
Grupos europeus apoiaram a criminalização do aborto em El Salvador – e perderam
Em um caso na CIDH, grupos de direita da Europa apoiaram a perseguição legal de mulheres que sofrem emergências obstétricas



Grupos europeus de direita apoiaram o governo de El Salvador em ação contra o país que contestou a prisão de uma mulher por sofrer um aborto espontâneo. Mas eles perderam.
Um dos grupos era o European Centre for Law and Justice (ECLJ), uma filial do ultraconservador American Center for Law and Justice (ACLJ), liderado pelo ex-advogado pessoal de Donald Trump, Jay Sekulow.
O caso foi levado à Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em nome de uma mulher que foi presa por “homicídio qualificado” após sofrer um aborto espontâneo.
O governo de El Salvador, onde o aborto é ilegal em todas as circunstâncias, violou vários direitos desta mulher, que morreu de câncer enquanto cumpria uma pena de 30 anos, disse a CIDH em uma decisão publicada este mês.
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O ECLJ apresentou argumentos legais em apoio a El Salvador como um "amigo do tribunal" (também chamado de amici curiae), argumentando que o caso se tratava de “aborto e infanticídio”.
Alejandra Cárdenas, do Center for Reproductive Rights (CRR), que assumiu o caso da mulher há quase uma década, disse ao openDemocracy que “este grupo nunca antes havia entrado com um pedido de amicus” na CIDH.
Outro conjunto de amicus em apoio a El Salvador foi apresentado por três dezenas de grupos conservadores de três continentes, incluindo o Ordo Iuris Institute for Legal Culture (Polônia), a Fondation Jérôme Lejeune e Juristes pour l'Enfance (ambos da França), a Federação de Associações de Famílias Católicas na Europa (com sede na Bélgica) e Project for Human Development (da Nigéria).
Esses grupos engajados em nome de El Salvador 'revelam uma crueldade interna e fanatismo que eles nunca ousariam mostrar na Europa'
Para Irene Donadio, da organização de direitos reprodutivos International Planned Parenthood Federation, o envolvimento de grupos conservadores europeus não foi uma surpresa.
“El Salvador é o sonho de consumo dos agressores dos direitos reprodutivos. É algo que eles esperam imitar nos Estados Unidos e na Europa. É por isso que defendem o país com todo o seu arsenal bem financiado de advogados e lobistas”, disse ela.
Donadio citou um projeto de lei discutido este mês pelo parlamento polonês que buscava impor longas penas de prisão para mulheres que realizam aborto. Foi rejeitado por uma maioria esmagadora.
“Esse projeto de lei foi copiado de El Salvador, que tem uma das leis mais cruéis contra as mulheres”, disse ela.
Neil Datta, secretário do Fórum Parlamentar Europeu para os Direitos Sexuais e Reprodutivos, disse que grupos engajados em nome deste pequeno país centro-americano “revelam uma crueldade interna e fanatismo que eles nunca ousariam mostrar na Europa”.
“Eles preferem prender mulheres salvadorenhas por aborto espontâneo em vez de admitir que o aborto pode ser necessário. Esta é uma posição muito distante da mentalidade da grande maioria dos religiosos na Europa”, acrescentou.
Apoio de grupos dos EUA
Quinze grupos de direita cristã e antiaborto dos Estados Unidos também assinaram o segundo conjunto de documentos em apoio a El Salvador, incluindo a International Organization for the Family – organizadora do Congresso Mundial de Famílias, uma rede global de ativistas dos EUA, Rússia e outros ultraconservadores – bem como o Family Watch International e o World Youth Alliance.
Oito grupos conservadores latino-americanos também estiveram envolvidos, embora apenas um tenha sede em El Salvador: a filial local da organização americana anti-aborto Human Life International, que fez campanha pela proibição absoluta do aborto introduzida no país em 1999 .
De acordo com Cárdenas do CRR, eles estavam “buscando uma vitória da opinião pública através da distorção do caso para argumentar que queremos descriminalizar o infanticídio”.
