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A ditadura brasileira me sequestrou quando bebê, e eu continuo sem respostas

Para muitos brasileiros hoje, a ditadura é vista como algo que deve ser comemorada. A história de Rosângela nos obriga a nunca esquecer. Español English

Beverly Goldberg
9 Abril 2019, 12.01
Rosângela com seus pais adotivos.

Rosângela Paraná sentiu um calafrio percorrer seu corpo ao ver que os cartazes dos manifestantes diziam: "Parabéns, militares. Graças a você, o Brasil não é Cuba”, ou "Não foi golpe, foi uma revolta popular".

Para Rosângela, e para muitos outros brasileiros vítimas da ditadura militar - especialmente os mais de 20.000 que foram torturados e os familiares dos 434 assassinados e desaparecidos - as manifestações a favor da ditadura são um lembrete assustador de que os fantasmas do passado nunca nos deixaram.

Rosângela revive sua história, temendo o que o Brasil se tornou: "Hoje sou uma pessoa ainda mais incompleta e infeliz, mas isso não é novidade para mim. Nunca vou entender a maldade humana". Ela foi sequestrada quando bebê e adotada ilegalmente por uma família militar em 1963. Seu pai adotivo falsificou sua certidão de nascimento e nunca revelou nada sobre seus pais biológicos.

Ela é um dos 19 casos que vieram à tona recentemente, graças ao trabalho de investigação do jornalista brasileiro Eduardo Reina. Seu livro Cativeiro sem fim relata o sequestro de bebês e crianças, filhos de ativistas de esquerda, que foram posteriormente adotados ilegalmente por famílias de militares. Só agora, em 2019, 34 anos após o fim da ditadura, essas histórias estão sendo relatadas.

"Se não fosse pela confissão, tenho absoluta certeza que eles não teriam me dito nada"

Rosângela acumula muitas lembranças de uma infância infeliz, onde sofreu abusos de todos os tipos nas mãos de sua família adotiva. "Minha mais longa lembrança é de uma menina que vivia de cabeça raspada, sempre ‘pulando’ de colégios e com a rotina de sempre estar mudando. Lembro que era me dado um remédio todos os dias que me fazia dormir a maior parte do dia... A casa que eu vivi sempre estava cheio de pessoas jogando, bebendo e fumando... em festas dadas tinha algum homem adulto tentando abusar de mim”.

As revelações de Rosângela abrem a preocupante possibilidade da existência de muitos mais casos de bebês sequestrados durante a ditadura, além dos 19 recentemente revelados.

"Perto do dia primeiro de outubro de 2013, uma ‘prima’, pessoa que nunca conheci pessoalmente, revelou no meu Facebook que eu tinha que ser grata a família Paraná que me ‘pegou’ da minha mãe... Liguei para uma segunda ‘tia’ e essa de forma agressiva disparou a verdade. Disse que eu não era realmente filha de seu irmão, que o pai forjou a minha certidão e que primeiro de outubro não era a data do meu aniversário e sim o dela e que todos os dados tinham sido forjados”. Esta informação foi logo confirmada por Eduardo Reina, quem conseguiu localizar a certidão de nascimento original que declarava que Rosângela era a "filha ilegítima" dos Paraná.

Se não fosse pela confissão da “prima”, Rosângela tem certeza que a família adotiva nunca teria dito nada. "Eu fui criada para não ver, não ouvir e nem falar", diz ela sobre seu passado. As revelações de Rosângela abrem a preocupante possibilidade da existência de muitos mais casos de bebês sequestrados durante a ditadura, além dos 19 recentemente revelados.

Muitos não conhecem suas verdadeiras origens devido às estruturas de poder que, com grande sucesso, conseguiram escondê-las.

Rosângela Paraná_Certidão de nascimento
Certidão de nacimiento falsificado de Rosângela.

Como chegamos a esse ponto?

O retorno de manifestações a favor da ditadura como as que vimos recentemente revela que em 55 anos aprendemos muito pouco. O apoio popular a essa forma de repressão é evidente nas ruas do Brasil, exemplificado por uma mulher que recentemente atacou um manifestante anti-ditadura com spray de pimenta. Mais preocupante é o fato revelado em 2017 pelo Instituto Paraná de Pesquisas: 43,1% dos brasileiros apoiariam uma intervenção militar provisória, enquanto apenas 51,6% seriam contra e 5,3% estão indecisos.

Estes números não surpreendem se consideramos que o homem mais poderoso do país é um revisionista e nostálgico da ditadura militar. Jair Bolsonaro, ex-militar e conhecido por seu comportamento fascista, deixou clara sua posição sobre a ditadura em um discurso recente de seu porta-voz.

