
Nacional-populismo no poder: uma terceira onda autoritária varre o mundo
Há cada vez mais ditaduras nascidas do apoio eleitoral popular. O nacional-populismo não ameaça as elites ou o status quo; ele ameaça os direitos e as liberdades.

Não há praticamente nenhuma democracia no mundo onde algum líder ou força política de viés nacional-populista não esteja disputando o poder e desafiando o regime democrático existente. Além disso, na última década, o nacional-populismo deixou de ser uma força marginal de oposição e passou a governar, às vezes surpreendentemente, em países dos cinco continentes, alguns tão grandes quanto os Estados Unidos, a Índia ou o Brasil.
Uma vez no poder, os governos desta ideologia política desenvolvem rapidamente traços autoritários e oferecem um perigo para o respeito aos direitos humanos e às liberdades democráticas. Seu histórico nesta área mostra que estes governos não podem ser equiparados a outras opções democráticas do ponto de vista do respeito aos direitos fundamentais.
A terceira onda de autoritarismo
O mundo está imerso na chamada Terceira Onda Autoritária. Desde a virada do século, e particularmente nos últimos cinco anos, mais e mais países estão perdendo suas características democráticas e tornando-se regimes híbridos ou abertamente autocráticos. Pela primeira vez desde 2001, existem mais autocracias (92 países, onde vive 54% da população mundial) do que não-democráticas e 35% da população mundial vive em países com regimes cada vez mais autoritários. Os desenvolvimentos positivos em alguns países, desde Gâmbia, Etiópia e Sudão até Armênia e Malásia, são exceções em um quadro global cada vez menos favorável à democracia liberal.
Para os populistas, o governo tem que ser a expressão da vontade geral. É por isso que rejeitam o equilíbrio de poder e os contrapesos tanto das instituições quanto da sociedade civil
As formas tradicionais de instalação de regime autoritário, como golpes de Estado e conflitos civis, têm desempenhado um papel importante nesta onda autoritária, com exemplos tão relevantes como o Egito ou a Tailândia. Mesmo assim, este momento político é marcado por ter como principal vetor autoritário governos eleitos que, apesar de seu claro descaso com os mecanismos de controle e equilíbrio de poder, obtêm e mantêm o apoio popular em eleições competitivas.
E eles o fazem, e esta é a grande novidade, em países com uma trajetória democrática relativamente consolidada e tradição de pluralismo. Este é o caso dos governos liderados por Viktor Orbán na Hungria, Narenda Modi na Índia, Rodrigo Duterte nas Filipinas, Jair Bolsonaro no Brasil e Donald Trump nos Estados Unidos.
Os retrocessos nos direitos fundamentais não estão limitados aos países com governos nacionais-populistas. Alguns dos piores abusos ocorrem em situações de guerra aberta (como Líbia, Iêmen ou Síria), violência generalizada (como a faixa do Sahel ou a América Central), ou em ditaduras sem disputa eleitoral (como a China).
Da mesma forma, praticamente todos os países com governos comprometidos com a democracia plural e constitucional, incluindo os da Europa Ocidental, cometem abusos e, em áreas como a luta contra o terrorismo ou a vigilância na esfera digital, decaíram substancialmente.
Mesmo assim, isso não deve nos fazer perder de vista o fato de que, em países governados por líderes nacionais-populistas, a deterioração tem sido particularmente rápida e profunda, resultado de estratégias de médio prazo de transformação institucional e da consolidação de novas maiorias ideológicas e sociais.
O nacional-populismo chega ao poder
De acordo com a definição de Cas Mudde e Cristóbal Rovira Kaltwasser, o populismo é uma ideologia "fina", sem a espessura ideológica necessária para tentar responder a toda a agenda política (como o liberalismo ou o comunismo tentam fazer), baseada numa oposição entre um "povo puro" e uma "elite corrupta".
Jan Werner Müller acrescenta duas características importantes: a negação do pluralismo – há apenas um povo, sem divisões internas – e o moralismo – as elites representam interesses especiais, obscuros e são traidores do povo, que é moralmente puro.
