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WhatsApp bloqueado? A culpa não é do Marco Civil da Internet

Foi bastante trabalhoso aprovar o Marco Civil da Internet. Mas, ao que parece, o trabalho ainda está longe de chegar ao fim. English

Carlos Affonso Souza Sérgio Branco
17 Maio 2016
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A presidente Dilma Rousseff assina o Marco Civil durante a cerimônia de abertura da Reunião Multi-Sector Global sobre Futuro da Governança da Internet - World NET, 2014. Flickr / Blog de Planalto. Alguns direitos reservados.

Em 2014, o WhatsApp foi o aplicativo mais baixado no Brasil. Devido às altíssimas taxas cobradas pelo envio de SMS e por ligações, os aplicativos de mensagens instantâneas como o WhatsApp tornaram-se os mais utilizados por aqui.

O WhatsApp tornou-se ainda mais popular após permitir que seus usuários gravem mensagens de voz e também realizem ligações telefônicas através do aplicativo. Deve-se ressaltar que devido ao alto índice de analfabetismo - ou analfabetismo funcional - no Brasil, essa função possuí grande valor para muitos brasileiros. O aplicativo tem, atualmente, cerca de 100 milhões de usuários no país, quase metade de toda a população.

Não se precisa nem dizer que um aplicativo de telefone celular explorado por uma empresa dos Estados Unidos, com tamanha popularidade no Brasil, não ficaria isento de problemas junto aos reguladores nacionais. A questão mais recente aconteceu em dezembro de 2015 [na verdade, enquanto este texto estava sendo escrito em sua versão original, novo bloqueio se deu], quando o WhatsApp foi suspenso por 12 horas. Isso não ocorreu devido a uma falha técnica. Isso foi resultado de uma decisão judicial proferida por um juiz de São Paulo em resposta a suposta conduta omissa por parte do WhatsApp no que diz respeito à sua cooperação com uma investigação criminal que estava sendo realizada em segredo de justiça pelas cortes brasileiras.

O que o juiz demandava eram informações pessoais pertencentes a usuários do WhatsApp. O Facebook, empresa que adquiriu o aplicativo, se recusou a agir de acordo com tal demanda. Em vez de utilizar-se de ferramentas legais para obter as informações, o juiz decidiu que o WhatsApp deveria se tornar inacessível, negando seus serviços não somente a um usuário, mas a todos os cidadãos brasileiros que dele faziam uso.

O que essa decisão, na atual conjuntura brasileira, significa para o presente e para o futuro da regulação da Internet?

O Marco Civil da Internet

Em 2014, uma Lei Federal foi aprovada no Brasil: o Marco Civil da Internet. Considerada uma  legislação pioneira no âmbito internacional, foi batizada como a “Constituição da Internet Brasileira”. O artigo 2o dessa lei determina que a governança da internet no Brasil tem como base o respeito aos direitos humanos, incluindo a liberdade de expressão e outros direitos fundamentais, além do direito ao desenvolvimento e exercício da cidadania através das mídias digitais, incluindo as redes sociais.

Simultaneamente, em seu artigo 3o, reconhece o direito à privacidade e de proteção dos dados pessoais.

Assim, não parece fazer sentido que uma decisão judicial possa determinar a suspensão dos serviços do WhatsApp com base nas previsões do Marco Civil. Em outras palavras, será que um juiz, sujeito às leis brasileiras, tem o poder de retirar um aplicativo do ar dessa forma? Parece bastante claro que o Marco Civil da Internet não comporta essa possibilidade. Há quem discorde, com base em uma interpretação dos 11 e 12 do MCI. Nós, contudo, acreditamos que essa conclusão pode apenas nos levar a um problema ainda maior.   

De mal a pior

O artigo 12 do Marco Civil estabelece sanções para a desobediência das regras previstas no próprio diploma legal. Dentre tais previsões, temos a suspensão temporária de atividades que envolvam “atos previstos no artigo 11”. E quais são esses atos exatamente? De acordo com o artigo 11, são aqueles que envolvem operações de coleta, armazenamento, guarda e tratamento de registros, de dados pessoais ou de comunicações por provedores de conexão e de aplicações de internet, incluindo aplicativos de celulares que não consentirem com a legislação brasileira e com os direitos à privacidade, à proteção dos dados pessoais e ao sigilo das comunicações privadas e dos registros. Essas sanções se aplicam quando algum desses atos ocorre no território brasileiro.

