
É hora de descolonizar nosso sistema multilateral de justiça climática
A COP26 expôs a necessidade de centralizar sabedorias indígenas e práticas regenerativas das comunidades mais afetadas

“Estamos lutando por um futuro que não seja tomado pela ansiedade e medo de que outro Haiyan possa chegar a qualquer momento”, disse Marinel Ubaido, sobrevivente do tufão Haiyan, que atingiu as Filipinas em novembro de 2013, no painel final da COP26 em Glasgow, em novembro de 2021. “Não merecemos viver com medo. Merecemos um futuro promissor. Exigimos ação urgente.”
Ubaido, assim como a maioria dos que menos contribuíram para a crise climática, mas que sofrem suas piores consequências, foi ignorado pelos países mais ricos que ditaram os parâmetros da conferência.
O desequilíbrio de poder no cerne dos fracassos da COP26 pode ser visto nas práticas mundanas de participar da própria conferência. Muitos delegados dos países mais vulneráveis à crise climática não puderam ir à conferência. Sem acesso à vacinas contra a Covid-19, os pequenos estados insulares ficaram de fora. Enquanto aqueles que estão na linha de frente da crise foram excluídos, pelo menos 503 lobistas de combustíveis fósseis de alguns dos maiores gigantes de petróleo e gás do mundo tiveram acesso às negociações.
Outros desafios incluem a falta de instalações disponíveis para testes de Covid-19; restrições de acesso aos santuários internos do espaço de negociação; espaços limitados de observadores da sociedade civil para examinar textos emergentes; e uma ausência de influência nos corredores, onde ativistas costumavam ter alguma oportunidade de revisar potenciais propostas de políticas. As medidas de segurança da Covid-19 serviram de proxy útil para estreitar a mesa de tomada de decisão e invizibilizar o processo.
Essas dinâmicas não aconteceram por mera coincidência. Elas foram o resultado lógico de um sistema multilateral – que inclui instituições como as Nações Unidas, Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional – cuja natureza é fundamentalmente colonial. A dinâmica é regida por uma lógica de extração, privatização e exploração racializada, que gerau um sistema de conhecimento onde categorias, métricas e análises são produzidas por aqueles que estão no poder. Como consequência, os modos de ver e conhecer coloniais constituem a evidência e a análise que definem as soluções, todas construídas para sustentar a visão de que as nações mais ricas à frente do sistema multilateral cuidam e podem ser encarregadas de resolver a crise.
A falácia da ambição 'net-zero'
A colonialidade da abordagem multilateral da crise climática ficou mais evidente na pedra angular do Pacto de Glasgow: a proposta de buscar o “net-zero até 2050” para atingir a meta de 1,5°C. Net-zero significa que, em vez de realmente diminuir as emissões de carbono, aqueles que podem pagar podem compensá-las por meio de esquemas de comércio de emissões.
Os negociadores do Sul Global, como o negociador-chefe da Bolívia, Diego Pacheco, argumentaram que a proposta net-zero é uma solução falsa para permitir uma “grande fuga” das responsabilidades dos países ricos de realmente reduzir as emissões de carbono. Alguns ativistas da justiça climática também resistiram ferozmente à proposta, argumentando que a "net" em "net-zero" atrasa e dribla a diminuição de emissões de carbono, permitindo que os negócios de sempre floresçam por meio de combustíveis fósseis e agricultura industrial. Também argumentaram que poderia levar a grilagem de terras que desapropriam agricultores, comunidades rurais e indígenas.

“O net-zero é um novo conjunto de regras impostas pelo Norte, criando um colonialismo de carbono. Rejeitamos a narrativa de que o mercado é a solução. Queremos nos concentrar no fortalecimento da cooperação direta dos países desenvolvidos com os países em desenvolvimento", disse Pacheco durante as negociações em Glasgow. “Eles não querem discutir perdas e danos, apenas mitigação por meio de florestas que servirão de instrumento para créditos de carbono e efetivamente transferirão as responsabilidades históricas do mundo desenvolvido para o mundo em desenvolvimento”, concluiu.
