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Justiça Militar, intervenção e direitos humanos no Brasil

A proteção institucional da impunidade e do corporativismo através da Justiça Militar combina o aumento da violência e do autoritarismo com a erosão da democracia e do Estado de Direito no Brasil. Español, English

Andrés del Río Roldán Juliana Cesario Alvim Gomes
3 Julho 2018
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Um policial com um machado de assalto na Favela do Macaco, no Rio de Janeiro, Brasil, uma missão anti-gangue responsável pela violência e crime na cidade. Imagem: Humberto Ohana / PA Images, Todos os direitos reservados.

Chacinas e outras violações aos direitos humanos[1]

As chacinas (ou massacres) no Brasil nos exibem a relação que entre a ampliação da justiça militar e a impunidade. . O debate gira em torno da expansão da competência da Justiça Militar (e não da justiça comum) para julgar crimes envolvendo civis – sejam eles réus ou vítimas de violações de direitos cometidas por integrantes das Forças Armadas.

Mas as chacinas longe estão de ser eventos isolados. A violência aumentou desde a intervenção federal no Rio de Janeiro, iniciada em fevereiro de 2018. Segundo o relatório do Observatório da Intervenção[2], os resultados são alarmantes: de 16 de fevereiro a 15 de abril, foram registrados 1.502 disparos e tiroteios, que produziram 284 mortos e 193 feridos. O período anterior, de 16 de dezembro a 15 de fevereiro, registrou 1.299 eventos. O Fogo Cruzado também registrou 12 chacinas, com 52 vítimas nesses dois meses. No mesmo período em 2017, houve seis chacinas, com 27 mortos.

Há grandes riscos de que a multiplicação da violência se consolide em impunidade ampla. Neste sentido, os altos mandos das Forças Armadas estabeleceram o horizonte tanto territorial como institucional do processo de militarização. Por um lado, não estaria limitado ao Rio de Janeiro. Como indicou o interventor federal na Segurança Pública no Estado do Rio de Janeiro, general do Exército Walter Souza Braga Netto: “O Rio de Janeiro, ele é um laboratório para o Brasil”[3]. Por outro, demandaria verdadeira blindagem institucional. As palavras do comandante do Exército general Eduardo Villas Bôas são diretas ao declarar ser necessário dar aos militares “garantia para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade”[4]. Para tanto, a expansão da competência da Justiça Militar – embora pouco discutida – é crucial.

Justiça Militar: origem autoritária e organização corporativa

Historicamente, a estrutura principal da Justiça Militar conviveu com tribunais militares ad hoc que, durante o Império e a República Velha, foram largamente utilizados para enfrentar movimentos de contestação política[5]. Desde a origem da Justiça Militar, seus órgãos eram compostos, em sua maioria, por militares. Nos primeiros tempos, contudo, o Conselho Supremo Militar e de Justiça estava inserido na estrutura do Poder Executivo, desempenhando funções preponderantemente administrativas.

Jorge Zaverucha e Hugo Cavalcanti Melo Filho chamam atenção para o fato de que, com o crescimento das atividades jurisdicionais, observou-se uma tendência à redução do número de ministros militares e sua progressiva equiparação com o número de ministros civis, o que finalmente alcançado com a reforma constitucional de 1926. Entretanto, com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, operou-se uma virada autoritária que não foi revertida nos períodos de democratização ulteriores, tendo se enrijecido durante a ditadura militar, por meio do Ato Institucional nº 2, de 1965[6].

A Constituição Federal de 1988 manteve praticamente inalterado o arranjo institucional estabelecido para a Justiça Militar da União durante o regime autoritário instaurado em 1964.

Atualmente, são órgãos da Justiça Militar os Tribunais e Juízes Militares instituídos por lei (primeira instância) e o Superior Tribunal Militar (segunda instância). A Lei de Organização da Justiça Militar, por sua vez, estabelece que os conselhos de primeira instância serão compostos por um juiz civil e quatro militares. Do juiz civil, exige-se formação jurídica e ingresso na carreira por concurso público, dos militares, apenas que sejam da ativa. O mesmo vale para a segunda instância, composta por 10 militares e 5 civis.

Militarização da Justiça: a expansão da competência da Justiça Militar

A Constituição de 1988 apenas estabelece que à Justiça Militar “compete processar e julgar os crimes militares definidos em lei”. É a lei quem define o que são os crimes militares e, logo, o que estará sob a competência da Justiça Militar. Duas dessas leis são legados diretos do regime autoritário instaurado em 1964: o Código Penal Militar e o Código de Processo Penal Militar.

É o primeiro que estabelece, por exemplo, que crimes cometidos por civis “contra as instituições militares” são considerados “ crimes militares” e que, portanto, estarão sob a responsabilidade da Justiça Militar (e não da Justiça comum). Esses vícios de origem (autoritária) da Justiça Militar jamais foram expurgados pela ordem democrática de 1988, seja pela via legislativa, seja pela via judicial. Desde 2013, há ação no Supremo Tribunal Federal questionando, por exemplo, a competência da Justiça Militar para julgar civis (ADP 289).