Como pode-se perceber, a aplicação do artigo 12 pode levar a suspensão das atividades de coleta, armazenamento e tratamento de dados pessoais; atividades que são rentáveis para qualquer site ou serviço online. A utilização de dados pessoais de usuários é o principal negócio das companhias em questão. Contudo, não há, no Marco Civil, qualquer disposição que permita que o serviço seja suspenso como um todo por conta de alguma violação dos termos de uso sujeitos à lei. É equivocado alegar que o Marco Civil da Internet é responsável pela decisão que suspendeu o serviço do WhatsApp como um todo no Brasil. Fundamentar tal decisão no MCI não só viola a razão de ser de tal legislação, como também seu principal alicerce: as normas internacionais de direitos humanos.

Por mais que a decisão de suspender o WhatsApp tenha sido revertida em segunda instância, o serviço ficou indisponível por 12 horas - tempo suficiente para prejudicar os milhares de usuários brasileiros que dele dependem.

Por que essas decisões são significantes para os direitos humanos na rede?

Essa não foi a primeira vez que um site ou serviço ficou fora do ar devido a uma decisão judicial. Uma das decisões mais relevantes que foi, inclusive, um dos fatores que motivaram a criação do Marco Civil da Internet, ocorreu em 2007 com a suspensão temporária do YouTube.

A suspensão ocorreu por conta de um processo envolvendo uma celebridade brasileira que teve um vídeo de momento íntimo gravado e compartilhado no YouTube. Após diversas tentativas sem êxito de tornar o vídeo indisponível, um juiz ordenou que o acesso à plataforma fosse suspenso. Assim, usuários do Brasil inteiro ficaram privados de acessar o YouTube por algumas horas, até que o mesmo juiz revogou a decisão.

É igualmente importante mencionar que essa não é a primeira vez que uma decisão judicial determina a suspensão dos serviços do WhatsApp. No início de 2015, um juiz do Piauí, no nordeste do Brasil, decidiu que o serviço deveria ser bloqueado porque a empresa teria se recusado a cooperar com uma investigação criminal. A diferença desse caso para o que ocorreu mais recentemente é que a decisão foi revertida antes de produzir efeitos.

E isso não é o final da história. Em 31 de março deste ano, o Congresso Nacional Brasileiro divulgou a última versão da denominada “CPI dos Crimes Cibernétivos”. O relatório propõe a adoção de oito Projetos de Lei, sendo que alguns deles alteram radicalmente o espírito do Marco Civil da Internet - e para pior.

Afinal, um exemplo para o resto do mundo?

Os projetos de lei propostos sob a justificativa de promover a “cibersegurança” contrariam tudo que o Brasil alcançou até hoje no que diz respeito aos direitos humanos e à internet. Uma dessas leis, por exemplo, pretende determinar que redes sociais e outros intermediários sejam um tipo de “policiais da rede”, impondo-lhes a obrigação de monitorar usuários e de remover qualquer conteúdo considerado difamatório dentro de 48 horas, sob a pena de serem responsabilizados solidariamente nas esferas criminal e civil. Essas leis seriam uma espécie de cheque em branco para que todo conteúdo online pudesse ser retirado do ar por uma simples notificação extrajudicial.  

Além disso, essas propostas aumentam o escopo de atuação da Policia Federal, de modo a conferir-lhe competência para investigar qualquer conduta “contra ou por meio de um computador”. Em outras palavras, ofensas como “difamação” seriam investigadas e executadas diretamente pela Polícia Federal.

Por fim, tais projetos permitem que os tribunais bloqueiem aplicativos ou sites que provenham acesso à “conteúdos ilícitos”. Sem o uso de qualquer parâmetro de proporcionalidade, essas previsões podem facilmente promover condutas cujas motivações estejam longe de ser o combate à pornografia ou à violação de direitos autorais na rede.

Não devemos esquecer que o Marco Civil da Internet foi desenvolvido durante muito tempo e de maneira colaborativa. Trata-se do resultado de sete anos de debates não só entre membros do Congresso Nacional, mas também entre acadêmicos, empresas de internet, teles e organizações da sociedade civil. É uma referência legislativa uma vez que procura regular a internet no Brasil de modo a garantir a proteção dos usuários e seus direitos, além de fomentar a inovação e prever abusos. A  aprovação dessa lei foi apenas o primeiro passo no longo processo de moldar a regulação da internet no país. Foi bastante trabalhoso aprová-la. Mas parece que o trabalho está longe de terminar.

Acreditamos que o Marco Civil da Internet foi a respostada dada pelo Brasil ao significado de “liberdade de rede” como direito humano. A lei protege e promove direitos fundamentais e liberdades na rede, além da liberdade de expressão, privacidade e neutralidade de rede.

Fazer com que essa lei seja cumprida pelo Governo e pelas empresas de internet, aplicada de forma coerente por magistrados, apoiada por uma sociedade civil engajada e analisada pela academia nas mais diferentes áreas do conhecimento é o próximo passo na trajetória do Marco Civil da Internet prestes a completar dois anos de vigência. 

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