ourEconomy: Analysis

Estamos vendo o colapso da economia global dominada pelo dólar?

Choques financeiros dos últimos anos forçam mudança da arquitetura monetária global, segundo alguns economistas

James Meadway
13 Fevereiro 2023, 10.00
Após uma cúpula com a China em dezembro, a Arábia Saudita sugeriu que ficaria feliz em vender seu petróleo em uma moeda diferente do dólar
|

Xinhua/Alamy Live News

Duas notícias pequenas, mas extremamente importantes, nas últimas semanas são os primeiros indicadores de que a ordem econômica global, centrada na primazia do dólar, está se desintegrando lentamente – trazendo a ameaça de uma instabilidade radicalmente agravada.

Primeiro, o ministro das finanças da Arábia Saudita disse que o reino do Golfo “não tinha objeções” a vender seu petróleo em uma moeda diferente do dólar. A Arábia Saudita já havia feito comentários semelhantes antes, mas esta última sugestão vem depois que o presidente chinês, Xi Jinping, exortou os países do Golfo a aceitar o yuan para o acordo de comércio de petróleo e gás com a China na primeira Cúpula China-Estados Árabes, realizada com grande pompa e cerimônia pelo príncipe herdeiro saudita, Mohammed Bin Salman, em Riad, no fim do ano passado.

Como o maior exportador de petróleo bruto do mundo e (até recentemente) um eixo central da estratégia dos EUA no Oriente Médio, qualquer movimento da Arábia Saudita seria uma grande notícia. Isso significaria que o primeiro e o segundo maiores exportadores de petróleo do mundo – Arábia Saudita e Rússia – não estariam mais procurando negociar esse petróleo apenas em dólar.

Nos últimos anos, a Arábia Saudita vem desenvolvendo laços cada vez mais estreitos com a China, o maior importador de petróleo do mundo. A cúpula de dezembro viu os dois lados repetirem seu “apoio firme” um ao outro e assinarem uma série de acordos sobre comércio e tecnologia. Isso incluiu um memorando com a gigante tecnológica chinesa Huawei sobre o fornecimento de computação em nuvem e infraestrutura de alta tecnologia para cidades sauditas, desafiando as proibições dos EUA. Um novo "petroyuan" consolidaria essa ruptura no sistema internacional.

Get our free Daily Email

Get one whole story, direct to your inbox every weekday.

Do outro lado do mundo, houve o anúncio do Brasil e da Argentina de que também estariam procurando usar uma nova moeda para o comércio bilateral – desta vez estabelecendo um dinheiro totalmente novo, potencialmente chamado de "sur". Já houve propostas de criar moedas conjuntas entre Brasil e Argentina antes, mas elas tendem a fracassar por motivos políticos, com forte oposição dos bancos centrais de ambos os países.

Agora, com governos de esquerda e de mentalidade independente em ambos os países, há uma maior disposição para tentar estabelecer uma nova moeda, separada do sistema do dólar. Os primeiros relatórios indicam que teria a função de um instrumento apenas de comércio exterior, usado na liquidação de pagamentos para transações internacionais, em vez de algo aceito em lojas, por exemplo. Ambos os países reconhecem as complicações envolvidas, mas com outros países sul-americanos convidados a aderir pode, com o tempo, começar a funcionar como uma alternativa ao dólar.

Esses dois eventos alimentam um padrão geral em que as principais economias estão começando a recuar do sistema global dominado pelo dólar. Desde o fim da Guerra Fria, todos nós vivemos em um mundo onde a economia dos Estados Unidos e, com ela o dólar, são extremamente importantes.

Se a Rússia pode ser excluída por ordem do governo dos Estados Unidos, qualquer país também pode

O sistema oscilou ocasionalmente, talvez de forma mais dramática na crise financeira global de 2008. Mas em seu relato sobre essa crise, "Crashed", o historiador Adam Tooze argumenta que ela demonstrou o poder dos EUA, que foi capaz de estabilizar o restante da economia global por meio de um sistema de swaplines do Federal Reserve. Estes ofereciam dólares muito baratos em caso de emergência a países politicamente favorecidos como a Grã-Bretanha, garantindo-lhes proteção das instituições financeiras domésticas.

