As Forças Armadas ocupam o Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, para garantir a segurança durante as eleições municipais de 2008. Imagem: Wilson Dias / ABr, CC BY-3.0 BR.
Os militares estão de volta ao Rio de Janeiro, mas não deixado a cidade por muito tempo. Nos últimos 12 meses, os militares foram chamados 4 vezes para intervir no local. Ao longo da última década, o estado do Rio recorreu às Forças Armadas 12 vezes. Quem circula pelas ruas da cidade, já se acostumou com a presença de homens em uniformes camuflados, atiradores de elite, carros blindados e diversos outros personagens normalmente associados a palcos de guerra.
O tema ganhou contornos ainda mais dramáticos nos últimos dias. O governador do Estado do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Pezão, afirmou no dia 22 de setembro não ter mais condições de lidar com a situação na Rocinha, uma das maiores favelas cariocas. O desentendimento entre dois membros do alto escalão da facção criminosa que domina o território elevou os níveis de violência no local. Diante do acirramento da tensão, o Governo do Rio de Janeiro pediu mais uma vez auxílio ao Exército. Aproximadamente 950 soldados fortemente armados chegaram à favela a pé, em blindados e helicópteros horas depois. Até o momento, as fontes oficiais reportam 3 mortes desde a entrada dos militares, fala-se em mais informalmente. Moradores da comunidade vivem com medo, escolas estão fechadas e postos de saúde têm atendimento intermitente.
A participação das forças armadas na segurança pública no Rio de Janeiro pode ser contada por duas vias distintas. A primeira é a narrativa “local”, mais comum seja para os especialistas em segurança pública ou para ativistas na área. As versões construídas dentro dessa perspectiva destacam a extrema violência urbana no Rio de Janeiro, agravada pela crise da administração no estado. Essa violência é exercida por facções e grupos de crime organizado, mas está intimamente ligada a uma opção pela ação violenta do Estado nas favelas e periferias, dinâmica que acarreta num genocídio das populações negras. Esse processo está vinculado a uma opção por tratar as políticas de drogas como problemas de segurança, que busca o confronto armado e produz enormes violência e letalidade, além da brutal política de encarceramento.
A favela da Rocinha no Rio de Janeiro, Brasil. Imagem: chensiyuan / Wikimedia Commons, CC BY-SA 4.0.
É possível citar ainda o argumento “oficial”, que justifica operação militar ao formular uma suposta situação de emergência na segurança pública na cidade e no estado, o que demandaria ações também emergenciais. Todas essas histórias são verdadeiras e nos ajudam a compreender o que ocorre em nossas ruas. São uma face da tragédia que ocorre na cidade do Rio de Janeiro e articulam de maneira necessária o ativismo que busca combater a violência.
Mas essa história pode ser contada também como parte de um repertório transnacional ou global de gestão militarizada de espaços e populações. O uso das Forças Armadas como ferramenta de segurança pública não é exclusivo do Rio de Janeiro ou mesmo do Brasil. A Colômbia segue como um caso destacado para a compreensão do nexo guerra-polícia, onde o governo operou junto com forças internacionais a mais explícita versão da “guerra às drogas”. Há décadas a segurança do país é gerida por um complexo de atores públicos e privados, locais e globais, que inclui as polícias, o exército nacional, as forças armadas dos Estados Unidos, além de empresas de segurança privada e milícias locais.
O México segue em vários aspectos a mesma trajetória, com um cenário de extrema violência gerido e instigado pela participação de militares e polícias na segurança pública. O país adotou um receituário de segurança pública repressiva, de confronto e encarceramento, em grande medida formulado nos centros globais de poder, notadamente nos Estados Unidos. Esse repertório foi desenvolvido através de testes em diversos laboratórios em países periféricos, por exemplo na própria Colômbia.
As forças de segurança ocupam o Complexo del Alemão depois de ter oferecido a possibilidade de rendição aos traficantes em 2010. Imagem: Agência Brasil / ABr, CC BY 3.0 br.
