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Jogos vorazes do coronavírus no Brasil: comunidades indígenas e sua luta pela sobrevivência

A ameaça do coronavírus aos povos indígenas não pode ser analisada em contexto aparte do histórico de desprezo do governo Bolsonaro.

Flavia Bellieni Zimmermann
Flavia Bellieni Zimmermann
23 Junho 2020, 7.07
Mulheres indígenas no Amazonas com máscaras com a inscrição "Vidas indígenas importam" mostram as máscaras que costuraram em meio à pandemia
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Lucas Silva/DPA/PA Images

Com as infecções por coronavírus no Brasil aumentando de forma alarmante, o país é hoje o segundo com o maior número de casos no mundo, ficando apenas atrás dos EUA. Hoje, o Brasil é o epicentro de vírus da América Latina, com casos superiores a 1 milhão e com um número de mortos superior a 50.000 – de longe o mais alto de toda a América Latina, e o segundo mais alto do mundo. A pandemia fora de controle no Brasil – e o pico ainda a ser alcançado nas próximas semanas – levanta preocupações com a segurança dos brasileiros; e a futura segurança regional e internacional.

Desde o início da pandemia global, o presidente de extrema direita Jair Bolsonaro subestimou a ameaça representada pelo vírus, declarando que a Covid-19 era uma "gripezinha" e afirmando que não estava preocupado em contrair o vírus, por causa de seu "histórico de atleta". Ele também acusou seus inimigos políticos e a imprensa de "enganar o povo" sobre as ameaças colocadas pelo coronavírus.

Em meio a uma pandemia descontrolada, e em um único mês, Bolsonaro presidiu um caos administrativo, demitindo dois ministros da saúde por opiniões divergentes com relação a medidas de distanciamento social, e com relação ao uso do medicamento contra a malária hidroxicloroquina para pacientes com coronavírus. Hoje, o ministro interino da Saúde é Eduardo Pazuello, um ex-general sem qualquer formação médica.

De várias maneiras, a resposta de Bolsonaro ao coronavírus é semelhante a do seu contraparte nos EUA, Donald Trump. Sua agenda ideológica, no entanto, pode ser ainda mais destrutiva para as instituições democráticas e grupos minoritários no Brasil. Ao dar um viés ideológico à pandemia global, o governo compromete a resposta do Brasil à crise, criando caos político e institucional generalizado. Um ponto negligenciado nessa tragédia é a questão dos povos indígenas do Brasil durante esta crise.

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Comunidades indígenas ameaçadas

Bolsonaro é conhecido por sua plataforma ideológica ao lidar com as comunidades indígenas no Brasil. Ele deixa claro desde o início de seu governo sua intenção de “integrar” os povos indígenas e manifesta preocupações por viverem em “comunidades isoladas”. No ano passado, Bolsonaro declarou em um tuíte que os povos originários do Brasil são "explorados" por ONGs internacionais. "Mais de 15% do território nacional é demarcado como terra indígena e quilombolas. Menos de um milhão de pessoas vivem nestes lugares isolados do Brasil de verdade, exploradas e manipuladas por ONGs". Em outro momento, Bolsonaro disse: “Temos área maior do que a região Sudeste no Brasil como terra indígena. Reserva Ianomami é duas vezes o tamanho do Rio de Janeiro para nove mil indígenas. Não parece algo anormal?”

A FUNAI mudou suas diretrizes sobre demarcações de terras de povos indígenas, tornando-as cada vez mais difíceis de implementar

Bolsonaro prometeu não demarcar nem “um centímetro quadrado” do vasto território amazônico brasileiro para as comunidades indígenas. Seguindo essa linha de pensamento, Bolsonaro afirma que devemos “integrar” os índios, afirmando que “o índio quer médico, quer dentista, quer televisão, quer internet. Vamos proporcionar meios para que o índio seja igual a nós".

Para complicar ainda mais as coisas, Bolsonaro fez promessas de regularizar o garimpo em todo o país, incluindo em terras indígenas. No ano passado a tribo Waiãpi no Amapá foi invadida por garimpeiros na mesma época que o líder indígena Emyra Waiãpi foi encontrado morto. A Polícia Federal está investigando o caso, mas Bolsonaro afirma que “não tem nenhum indício forte” de que ele foi assassinado, uma declaração que ignora os casos de violência relatados pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI). Em relatório, a agência informou que 15 homens fortemente armados invadiram as reservas indígenas.