Isso deu um peso enorme aos EUA. Se você pode escolher resgatar ou não alguém, você tem um poder imenso sobre ele, como argumenta Tooze. Mesmo a ameaça de remover o suporte de emergência pode lhe dar poder. Mas foi essa demonstração de poder que ajudou a semear o colapso constante do sistema, como vemos hoje.

Precisamente porque os EUA conseguiram exercer o seu poder monetário de uma forma que correspondia aos seus interesses mais amplos – de modo que apenas os seus aliados mais próximos tinham acesso às swaplines, mas todos os países poderiam precisar de dólares, em caso de emergência –, criou incentivos para outros países se retirem, na medida do possível, do sistema monetário internacional centrado no dólar.

Fim do regime do dólar

Desde 2008, outras economias — lideradas pela China — cresceram mais rápido do que os EUA, deixando alguns aliados dos EUA, como a Grã-Bretanha, para trás. A pandemia de Covid-19 também abalou dramaticamente todo o sistema. Quase três anos depois, o mundo ainda vive com o vírus e suas consequências – em termos de saúde, cadeias de suprimentos interrompidas e os montantes substanciais de dívida gerados pelos lockdowns.

Quando os EUA dominavam inequivocamente o globo, como o fizeram nos anos após o fim da Guerra Fria, sendo simultaneamente a maior economia, o líder tecnológico e a maior potência militar do planeta, fazia pouco sentido contestar o sistema regido pela moeda americana. Mas como o poder dos EUA diminuiu nessas diferentes dimensões, os riscos de uma retirada do sistema também diminuíram para os países que o contemplam.

Por outro lado, os riscos de permanecer dentro do sistema do dólar – especialmente para aqueles fora do círculo encantado de aliados próximos dos EUA – também aumentaram dramaticamente com a invasão da Ucrânia pela Rússia e a subsequente imposição de sanções à Rússia. Quando os tanques cruzaram a fronteira há quase um ano, a reação do Ocidente foi rápida. Sem cerimônia, os EUA e seus aliados bloquearam o acesso desimpedido da Rússia ao sistema de pagamentos em dólares, como haviam feito com o Irã, no início da última década.

Essa restrição repentina funcionou como um grande sinal de alerta para todos os outros países que dependem do sistema global de pagamentos em dólares, diz Zoltan Poszar, chefe de estratégia global do banco suíço Credit Suisse. Se a Rússia pode ser excluída por ordem do governo dos EUA, o mesmo poderia acontecer com qualquer país. Poszar pensa que, além do relativo declínio dos EUA em relação a outras grandes potências ter gerado a oportunidade de se retirar do sistema, a invasão da Ucrânia gerou um incentivo, evitando que um país se encontre potencialmente exposto aos caprichos de Washington no futuro.

Poszar acredita que está surgindo um novo sistema monetário internacional multipolar, que ele chamou de “Bretton Woods III”, referindo-se à ideia de que, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o mundo passou por três sistemas monetários internacionais diferentes. O primeiro foi concebido na conferência de Bretton Woods, nos EUA, em 1944, onde as potências aliadas tentaram estabelecer as regras básicas de funcionamento do sistema monetário internacional do pós-guerra. Esse acordo estabeleceu o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI), que ainda existem, e um sistema de taxas de câmbio fixas, atreladas ao dólar (e mais tarde ao ouro), que não é mais fixo. O sistema entrou em colapso no início dos anos 1970 quando os EUA se recusaram a manter o preço fixo do dólar em ouro por mais tempo.

Em um sistema frágil e propenso a crises, pequenas mudanças nas margens podem começar a provocar grandes mudanças em outros lugares

O segundo "Bretton Woods" surgiu cerca de 20 anos depois, quando o novo sistema financeiro global se estabilizou após o fim da Guerra Fria. Os Estados Unidos agiram como um enorme consumidor financiado pela dívida, explorando a demanda global pelo dólar no comércio e como uma reserva para incorrer em enormes dívidas para o resto do mundo. Outras nações ficaram felizes em emprestar aos EUA – tanto seu governo quanto seus lares e empresas – porque os americanos, por sua vez, estavam mais do que dispostos a comprar produtor provenientes de economias em rápido crescimento – como a China. Esse sistema parecia tão estável no início dos anos 2000 que, mesmo sem um acordo formal, alguns economistas o rotularam de “Bretton Woods II”.