Uma perspectiva focada na “solução de problemas” geralmente aborda os casos da Colômbia e do México como fracassos de uma opção de política pública. Para essa visão surpreende que essa mesma opção militarizada seja reiteradamente aplicada, apesar do nosso enorme banco de dados que confirmaria o fracasso do combate militarizado do crime e das drogas. Esse tipo de leitura é necessário para articulação de ativistas que pretendem trazer alguma melhora às condições de vida de enormes parcelas da população. Mas ela precisa ser complementada por uma perspectiva crítica, que perceba a gestão violenta de populações como um projeto funcional de governo e repressão de setores da sociedade, e de ordenamento e gestão de determinados espaços periféricos.
As ruas de grandes cidades são policiadas pelas Forças Armadas em diversas das periferias globais. Os militares brasileiros estão presentes nas periferias do Rio de Janeiro, mas também em Porto Príncipe, no Haiti. A Guarda Nacional dos Estados Unidos esteve presente em Bagdá, mas também foi chamada a intervir em New Orleans e em Baltimore. Diversos dos mesmos ex-militares colombianos treinados pelas forças armadas dos EUA prestam serviços a empresas militares privadas em palcos de conflitos ou de intervenções internacionais, na Libéria, em Serra Leoa ou no Afeganistão.
Compreender a presença do exército em nossas cidades como uma manifestação disfuncional é interpretar o exército meramente como um instrumento de guerra. Isso significa ficar preso à sua dimensão jurídica ou conceitual, e perder de vista a função que de fato exerceu ao longo da história dessas localidades. Nesses locais, o exército é corresponsável, junto com outras organizações como as polícias e as milícias, pelo governo violento de determinadas populações e territórios. É assim na América Latina, na África, ou nas periferias de grandes cidades norte-americanas.

O Exército apoia a ocupação do Complexo do Alemão em 2010. Imagem: Agência Brasil / ABr, CC BY 3.0 br.
A interpretação dos militares como uma força de governo e de garantia de ordem foi em geral ocultada pela literatura mainstream de Relações Internacionais. Ao separar conceitualmente a segurança internacional da segurança pública, criamos uma barreira que nos impede de perceber formas de responder aos desafios da segurança e da insegurança na contemporaneidade com punitivismo e repressão. Reificamos uma escalada da violência, em especial – como é de praxe e é da praxis do sistema em que vivemos – nas periferias.
Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública atestam que uma pessoa morre a cada 8 minutos no Brasil. Por ano, são quase 60 mil homicídios. De cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. Em estados no Norte e Nordeste, o nexo entre raça e violência é ainda mais evidente. Em Sergipe, por exemplo, a taxa de homicídios entre negros é de 73 por 100 mil habitantes, enquanto que a de brancos é de 13 por 100 mil. Essa é a situação brasileira. As espirais de violência ganham concretudes distintas em cada país. E são raramente observadas como devem ser: com combustível para o questionamento da essência de um repertório global mano dura que se materializa de modo singular em cada contexto. A percepção multidisciplinar necessária para tal segue sendo deslegitimada por círculos acadêmicos como questão inviável para a disciplina das Relações Internacionais.
O tema da violência e das respostas mano dura recorrentes e inegavelmente semelhantes implementadas pelo mundo segue sendo rejeitado pelas comunidades epistêmicas que pensam os fluxos globais e poderiam dar contribuição decisiva para a compreensão de tais questões. Interditam também a capacidade de compreender as articulações regionais e globais da sociedade civil organizada, sem dúvida as melhores chances que temos de enfrentar esta realidade cruel.
Enfim, as fronteiras disciplinares trabalham junto às fronteiras políticas para nos fragmentar, podar percepções compreensivas e críticas e ocultar as dinâmicas globais que oprimem, reprimem, encarceram e matam.
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