oDR: Opinion

Os problemas com a diplomacia de guerra da Ucrânia no Sul Global

A Ucrânia deveria lembrar que valores da democracia, igualdade e justiça não são exclusivamente ocidentais ou europeus

Chelsea Ngoc Minh Nguyen
26 Abril 2023, 10.00
Alguns Estados do Sul Global têm apoiado menos a resistência da Ucrânia contra a invasão russa
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(c) Johannes P. Christo/Anadolu Agency via Getty Images. All rights reserved

Antes do primeiro aniversário da invasão em grande escala da Ucrânia pela Rússia, o presidente Volodymyr Zelensky declarou a Rússia como “a maior força antieuropeia do mundo moderno” em um discurso ao Parlamento Europeu.

Por “europeu”, Zelenskyi se referia ao “modo de vida” do continente, que era, segundo ele, “baseado em regras, valores, igualdade e justiça”. A Europa, acrescentou, é "um lugar onde a Ucrânia está firmemente em casa".

Foi um exemplo proeminente de como a Ucrânia passou a se concentrar em seu relacionamento com a "civilização ocidental" em sua diplomacia pública durante a guerra. Outros exemplos incluem a retórica popular sobre a Rússia se tornar “mais asiática” como resultado de sua guerra ilegal contra a Ucrânia, ou que a luta da Ucrânia pela sobrevivência nacional equivale a “estender as fronteiras da Europa para o leste”.

Mas numa época em que lutas pelos valores da democracia, igualdade e justiça estão ocorrendo não apenas na Ucrânia, mas em outras partes do mundo, de Mianmar à Palestina, essa ênfase no valor supostamente superior da civilização ocidental ou europeia é, no mínimo, restritiva.

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Esta representação da resistência da Ucrânia é definida em uma estrutura que deixa de lado lutas semelhantes em muitos países do Sul Global. Ela concentra a atenção do público na perspectiva de um futuro europeu novo e excludente – em vez de um futuro mais consistente e universalmente compartilhado, igualitário e humano.

Indonésia

Várias ações dos diplomatas da Ucrânia no Sul Global no ano passado me fizeram criticar a abordagem geral do país a sua diplomacia de guerra.

Veja o caso da Indonésia, cujos anos de ditadura militar interna começaram com os assassinatos em massa de simpatizantes comunistas e outros grupos em 1965 e 1966. Esses eventos levaram à derrubada do líder nacionalista e primeiro presidente da Indonésia, Sukarno, e sucessão pelo ditador militar apoiado pelo Ocidente, Suharto.

Embora o país tenha sido um firme aliado dos Estados Unidos durante a ditadura, que durou até 1998, muitos indonésios mantiveram apreço por seus anos de cooperação com a União Soviética, especialmente por meio de intercâmbios culturais, educacionais e um relacionamento político compartilhado de ir em direção a um futuro pós-colonial não capitalista e a uma nova ordem mundial.

A Indonésia não tem sido neutra quanto à invasão da Ucrânia pela Rússia (embora internamente haja debates sobre se o país poderia ter feito mais pela Ucrânia). Ela votou a favor de todas as resoluções da Assembleia Geral da ONU pedindo a retirada das tropas russas da Ucrânia.

Além disso, como presidente da cúpula do G20 em 2022, o presidente indonésio Joko Widodo (também conhecido como Jokowi) não apenas se tornou o primeiro estadista do Sul Global a visitar Kiev durante a guerra, mas também permitiu que Zelensky apresentasse (virtualmente) seus plano de paz pela primeira vez para o mundo na cúpula.

Joko Widodo rodeado de pessoas

Junho de 2022: Presidente Joko Widodo visita Irpin, nos arredores de Kiev

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(c) Indonesian Presidential Palace/AFP via Getty Images. All rights reserved

Mas a linguagem dos diplomatas ucranianos nem sempre fomentou esse apoio.

Por um lado, falando uma semana após a invasão, o embaixador da Ucrânia na Indonésia procurou invocar o apoio do governo indonésio e de seu público. O embaixador, Vasyl Hamianin, traçou semelhanças entre as guerras anticoloniais de independência da Indonésia, principalmente contra os holandeses e os japoneses, e a guerra em curso da Ucrânia contra a Rússia.

Hamianin também enfatizou que a invasão da Ucrânia era uma ameaça à paz mundial e à ordem de segurança internacional pós-Segunda Guerra Mundial. De fato, como argumentou o embaixador da Indonésia na Alemanha, a invasão da Rússia tem ramificações para outros Estados menores que dependem de leis internacionais para defender sua integridade territorial e soberania contra a intimidação das grandes potências. A Indonésia, em suas negociações com a China sobre o Mar da China Meridional, é um desses exemplos.