Para os populistas, o governo tem que ser a expressão da vontade geral. É por isso que, uma vez que chegam ao governo, rejeitam o equilíbrio de poder e os contrapesos tanto das instituições – judiciárias, autoridades independentes, internacionais, etc. – quanto da sociedade civil – imprensa, interesses organizados, organizações não governamentais e outros – com o argumento de que este equilíbrio seria antidemocrático, na medida em que poderia restringir o exercício do mandato eleitoral do povo (ou endosso).
Finalmente, o líder populista evita ao máximo as estruturas de intermediação social, buscando contato direto com a população (por exemplo, através da televisão, vídeos circulados por aplicativos como o WhatsApp ou o Twitter) e deixa de lado os agentes tradicionais como estruturas partidárias, a imprensa ou a sociedade civil organizada.
O nacional-populismo é uma variante do populismo, a mais bem sucedida no momento, que é construída a partir da direita, buscando, particularmente entre as camadas populares, uma base eleitoral muito mais ampla do que aquela tradicionalmente situada neste espectro.
A redução da democracia a um jogo de maiorias e minorias e o questionamento constante do equilíbrio de poder e das leis é talvez a ameaça populista mais clara à democracia
Além do contraste entre o povo e as elites de todos os populismos, há o uso político de sentimentos nacionalistas e xenófobos direcionados a certos grupos sociais minoritários. Este grupo ou minoria, de acordo com os nacional-populistas, está sendo privilegiado pelas elites tradicionais em detrimento da maioria, apesar do fato de sofrer de condições evidentes de marginalidade.
Ao nacionalismo e à agenda conservadora acrescenta-se, em alguns casos, um componente religioso, como é o caso do islamismo moderado na Turquia de Erdoğan, o budismo militante no Sri Lanka dos irmãos Rajapaksa, o hinduísmo na Índia de Modi ou o cristianismo católico na Polônia, dominado por Jarosław Kaczyński.
É difícil traçar uma separação definitiva entre regimes democráticos ou híbridos que são governados por esta ideologia e regimes abertamente autoritários.
Mesmo assim, nesta análise nos limitaremos aos países onde ainda existe um certo nível de competição eleitoral e pluralismo político e da mídia e onde o nacional-populismo no poder pode ser visto como uma opção política que compete com outras opções, e não é simplesmente uma estratégia para legitimar um poder autocrático plenamente estabelecido.
Nesses países, o ataque do governo contra os direitos fundamentais geralmente tem algumas características comuns que detalharemos agora.
O ataque nacional-populista aos direitos fundamentais: sete características-chave
1. A arquitetura da proteção dos direitos humanos
Os direitos humanos, os mecanismos estatais e internacionais para sua proteção e as organizações e indivíduos que os defendem têm estado no centro das atenções do populismo nacional.
Mais do que uma rejeição direta e frontal da ideia de direitos humanos, governos e partidos nacional-populistas enfatizam a soberania nacional e popular, que afirmam ser ilimitada. Quando mecanismos nacionais e internacionais questionam suas práticas de direitos humanos, o próprio sistema de proteção internacional e suas instituições são criticados, como foi o caso da Corte Penal Internacional nas Filipinas, a Tribunal Europeu de Direitos Humanos na Hungria, e a crescente tensão entre o presidente e o Supremo Tribunal Federal e a Corte Interamericana de Direitos Humanos no Brasil.
2 . Machismo e outras guerras culturais
Uma das estratégias de mobilização popular do nacional-populismo é incentivar a polarização social e política. Para mobilizar partes do eleitorado que estão profundamente ligadas aos valores religiosos e morais tradicionais, o nacional-populismo recorre a um conservadorismo social que exalta os valores e estruturas tradicionais.
O faz em detrimento dos direitos das mulheres – por exemplo, tentativas de restringir o direito ao aborto no Brasil e na Polônia – e da minoria LGBT, um objetivo compartilhado pelos nacional-populismos na Europa Central, no espaço pós-soviético, na África, na Ásia e na América Latina
3. Bodes expiatórios e "inimigos internos"
O nacional-populismo identifica não apenas a elite, mas também as minorias como o inimigo do povo, que apresenta como uma ameaça ao organismo social nacional e como culpados pelos males da população majoritária, como o desemprego.