No ano passado, Bolsonaro nomeou um novo presidente para o órgão, Marcelo Xavier da Silva, que mantém laços estreitos com o agronegócio brasileiro, causando protestos de ativistas de direitos humanos em todo o mundo. Em abril deste ano, a FUNAI mudou suas diretrizes sobre demarcações de terras de povos indígenas, tornando-as cada vez mais difíceis de implementar. Críticos argumentam que essas novas diretrizes subvertem os objetivos e princípios da fundação, que é o de proteger os interesses e direitos dos povos indígenas do Brasil.

Povos indígenas durante a pandemia

Com casos confirmados nas comunidades indígenas do Brasil, existem grandes preocupações de que comunidades inteiras poderiam ser exterminadas por não terem imunidade ao vírus da gripe. Os relatos são alarmantes: há mais de 446 casos e 92 mortes entre comunidades indígenas na região amazônica, com números ainda em ascensão. Mas com baixas taxas de teste, os casos e o número real de mortes permanecem subnotificados.

A falta de controle da extração ilegal de madeira em áreas protegidas e não protegidas aumentou a vulnerabilidade dos povos indígenas às infecções por coronavírus

Indiscutivelmente, a falta de controle da extração ilegal de madeira em áreas protegidas e não protegidas aumentou a vulnerabilidade dos povos indígenas às infecções por coronavírus. Segundo um estudo, terras indígenas não demarcadas oficialmente criam incerteza e aumentam a extração de madeira, mineração e outras atividades ilegais, expondo as comunidades indígenas a um maior risco de contaminação.

Outra preocupação é a falta de infraestrutura no Amazonas, que agora tem mais de 63.700 casos de coronavírus. O número de mortos na cidade de Manaus é tão alto que caixões vinham sendo empilhados em valas comuns no cemitério da cidade. A associação funerária nacional do Brasil pediu que caixões fossem transportados de avião de São Paulo para Manaus, já que não há acesso rodoviário. A saúde pública do estado está em colapso, com 90% dos leitos de UTI ocupados.

O desprezo demonstrado por Bolsonaro e seu círculo em relação à população indígena ficou em total evidência em um recente vídeo de uma reunião ministerial – divulgado à imprensa após uma decisão do ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF). Nessa filmagem, o presidente e alguns de seus ministros são vistos menosprezando os povos indígenas.

O ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles infamemente sugeriu que o governo deveria usar a pandemia, uma vez que a imprensa está focada no coronavírus, para “ir passando a boiada e mudando todo o regramento e simplificando normas”. O agora ex-ministro da Educação, Abraham Weintraub, não é menos insensível no vídeo, afirmando que "odeia" o termo povos indígenas. Ele enfatiza: “odeio o termo 'povos indígenas', odeio esse termo. Odeio. O 'povo cigano'. Só tem um povo nesse país (...) É povo brasileiro, só tem um povo (...) Acabar com esse negócio de povos e privilégios”.

Bolsonaro demonstra seu desdém pelos povos indígenas há tempos. Em dezembro, ele disse:  "Há anos o terminal de contêiner do Paraná, se não me engano, não sai do papel porque precisa agora também de um laudo ambiental da FUNAI. O cara vai lá e se encontrar, já que tá na moda, um cocozinho petrificado em índio, já era, não pode fazer mais nada ali” afirmou. "Temos que acabar com isso no Brasil, integrar o índio à sociedade e buscar o projeto pro Brasil", finalizou o presidente.

Crises geram oportunidades sinistras. Seria a crise do coronavírus um desses casos? Bolsonaro usa cada vez mais a pandemia como uma oportunidade para avançar sua plataforma ideológica ao lidar com os povos originários do Brasil. As comunidades indígenas, e seu direito de autodeterminação, estão pendurados por um fio no governo orwelliano de Bolsonaro; e sua cruzada ideológica continua avançando – uma tendência política que não mostra sinais de recuo no futuro próximo.

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