No entanto, Hamianin também invocou o sangrento passado anticomunista da Indonésia, dizendo à sua audiência: “Vocês [Indonésia] são uma nação sábia que foi capaz de afastar as seduções dos comunistas e não se submeter a eles”. O embaixador foi além, afirmando que “a Rússia de hoje é uma continuação do regime comunista”.

Se a Ucrânia quiser alcançar Estados fora da Europa, ela precisa reconhecer a semelhança nas lutas em todo o mundo pelos mesmos valores

Embora o populismo islâmico e o anticomunismo andem de mãos dadas na política indonésia contemporânea, a evocação de memórias de um dos períodos mais sangrentos da história do século 20 – massacres que deixaram entre 500 mil e 1 milhão de mortos – revelou, na melhor das hipóteses, uma falta de julgamento diplomático e sensibilidade.

O sofrimento desse período só foi reconhecido há pouco. Foi somente em janeiro de 2023 que Jokowi estendeu formalmente o "profundo pesar" do Estado indonésio com o reconhecimento de que os massacres de 1965 contra simpatizantes comunistas realmente aconteceram. Por que Hamianin acreditou ser apropriado fazer comentários que pareciam ir contra uma agenda política historicamente sensível e de longa data na Indonésia – a de uma reconciliação gradual e mais franqueza sobre os massacres?

Israel e Palestina

Outro episódio perturbador ocorreu em relação à escalada de violência de Israel em Gaza em agosto de 2022, que a Indonésia condenou resolutamente, de acordo com sua tradição de solidariedade com a Palestina. A Indonésia está entre os poucos países do mundo que ainda não têm relações diplomáticas formais com Israel.

Em resposta à sua condenação dos ataques israelenses, Hamianin tuitou, em letras maiúsculas: “Que tal uma forte condenação de ataques brutais à Ucrânia durante os últimos cinco meses? E mortes de centenas, senão milhares de crianças, incluindo crianças muçulmanas?”

Pouco depois, o embaixador da Ucrânia em Israel, Yevgen Korniychuk, divulgou uma declaração pública que dizia: “Como ucraniano cujo país está sob um ataque brutal e prolongado de seu vizinho mais próximo, sinto grande simpatia pelo público israelense. Terrorismo e ataques maliciosos contra civis se tornaram a rotina diária de israelenses e ucranianos”. O Ministério das Relações Exteriores da Ucrânia posteriormente retuitou a declaração de Korniychuk.

O Ministério das Relações Exteriores indonésio intimou Hamianin, tendo manifestado o seu “descontentamento e ressentimento” frente aos comentários considerados “nocivos para os indonésios que consideram os ucranianos como amigos”.

Homem curvado em prédio em construção

A luta palestina se tornou uma causa popular na Indonésia nas últimas décadas

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(c) Ahmed Zakot/SOPA Images/LightRocket via Getty Images. All rights reserved

Esse aparente conflito de valores ao pedir apoio à Ucrânia contra a Rússia e, ao mesmo tempo, tomar o lado de Israel em seu uso desproporcional de violência contra os palestinos é um exemplo de que a linguagem da “civilização” está sendo aplicada apenas ao Ocidente. Isso tem o potencial de alienar aqueles no Sul Global. Grandes segmentos do público indonésio foram galvanizados nas últimas décadas pela causa do Estado palestino e da liberdade.

Se a Ucrânia quiser alcançar Estados fora da Europa, ela precisa reconhecer a semelhança nas lutas em todo o mundo pelos mesmos valores de democracia, igualdade e justiça – em vez de centrar a noção de “civilização” exclusivamente na Europa.

Lições do Vietnã

Os EUA foram e continuam sendo a retaguarda externa mais importante por trás da guerra de defesa da Ucrânia contra a Rússia, em termos materiais, financeiros e militares. Como resultado, os esforços diplomáticos dos EUA e da Ucrânia em tempos de guerra foram bem coordenados e, em grande parte, em uníssono.

No entanto, aqui novamente podemos ver sinais de uma abordagem excludente. Em março deste ano, quando a Rússia alegou (falsamente) que os programas de armas biológicas dos EUA estavam sendo executados na Ucrânia, a embaixada dos EUA no Vietnã divulgou uma declaração descarada que dizia: "A Rússia, e não os Estados Unidos, tem um longo e bem documentado histórico de uso de armas químicas".