Os imigrantes são um alvo principal, especialmente na Europa e nos EUA, e estão sujeitos a alguns dos piores abusos cometidos pelos governos nacionais-populistas como, por exemplo, o tratamento de requerentes de asilo e imigrantes irregulares nas fronteiras do sul dos EUA e da Hungria, incluindo crianças.
Há também minorias religiosas e étnicas visadas pelo governo com sua ação, e também com impunidade para aqueles que as atacam, como é o caso dos muçulmanos na Índia ou no Sri Lanka. O poder nacional-populista também aponta outros grupos, com referências mais ou menos disfarçadas contra minorias, tais como os judeus e o povo cigano
4. Estado de direito e separação dos poderes
A redução da democracia a um jogo de maiorias e minorias, e o questionamento constante, em nome da vontade do povo, do equilíbrio de poder e das leis (e acordos internacionais) que impedem o executivo de fazer e desfazer o que quiser é talvez a ameaça populista (neste caso, não apenas nacional-populista) mais clara à democracia. O primeiro objetivo é atacar a independência do Judiciário, uma questão pela qual, por exemplo, o governo da Polônia poderia estar sujeito ao procedimento de sanção da União Europeia.
Da Índia ao Brasil, o Judiciário tem conseguido conter algumas das iniciativas mais prejudiciais para os direitos fundamentais propostas pelo executivo e, no processo, tem sido alvo de ataques de líderes nacionais-populistas e seus apoiadores.
A pressão também afeta outras instituições que não se curvam à hegemonia nacional-populista, sejam elas independentes, tais como bancos centrais, ou autoridades eleitorais, ou outros ramos do governo, tais como o legislativo ou autoridades locais e regionais. Os confrontos institucionais resultantes determinam a evolução dos regimes e sua eventual conversão em ditaduras.
5. Violência sancionada, milícias e impunidade
Uma perspectiva eurocêntrica poderia nos fazer perder de vista o quanto a violência faz parte, de forma indireta, mas relevante, de projetos nacional-populistas. Por um lado, há o encorajamento mais ou menos encoberto da brutalidade policial e até do assassinato, com impunidade garantida de cima, seja nas favelas brasileiras ou nas cidades filipinas assoladas pelo tráfico de drogas. Por outro lado, a criação ou tolerância de milícias armadas para fazer o trabalho sujo de intimidação, seja no Capitólio do Estado de Michigan ou nos bairros de maioria muçulmana na Índia.
Em essência, trata-se de criar laços diretos com as forças armadas, sejam elas oficiais ou para-estatais, estabelecendo uma cadeia de autoridade que transborda instituições e enfraquece as estruturas de controle constitucional, como acontece no Brasil quando a Polícia Militar, sob a autoridade dos governadores de estado, adverte que se "tiverem de escolher entre eles e Jair Bolsonaro, ficam com o presidente da República". Neste ambiente de impunidade e instigação, abusos e assassinatos ocorrem contra as pessoas mais vulneráveis e pobres, e também contra aqueles que se opõem ao projeto autoritário nacional-populista
6. Pluralismo da mídia e debate público
Alguns analistas apontam o nacional-populismo como o principal agente e culpado da degradação do debate público; outros consideram antes que esta degradação explica precisamente o sucesso do populismo nacional.
A maneira mais comum pela qual um regime autoritário emerge não é mais encenando um golpe de Estado, mas esvaziando uma democracia a partir de dentro e do poder
Além deste debate, é perturbador observar como, uma vez no poder, os líderes nacionais-populistas não apenas mantêm e até aumentam seu discurso anti-sistêmico, mas usam sua posição para atacar diretamente as vozes que se opõem a eles e para reduzir o pluralismo na mídia.
Os métodos são diferentes e incluem a conta do Twitter de Donald Trump, uma longa estratégia de compra, cooptação e consolidação da mídia na Hungria, ataques desencadeados pelo "exército digital" liderado pelos filhos de Jair Bolsonaro, a humilhação de jornalistas pelo próprio presidente e a multiplicação de ameaças e ataques a jornalistas sob a presidência de Rodrigo Duterte nas Filipinas
7. Pressão sobre a sociedade civil independente
O aumento da pressão sobre a sociedade civil crítica na última década tem seu foco mais importante na China e na Rússia, duas ditaduras que renunciaram claramente ao modelo de democracia liberal, embora se estenda a dezenas de países, desde grandes potências como a Índia até as pequenas repúblicas do Caribe.