Poszar e alguns outros argumentam que agora, 15 anos após o choque financeiro, o mundo está entrando em "Bretton Woods III". Mais uma vez é uma analogia – não há um grande acordo internacional abrangente, nem há nenhum país tão poderoso que pudesse impor um – em 1945, os EUA representavam quase metade da produção industrial mundial. Hoje está em torno de 16%.

Como seu antecessor, o novo sistema está emergindo organicamente, sendo o resultado de decisões separadas e de interesse próprio de atores poderosos. Mas ao contrário de Bretton Woods II, o dólar não será mais dominante. Poszar diz que os choques dos últimos anos, culminando na invasão russa da Ucrânia, estão forçando a arquitetura monetária global a mudar e estamos começando a ver moedas concorrentes alternativas com suas próprias reivindicações de valor no sistema.

Poszar argumenta que o renminbi chinês está a caminho de se tornar tal moeda. Tendo seu valor determinado com base em seu papel no comércio de commodities, o processo se assemelha ao primeiro regime de Bretton Woods, que em última análise dependia da valorização do dólar em relação ao ouro. O petroyuan, se algum dia se concretizar, seria um exemplo claro.

Esta é uma afirmação bastante ousada – o dólar ainda representa cerca de 50% do comércio global e, apesar do renminbi estar subindo, ele ainda é usado em apenas 2% das transações globais. Os EUA ainda são a maior economia do mundo, carregam um enorme peso de soft power em todo o mundo – pense em Hollywood ou em sua indústria musical – e são, de longe, o país com maior investimento militar e armamentício. Mas são as mudanças menores que podem começar a importar. Em um sistema frágil e propenso a crises, pequenas mudanças nas margens podem começar a provocar grandes mudanças em outros lugares.

Enquanto isso, a Índia começou a negociar em rúpias com a Rússia e a China. Os Emirados Árabes Unidos começaram a usar dhiram. Pouco a pouco, os países estão saindo do sistema de comércio e finanças em dólares. É improvável que eles se separem completamente, a menos que sejam forçados – os EUA continuam tendo poder econômico suficiente para fazê-lo. Mas isso significaria que o mundo unipolar em que vivemos desde o fim da Guerra Fria parece estar chegando ao fim.

Mudanças na liderança econômica global ocorreram muitas vezes antes. Em sua obra clássica, “O longo século XX”, o economista italiano Giovanni Arrighi argumenta que essa mudanças seguiram uma sequência geográfica nos últimos 700 anos ou mais, à medida que o capitalismo cresceu e se tornou o sistema mundial dominante. Em cada fase de seu crescimento, um novo “hegemon” emergia – uma economia poderosa o suficiente para atuar como um estabilizador para todo o sistema. Assim, Gênova deu lugar à Holanda no século 16, a Holanda deu lugar à Grã-Bretanha no século 18 e a Grã-Bretanha deu lugar aos Estados Unidos no século 20.

Mas cada transição, observou Arrighi, é historicamente um período de enorme instabilidade. Agora vivemos em uma era de guerra na Europa, tensões crescentes em todo o mundo e o desgaste interminável da mudança climática trazendo consigo o esgotamento de recursos e a extinção em massa. O futuro próximo é de grande incerteza e instabilidade à medida que o novo regime monetário global toma forma.

Ukraine's fight for economic justice

Russian aggression is driving Ukrainians into poverty. But the war could also be an opportunity to reset the Ukrainian economy – if only people and politicians could agree how. The danger is that wartime ‘reforms’ could ease a permanent shift to a smaller state – with less regulation and protection for citizens.
Our speakers will help you unpack these issues and explain why support for Ukrainian society is more important than ever.

We’ve got a newsletter for everyone

Whatever you’re interested in, there’s a free openDemocracy newsletter for you.

Economics journalism that puts people and planet first. Get the ourEconomy newsletter Join the conversation: subscribe below

Comentários

Aceitamos comentários, por favor consulte ás orientações para comentários de openDemocracy
Audio available Bookmark Check Language Close Comments Download Facebook Link Email Newsletter Newsletter Play Print Share Twitter Youtube Search Instagram WhatsApp yourData