A política net-zero, que permite que os países ricos continuem poluindo às custas dos demais, não poderia ser concebível sem ignorar o que nos trouxe até aqui.
O contexto histórico do espaço de carbono de 1751 a 2017 mostra que os EUA geraram 29% das emissões cumulativas de carbono. A UE (incluindo o Reino Unido) gerou 22%, China 12,7%, Rússia 6%, África 3% (dos quais a África do Sul é responsável por 1,3%), Japão 4%, Índia 3%, Brasil 0,9% e Indonésia 0,8%. Pequenas nações insulares, cujas comunidades sofrem desastres climáticos extremos regularmente, geraram tão pouco que suas emissões são insignificantes no esquema global. Esses números não deixam dúvida: o Norte Global é responsável por ocupar quase metade do espaço global de carbono, enquanto possui menos de 20% da população mundial.

Perdas e danos
O financiamento climático pode ser direcionado para três tipos de ação climática: mitigação, que reduz as emissões de gases de efeito estufa; adaptação, que ajuda as comunidades a se adaptarem às mudanças climáticas; e compensação por perdas e danos.
O Pacto de Glasgow mostra viés explícito para a mitigação, em vez de responder ao que já está acontecendo: impactos na segurança alimentar, meios de subsistência, economias (adaptação) e devastações climáticas em regiões vulneráveis que não têm as várias formas de capacidade para responder e restaurar (perda e dano).
Os países ricos não cumpriram a meta do Acordo Climático de Paris de 2015 de canalizar US$ 100 bilhões a cada ano para as nações pobres até 2020, em um esforço de ajudá-las a se adaptar às mudanças climáticas. A maior parte dos fundos, que a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico estimou em quase US$ 80 bilhões em 2019 (acima dos US$ 78 bilhões em 2018), foi canalizada para projetos de mitigação em países de renda média que prometem retornos aos investidores – como financiamento privado para investimentos em energia solar e eólica na Índia.
Enquanto isso, em Moçambique, uma das nações africanas mais vulneráveis às mudanças climáticas, o governo ainda depende de ajuda e caridade para financiar o trabalho de adaptação, com a maioria das pessoas em regiões vulneráveis a ciclones vivendo em casas com telhados fixados por tijolos.
Enquanto a pandemia gerou trilhões dos países ricos, a crise climática não consegue fazer girar a máquina de dinheiro do Norte
Países poderosos também costumam contar duplamente a ajuda ao desenvolvimento como financiamento climático ou rotular projetos de desenvolvimento aleatórios como "relevantes para o clima". Em 2015, o Ministério das Finanças da Índia contestou a estimativa da OCDE de que US$ 62 bilhões foram dados em forma de financiamento climático em 2014, afirmando que o valor real seria de US$ 1 bilhão. Dada a alta parcela de emissões e riqueza históricas de carbono, o World Resources Institute (Instituto de Recursos Mundiais) estima que os EUA são responsáveis por cerca de 45%, ou US$ 45 bilhões, dos US$ 100 bilhões do Fundo Verde para o Clima. Mas sua contribuição média anual de 2016 a 2018 foi de apenas US$ 7,6 bilhões.
Desde a assinatura do Acordo de Paris, o bloco de 134 países em desenvolvimento, chamado Grupo dos 77 (G77), vem pedindo “uma provisão obrigatória” de financiamento climático para um Fundo de Adaptação. Em Glasgow, os EUA bloquearam essa demanda, reduzindo a linguagem a apenas incentivos aos países ricos para contribuírem com recursos de adaptação, ao mesmo tempo em que se recusaram a quitar a dívida com o Sul por meio de finanças e transferência de tecnologia.
Dívidas climáticas
Em Glasgow, o presidente do G77 (Guiné) enfatizou repetidamente que “uma COP sem um resultado concreto sobre financiamento não pode ser considerada um sucesso”. A Bolívia também pontuou a pura verdade da cúpula: Glasgow: que a contínua recusa de países ricos e poderosos em apoiar o Sul revela a ausência de vontade política do Norte “para lidar com sua responsabilidade histórica e pagar sua dívida climática com o mundo em desenvolvimento”.