Em muitos casos, paradoxalmente, as restrições são feitas em nome da proteção da democracia contra organizações que são acusadas de servir interesses obscuros e estrangeiros. O discurso nacional-populista é particularmente agressivo em relação às organizações críticas, que acusa de dividir e trair o povo e que vê como um obstáculo na conexão direta entre o líder e a população.
Acusações de tratamento desigual e projetos autoritários: nem tudo é relativo
Estamos em um momento difícil em termos de direitos fundamentais em todo o mundo. No início de 2020, o equilíbrio global parecia desviar para o autoritarismo. Mesmo em países que mantêm a adesão aos princípios de democracia e separação de poder e à ordem global baseada no multilateralismo, incluindo algumas das grandes democracias europeias, tem havido uma deterioração notável no respeito às liberdades fundamentais.
O controle populista sobre a mídia e a sociedade civil está aumentando. A pandemia de Covid-19 criou novas oportunidades para todos os tipos de líderes e governos, particularmente os autocráticos e autoritários eleitos, para ampliar ainda mais seu controle abusivo. Por que, neste contexto, olhar para o nacional-populismo e não simplesmente fazer um inventário de todos os abusos, como fazem muitas organizações dedicadas à defesa dos direitos fundamentais?
Antes de mais nada, é preciso reiterar que, no momento atual, a maneira mais comum pela qual um regime autoritário emerge não é mais encenando um golpe de Estado, mas esvaziando uma democracia a partir de dentro e do poder.
A redução da democracia à expressão ilimitada da vontade popular pode, portanto, ser o primeiro passo para o estabelecimento de uma mera ditadura, muitas vezes personalista. As violações dos direitos fundamentais, que em princípio parecem afetar apenas um grupo em particular (imigrantes muçulmanos na Índia, pessoas transgêneros que querem servir o exército americano, dependentes químicos e pequenos traficantes de drogas nas Filipinas, requerentes de asilo na Hungria), estão se espalhando conforme o país em questão desliza pela encosta autoritária, que começa com a chegada do nacional-populismo ao poder.
O nacional-populismo no poder tem provado ser uma ameaça direta aos direitos fundamentais
Em segundo lugar, não devemos cair na armadilha montada pelos próprios nacional-populistas. O governo de Orbán na Hungria, por exemplo, quando criticado por uma de suas medidas que corroem a democracia, muitas vezes aponta para uma medida semelhante tomada por algum outro país europeu e depois acusa os críticos de tratamento desigual ("dois pesos e duas medidas"). Com esta tática, vem transformando a natureza do regime húngaro ao ponto de ser o único Estado membro da União Europeia considerado apenas "parcialmente livre" pela Freedom House.
Toda medida que resulte em restrições dos direitos fundamentais deve ser criticada, não importa qual governo as execute, mas isso não deve nos fazer perder a perspectiva da existência de projetos autoritários de transformação realizados por líderes políticos e partidos com uma agenda oculta.
Finalmente, é importante ver as semelhanças na maneira como os governos nacionais-populistas corroem as liberdades fundamentais. Estas características comuns deixam clara a ameaça real que representa o nacional-populismo, que é apresentado em cenários democráticos como uma alternativa tão válida e legítima quanto as outras. Mesmo quando à margem ou na oposição política, o nacional-populista tem uma influência negativa nos direitos e liberdades e na igualdade entre as pessoas; mas seu potencial antidemocrático se multiplica quando se trata de poder.
Há cada vez mais ditaduras nascidas do apoio eleitoral popular. O foco deve ser o trabalho dos governos nacionais-populistas e seus efeitos sobre os direitos fundamentais.
Quando o fizermos, veremos que o populismo nacional não ameaça principalmente o status quo e as elites, como promete durante as campanhas eleitorais, mas os direitos e liberdades, primeiramente dos grupos marginalizados e das pessoas mais vulneráveis, e depois de toda a população. O nacional-populismo no poder tem provado ser uma ameaça direta aos direitos fundamentais.
Artigo publicado na revista IDEES Nº 50 "Em defesa da democracia: direitos civis e políticos ameaçados no século XXI", 30 de setembro de 2020. Leia o original em espanhol aqui.
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