A CIDH declarou El Salvador “internacionalmente responsável por [...] violações da liberdade pessoal, garantias judiciais, igualdade perante a lei, direito à vida, integridade pessoal, vida privada e saúde” de 'Manuela' – nome fictício usado para proteger a identidade da vítima.
O tribunal ordenou que o governo indenizasse os filhos da mulher, assumisse publicamente a responsabilidade pelo caso e reformulasse as políticas e os protocolos de saúde para evitar a criminalização das emergências obstétricas.
História de Manuela
Manuela, uma mulher rural pobre e analfabeta, sofreu uma emergência obstétrica em casa em 2008. Com dores e sangrando forte, deu à luz um filho natimorto e logo desmaiou.
Quando ela acordou no hospital, a equipe médica a denunciou à polícia. Ela passou oito dias algemada a uma cama de hospital antes de ser transportada para a prisão. Manuela foi acusada de infanticídio, apesar das inconsistências em seus registros médicos, e teve defesa legal adequada negada.
Desde 2006, Manuela procurava cuidados de saúde devido a uma doença. O diagnóstico veio apenas quando estava na prisão. Mas seu câncer (linfoma de Hodgkin) nunca foi tratado adequadamente. Ela morreu em 2010, aos 33 anos, enquanto cumpria uma pena de prisão de 30 anos. Ela deixou dois filhos.
Susana Chávez, do Consórcio Latino-Americano contra o Aborto Inseguro, disse: “Desmantelar os direitos que trouxeram dignidade e mudaram as vidas das pessoas para melhor não é incidental. Tudo faz sentido quando olhamos para os recursos mobilizados em nossos países para distorcer as leis e retroceder o pouco progresso que foi feito.”
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Criminalização do serviço de saúde reprodutiva
Desde que El Salvador impôs a proibição total do aborto em 1999, mais de 180 mulheres que interromperam a gravidez ou sofreram outras emergências obstétricas foram indiciadas por aborto ou homicídio, com penas de prisão que variam de 30 a 50 anos, de acordo com o CRR.
A maioria dessas mulheres tem baixa ou nenhuma renda, vive em áreas rurais ou urbanas marginalizadas e tem baixa escolaridade. “Muitas vezes são denunciadas pela equipe de saúde” quando procuram ajuda, observou a CIDH em sua decisão.
Em El Salvador prevalece a “negação absoluta e a criminalização dos serviços de saúde reprodutiva”, afirmou a Colectiva Feminista para el Desarrollo Local (Coletivo Feminista para o Desenvolvimento Local) e a Agrupación Ciudadana por la Despenalización del Aborto (Grupo de Cidadãos pela Descriminalização do Aborto), dois grupos salvadorenhos pelos direitos das mulheres e autores do caso de Manuela.
O fato de grupos de extrema direita de três continentes terem se envolvido no caso Manuela x El Salvador destaca a importância do resultado dentro e fora do país, disse Cárdenas.
“Eles sabiam que, se vencêssemos, seria uma vitória relevante pelo direito ao sigilo médico e pelo direito a cuidados de saúde reprodutiva durante a gravidez, o que teria permitido a Manuela detectar sua gravidez, seu câncer e os riscos associados”, afirmou.
Além disso, a decisão do tribunal abrirá um precedente legal para outros países da região.
O grupo de Sekulow, o ACLJ, está entre sete grupos conservadores que lutam ativamente contra o direito ao aborto nos EUA e que gastaram pelo menos US$ 28 milhões no exterior de 2016 a 2019, como o openDemocracy revelou.
O grupo gastou US$ 5,7 milhões nesse período, a maior parte na Europa. E seu braço europeu, o ECLJ, interveio em dezenas de processos judiciais europeus contra os direitos sexuais e reprodutivos.
No ano passado, o tribunal constitucional da Polônia votou pela proibição do aborto em casos de defeitos fetais. O ACLJ apresentou argumentos a favor das novas restrições, que foram condenadas pelo Conselho da Europa como uma grave “violação dos direitos humanos”.
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