Como era de se esperar, a página da embaixada no Facebook foi tomada por comentários indignados de vietnamitas locais. De acordo com dados oficiais vietnamitas, entre três e 4,8 milhões de pessoas no Vietnã foram expostas a agente laranja, um produto químico tóxico usado pelo Exército dos EUA entre 1961 e 1971, durante a Guerra do Vietnã.

Ainda mais profundamente do que na Indonésia, segmentos significativos da população vietnamita continuam a ter um profundo apreço pela União Soviética. Após a retirada das forças armadas dos EUA em 1973 e a reunificação do Vietnã em 1975, foram principalmente a URSS e o Bloco Oriental que ajudaram um Vietnã devastado pela guerra a preencher seu capital humano agudo e lacunas de infraestrutura, treinando seus modernos construtores estatais (médicos, engenheiros , agrônomos, geólogos, economistas, professores, arquitetos e assim por diante).

Esse apoio aconteceu sob as duras condições externas de uma intensa campanha diplomática liderada pela China e pelos Estados Unidos e bloqueio da ajuda humanitária internacional, comércio e outras formas de assistência ao país.

Outdoor mostra homem representando os EUA sob ataque

'Agressores fora do Vietnã' diz este outdoor soviético em Moscou, 1968

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(c) Sovfoto/Universal Images Group via Getty Images. All rights reserved

Mas enquanto o Vietnã e a Ucrânia sofreram invasões de grandes potências com ambições imperialistas de controle e domínio, as semelhanças terminam quando consideramos os esforços do Vietnã na diplomacia de guerra nas décadas de 1960 e 1970.

Esses esforços visavam promover a universalização dos movimentos de libertação nacional, direitos civis e solidariedade que aconteciam simultaneamente em todo o mundo, particularmente nas terras dos “governos inimigos” dos EUA e da França. Tratava-se de criar um mundo novo e mais justo baseado em relações não capitalistas de solidariedade internacional, em vez de um movimento em direção a um antigo passado civilizacional.

E não foi apenas diplomacia de governo para governo. Em uma frente separada de diplomacia interpessoal, os diplomatas vietnamitas viajaram extensivamente pela Ásia, África, América Latina e Europa para estender sua solidariedade às lutas lideradas por movimentos sociais e populares, para encontrar pontos de encontro entre as lutas de cada um por um mundo mais justo e pós-colonial.

Povos e culturas comuns no sentido essencialista raramente, ou nunca, foram alvo de propaganda e denúncias oficiais em tempo de guerra. Em vez disso, intelectuais, estudantes, políticos, veteranos militares e ícones culturais americanos e franceses foram totalmente envolvidos em uma campanha unida para que os EUA se retirassem do Vietnã do Sul.

A Ucrânia como fonte de inspiração

Ho Chi Minh supostamente disse uma vez: “A primeira frente contra o imperialismo dos EUA é no Vietnã. A segunda está dentro dos EUA.” No caso da Ucrânia, isso implicaria um engajamento mais corajoso com a oposição russa à invasão, mesmo que represente apenas 1% da população.

No entanto, é preciso dizer que a difícil tarefa da Ucrânia de se envolver com seus amigos na Rússia e no Sul Global é espetacularmente mais desafiadora do que jamais foi para a diplomacia do Vietnã em tempos de guerra. Enquanto as revoltas e os protestos de 1968 marcaram uma época de otimismo nas ex-colônias, a situação hoje é marcada por um profundo cinismo global quanto à possibilidade de um futuro mais democrático e socialmente justo.

Pessoas olham o cartaz

Um cartaz em um museu de Moscou compara "OTANismo" ao "nazismo"

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(c) Getty Images. All rights reserved

No entanto, a solução de longo prazo mais sustentável da Ucrânia também deve se tornar uma solução transformadora para o autoritarismo draconiano da Rússia – e é por isso que uma abordagem diplomática civilizacional e excludente é autodestrutiva.

Este não é um apelo para que a Ucrânia resolva os problemas do mundo enquanto expulsa um exército russo invasor de seu país. Para muitos países do Sul Global, a preocupação não é apenas preservar os laços objetivamente necessários com a Rússia, mas também, mais fundamentalmente, sobre a autoidentificação e os valores da Ucrânia em relação a eles.

A diplomacia, em tempo de guerra e de paz, não consiste apenas em maximizar os interesses nacionais do seu país: trata-se também de transmitir ao mundo os valores que gostaria que o mundo compreendesse e, de preferência, compartilhasse, em mútua solidariedade, respeito e admiração.

A Ucrânia pode se tornar uma fonte de inspiração para uma agência política independente e progressista que rejeite as armadilhas civilizacionais tanto do Ocidente quanto da Rússia? Só podemos esperar que sim.


Leia uma versão expandida deste artigo em inglês no site Commons.

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