Num blog onde publica relatos críticos da sua educação numa família extremamente religiosa, Lofland escreveu: "As crianças mais novas eram espancadas quase diariamente por infrações tão pequenas como não rezar antes das refeições, como lhes era ordenado. Eu era uma jovem de 13 anos quando recebi a minha última palmada – deitada sobre o colo do meu pai, a usar a saia de lã que a minha mãe me tinha passado do seu guarda-roupa. Como sempre, o castigo (bater com uma colher de pau) era pela minha «atitude» em relação a uma tarefa atribuída".

Referências a instrumentos de espancar – varas, pás e, particularmente, colheres de pau – são frequentes nos livros de "disciplina bíblica" dos Estados Unidos e estão enraizadas na cultura popular.

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ilustração: Inge Snip

A HSLDA afirma ter 100 mil famílias como membros e estima que há mais de oito milhões de estudantes a frequentar o ensino doméstico nos EUA.

De acordo com um inquérito recente da Agência dos Censos norte-americana, 11% das crianças em idade escolar encontram-se em ensino doméstico. Ryan Stollar considera que o número inclui comunidades tanto progressistas como seculares. “A grande maioria, cerca de 90%, são cristãos evangélicos", refere.

A pandemia do coronavírus foi um grande impulsionador do sector. Mas, segundo Stollar, o ensino doméstico está a crescer também como consequência do "pânico moral da direita perante o facto de a teoria crítica da raça e a educação sexual e de género estarem a ser ensinadas nas escolas públicas".

Uma peça do puzzle ultra-conservador

Michael Farris, que ainda preside à direcção da HSLDA, foi nomeado em 2017 presidente e CEO da Alliance Defending Freedom, a influente organização jurídica cristã envolvida em campanhas contra os direitos do aborto e da população LGBTIQ nos Estados Unidos e no estrangeiro.

A ADF litigou casos de ensino doméstico nos EUA, na Alemanha, na Suécia e no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem. Um dos seus fundadores é James Dobson, psicólogo e autor de vários livros best-sellers ('Dare to Discipline' [‘Ousar Disciplinar’], 'The Strong-Willed Child' [‘A Criança de Vontade Forte’]), que defendem vigorosamente o castigo corporal.

Dobson criou a organização fundamentalista cristã Focus on the Family (Foco na Família) em 1977, e desde então tem desempenhado um papel importante na promoção do ensino doméstico através do seu programa de rádio. (Uma investigação da openDemocracy no ano passado expôs o envolvimento da Focus on the Family em atividades de “terapia de conversão” anti-LGBTIQ nos Estados Unidos e na Costa Rica).

A ADF, a HSLDA, a Focus on the Family e a Classical Conversations (um programa de ensino doméstico cristão americano também introduzido no Brasil, Canadá, Chile, México, Filipinas, Rússia, África do Sul e Reino Unido) têm sido parceiras da World Congress of Families, considerado um "grupo de ódio" pela US Southern Poverty Law Center.

Mas os estudantes cristãos fundamentalistas de ensino doméstico dos EUA têm também procurado novas formas de ligação com conservadores além-fronteiras. A HSLDA estabeleceu a Global Home Education Exchange (GHEX) em 2012 como uma plataforma para as suas atividades internacionais.

O Brasil, governado desde 2019 pelo presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro, vem atraindo há muito o interesse destas organizações norte-americanas.

Mike Donnelly, diretor de relações internacionais da HSLDA e secretário da GHEX, viajou para o Brasil no ano passado, convidado pela Associação Nacional de Educação Domiciliar (ANED) e "comprometeu-se a trabalhar em estreita colaboração com a associação brasileira, fornecendo aconselhamento, encorajamento e apoio financeiro".

Dois meses mais tarde, Donnelly falou numa audiência pública no Congresso brasileiro, argumentando a favor de uma atitude menos severa para regulamentar a educação em casa. E a direção da GHEX enviou cartas aos líderes do Congresso, instando-os a legalizar o ensino doméstico (pensa-se que cerca de 0,03% das crianças brasileiras em idade escolar são hoje educadas, ilegalmente, desta forma). Os lobistas e defensores da educação em casa brasileiros estão igualmente a promover o castigo corporal como meio de educação das crianças, segundo a nossa investigação também apurou.

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Connelly e Alexandre Magno Moreira (um educador doméstico brasileiro que redigiu um curso a explicar aos pais como espancar as crianças sem infringir a lei) foram co-autores de um documento da GHEX que utiliza a linguagem internacional dos direitos humanos para declarar os direitos parentais e o ensino doméstico como "direitos fundamentais".

A liderança da GHEX tem uma teia de ligações ultra-conservadoras. O membro da direção Alexey Komov é também o representante da World Congress of Families na Rússia e faz parte da direção da plataforma online CitizenGo, com sede em Madrid, conhecida pelos seus ataques contra pessoas LGBTIQ. Komov ajudou a financiar a CitizenGo, pedindo dinheiro a Konstantin Malofeyev e a outros oligarcas russos.

Komov e a esposa Irina Shamolina dirigem a Classical Conversations na Rússia, onde se vendem guias com o método de ensino doméstico que remonta à Idade Média.

"A HSLDA e a GHEX estão a exportar proativa e extensivamente tudo o que fazem nos Estados Unidos”, explica Ryan Stollar. “Elas tentam criar um mundo em que existe hierarquia e estruturas de poder apenas nas mãos daqueles que se parecem, pensam e acreditam como eles.”

Numa resposta por escrito, o vice-presidente e chefe do departamento de comunicação da Focus on the Family, Paul Batura, disse que James Dobson "saiu da organização há mais de 12 anos" e remeteu-nos para a posição oficial do grupo sobre espancamento.

"Quando usado corretamente, com pouca frequência e como uma das muitas formas de disciplina, o espancamento tem sido um fator comum em crianças com auto-motivação, empatia, moralidade e caráter bem desenvolvidos", diz o documento. O mesmo sugere também a sua utilização "muito pouco frequente (...) com propósito, cautela e, mais importante, amor".

A HSLDA, a GHEX e a ADF não responderam aos nossos pedidos de comentário.

Traducçaõ Claudia Marques Santos.

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