“O presidente não considera o 31 de março de 1964 golpe militar. Ele considera que a sociedade, reunida e percebendo o perigo que o país estava vivenciando naquele momento, juntaram-se civis e militares” para recuperar o rumo do país. Para Bolsonaro, o dia 31 de março é um dia de comemoração, por isso ordenou que o Ministério da Defesa organizasse uma cerimônia oficial em homenagem ao golpe militar.

Mas como chegamos ao ponto em que a memória histórica do período do mando militar está tão danificada que tantos brasileiros comemoram abertamente a ditadura nas ruas? Para entender o presente é preciso sempre olhar para o passado. No Brasil, nunca houve justiça de transição após o fim da ditadura, como existiu na Argentina, mesmo que de forma imperfeita.

Devido às restrições da Lei da Anistia, apenas informações limitadas sobre os fatos foram reveladas.

Na Argentina, o presidente Raúl Alfonsín conseguiu capitalizar um sentimento anti-ditadura na sociedade e destacou a necessidade de investigar e julgar os crimes cometidos durante esses governos e os seus responsáveis quando ele foi eleito em 1983 durante a transição. Ele aboliu a Lei da Anistia aprovada anteriormente, encarregou-se de julgar as juntas militares e criou a Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (CONADEP) para investigar os casos, publicando os resultados um ano depois através do livro Nunca mais.

Em contraste, a transição brasileira tomou um rumo muito diferente. A Lei da Anistia de 1979, perdoou todos os crimes com supostos motivos políticos durante o período militar, e até hoje, a Justiça de Transição do Ministério Público só foi capaz de investigar certos casos famosos, como o do jornalista Vladmir Herzog, deixando no escuro a verdade sobre o que realmente aconteceu entre 1964 e 1985. Devido às restrições da Lei da Anistia, apenas informações limitadas sobre os fatos foram reveladas e apenas um pequeno grupo de famílias que foram vítimas de crimes da ditadura receberam reparação financeira.

Não há dúvida de que o apologismo da ditadura que existe hoje no Brasil tem a ver com o exercício de esquecimento a que o país foi submetido durante a transição pelas elites militares que conservaram muito poder nas mesas de negociação em 85.

Histórias como a de Rosângela, que relatam sequestros de bebês e subsequente adoção ilegal por famílias de militares, só estão vindo à tona agora porque as instituições democráticas do Brasil não foram capazes de derrotar uma lei que agora o atual presidente do país agora defende.

Pai adotivo Rosângela Paraná
Pai adotivo de Rosângela com colegas militares

Somente o trabalho incansável de defensores de direitos humanos e jornalistas como Reina conseguiu trazer esses fatos à tona.

No entanto, parece que nesse momento é mais perigoso do que nunca falar contra os interesses das elites que governam o país. A família do presidente Bolsonaro, segundo pesquisas recentes, parece ter fortes ligações com o assassinato de Marielle Franco.

Isso demonstra que ele está disposto, junto com seus poderosos aliados, a silenciar aqueles que se manifestam contra os valores que afirmam defender: militarismo, supremacia branca, evangelismo ultraconservador e capitalismo neoliberal em sua forma mais implacável.

Não podemos deixar Rosângela cair no esquecimento, como tantas outras vítimas da ditadura brasileira. Opiniões que sugerem que a ditadura brasileira foi uma “ditamole” em comparação com as outras da América do Sul foram e continuam a ser amplamente divulgadas na mídia brasileira, e esse perigoso discurso silencia as histórias daqueles que realmente sofreram violência brutal durante a ditadura militar.

Até hoje, Rosângela ainda não sabe a verdade sobre quem eram seus pais biológicos. Ela só conseguiu que seu irmão adotivo, que também tentou abusar dela várias vezes, lhe dissesse que sua "mãe biológica era muito bonita" e que seu "pai estava preso" na época da adoção.

Rosângela, e muitos outros como ela, não viverão em paz até que os crimes indiscutíveis daquele regime político brutal que foi a ditadura brasileira sejam investigados de forma adequada e abrangente, abrindo a possibilidade de prender os responsáveis pela violação dos direitos humanos que continuam sem punição hoje.

Apenas a verdade cura. Se o que realmente aconteceu não for revelado e os responsáveis trazidos a justiça, o tecido social da sociedade brasileira sempre será marcado pelas feridas causadas por um trauma terrível, que não conseguirá cicatrizar completamente.

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