Em outras palavras, o resultado não chega perto de todo a retórica ambiciosa. Enquanto a pandemia gerou trilhões dos países ricos por meio de instrumentos financeiros públicos como a flexibilização quantitativa, a crise climática, que fará a pandemia parecer um ensaio geral, não consegue fazer girar a máquina de dinheiro do Norte.
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Enquanto isso, pesquisas mostram que quase 80% do financiamento climático se dá na forma de empréstimos geradores de dívida, que aumentaram de US$ 19,8 bilhões, em 2013, para US$ 44,5 bilhões, em 2019. E 40% desses empréstimos não são concessionais, o que significa que são emitidos a taxas de juros de mercado ou superiores, ou com prazos de carência mais curtos.
A dívida soberana é uma âncora que consolida o poder desigual entre Norte e Sul. Em 2020, 62 países do Sul Global gastaram mais para pagar dívidas do que para necessidades urgentes de saúde. A Jubilee Debt Campaign revela que países de baixa renda gastam cinco vezes mais em dívidas do que com a emergência climática. Este ciclo injusto e devastador demonstra um sistema multilateral onde a ganância dos credores internacionais (como o FMI, Banco Mundial e corporações financeiras e bancos comerciais, incluindo BlackRock e Goldman Sachs) substitui tanto os direitos econômicos e sociais das pessoas quanto a capacidade do Sul para enfrentar as mudanças climáticas. Por outro lado, as concessões, que é a forma de financiamento climático solicitada para o Sul e pelos movimentos de justiça climática, totalizam apenas 27% do financiamento climático, ou cerca de US$ 16,7 bilhões.
Um novo multilateralismo reparador
A COP26 foi um forte choque de ideologias que esmagou as esperanças do Sul Global de um futuro com igualdade climática. Esse confronto se deu entre líderes a favor e contra mais combustíveis fósseis, a favor e contra mais empréstimos em vez de transferências financeiras e essencialmente aqueles a favor e contra o sistema econômico atual. Movimentos que abrangem reparações, radicalismo negro e alternativas fiscais feministas estão pedindo, entre outras coisas, o cancelamento da dívida existente sem condições anexadas como um próximo passo crítico para permitir que os países se libertem das estruturas do colonialismo e como alguma forma de compensação por séculos de dano.
Essa libertação exigirá nada menos que uma revolução para combater a formulação de políticas coloniais, juntamente com o uso de mecanismos legais para trazer justiça restaurativa e reparações. Implicará também o encorajamento de alternativas promissoras e a construção de instituições paralelas nos níveis regional e local. O estudioso africano, Professor Chinweizu, postula a necessidade de “reparos feitos por nós mesmos, em nós mesmos: reparos mentais, reparos psicológicos, reparos culturais, reparos organizacionais, reparos sociais, reparos institucionais…”.
O multilateralismo como projeto colonial envolve a perda do conhecimento contextual e corporificado, onde o saber está ligado à experiência vivida das comunidades impactadas pelas crises climáticas e uma compreensão visceral da perda dolorosa. O desmantelamento da colonialidade do sistema multilateral começa com a centralização das experiências vividas, saberes indígenas e modos de ser regeneradores, praticados pelas comunidades que mais sofrem.
Um novo tipo de multilateralismo reparador é urgente para as ideias alternativas que poderia trazer ao mundo, e começa com:
- Uma reversão dos drenos financeiros e de recursos do Sul para o Norte, começando pela justiça da dívida e uma resolução que prioriza o cancelamento imediato e incondicional da dívida.
- Uma ampliação do financiamento climático, na forma de concessões e não de empréstimos de acordo com o que os países de baixa renda estão pedindo, com compromissos concretos para perdas e danos e fundos de adaptação.
- Uma priorização da liderança e orientação das comunidades indígenas que nos trazem de volta às sabedorias relacionais, experienciais e ancestrais.
A cura só pode começar quando hierarquias profundamente arraigadas na injustiça e na desumanização forem desmanteladas. Fora dos limites do atual sistema multilateral, uma pluralidade de conhecimentos está prosperando. É um conhecimento que vai inchar e fluir por todas as terras e rios que puder alcançar até que não possa mais ser ignorado.
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