Outras ações questionam inovações legislativas que, nos últimos anos, ampliaram ainda mais a competência da Justiça Militar[7]. Tais ações atacam, por exemplo, normas como a da Lei Complementar n. 117 que, em 2004, estabeleceu expressamente que o emprego das Forças Armadas na Garantia da Lei e da Ordem (GLO) seria considerado atividade militar para fins de aplicação da competência da Justiça Militar e a da LC n. 136 de 2010 que atribuiu caráter de “atividade militar” ao emprego das Forças Armadas em “atividades subsidiárias”, que abrangem a atuação “contra delitos transfronteiriços e ambientais” e, igualmente, a “repressão aos delitos de repercussão nacional e internacional”. Recentemente, o STF começou a julgar ação direta de inconstitucionalidade n. 5032, que busca afastar a competência da Justiça Militar nesses casos. Na ocasião, o ministro Marco Aurélio, relator da ação, indicou que a competência da Justiça Militar nas hipóteses de GLO e combate ao crime seria constitucional e o ministro Fachin divergiu. O exame da matéria foi suspenso por pedido de vista do ministro Luís Roberto Barroso[8]. Até que decida definitivamente no sentido da inconstitucionalidade da legislação que a respalda, o Supremo autoriza o uso expansivo da Justiça Militar.

Na última década, essa legislação foi amplamente aplicada no Rio de Janeiro durante o uso da Força Nacional para missões de “pacificação social” nas favelas, que registraram diversos episódios de violência por parte de integrantes das Forças Armadas contra as populações locais.[9]

Mais recentemente, em julho de 2017, com o recrudescimento da violência e do discurso de necessidade de endurecimento da repressão à criminalidade, o Governo Federal editou decreto autorizando o emprego das Forças Armadas em funções de segurança pública no Estado do Rio de Janeiro, inicialmente até 31 de dezembro de 2017 e, após prorrogação, até o final de 2018. A convocação das Forças Armadas para tarefas de segurança e até mesmo em unidades prisionais tem sido frequente.

Nesse cenário, entrou em vigor a Lei 13.491 de outubro de 2017, sancionada pelo presidente Michel Temer. A nova legislação ampliou, mais uma vez, o conceito de crime militar. Dessa vez para abranger o homicídio doloso (com intenção de matar) perpetrado por militares das Forças Armadas contra civis.

Com a mudança, a Polícia Civil não tem mais atribuição para dirigir investigações que envolvam soldados que matam em exercício das suas funções ou em atividades subsidiárias como na segurança pública ou policiamento. As investigações e o julgamento dos crimes – antes submetidos a um júri – ficaram, desde então, na esfera militar. A nova lei, mesmo violando frontalmente o dispositivo constitucional que estabelece a competência do júri nesses casos, continua em vigor. E as ações que questionam sua constitucionalidade permanecem sem previsão de julgamento no Supremo (ADI 5804 e ADI 5901).

Mas essa é apenas uma das leis que compõem a constelação legislativa que gradualmente fortalece a impunidade de agentes do Estado que cometem violações a direitos fundamentais da população civil.

Nesse sentido, à própria intervenção federal no Rio de Janeiro foi atribuída “natureza militar” pelo decreto que a instaurou e nomeou como interventor um general da ativa que passou a acumular a nova função – em que atuará como o Secretário de Segurança – com o cargo de Comandante Militar do Leste[10].

Simbolicamente, a expansão progressiva da Justiça Militar – sobretudo nas relações com civis - nega à sociedade brasileira a oportunidade de consolidar seu rompimento com as amarras do autoritarismo e seu compromisso com a democracia e os direitos fundamentais. Na verdade, no atual contexto, reforça um retorno a esse autoritarismo que vem se manifestando no plano político e social, como revela a recente intervenção no Rio de Janeiro.

O Horizonte no Brasil

A militarização da política de segurança tem sido uma característica cada vez mais acentuada. E o Rio de Janeiro é apenas o primeiro passo, segundo as declarações do general Villas Boas acima. Inócuo para os fins que se propõe. E perigoso, sim, ao promover o aumento da violência. Violência, claro, com raça, classe e endereço.

Aliada à expansão da Justiça Militar, a violência perpetrada se consolida em impunidade, diante do silêncio de instituições como o Supremo Tribunal Federal.  Como vimos, a Justiça Militar, cuja competência vem sendo expandida nos últimos anos, é parcial e cara. Sem independência e imparcialidade para lidar com civis, representa uma porta que nos deixa mais vulneráveis como sociedade.

A proteção institucional da impunidade e do corporativismo via Justiça Militar nos apresenta um horizonte trágico em que se conjugam o aumento da violência e do autoritarismo e a erosão da democracia e do Estado de Direito.

______


[1] Uma versão ampliada pode ser encontrada:  https://bit.ly/2sYjmL4

[2] RAMOS, Silvia (coord.). À deriva: sem programa, sem resultado, sem rumo. Rio de Janeiro: Observatório da Intervenção/CESec, abril de 2018.

[3] Interventor federal diz que 'Rio é um laboratório para o Brasil'. G1, Rio de Janeiro. 27 de Fevereiro de 2018. Disponível: https://glo.bo/2HRsVBk

[4] 'Militares precisam ter garantia para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade', diz comandante do Exército. G1, Rio de Janeiro. 19 de Fevereiro de 2018. Disponível: https://glo.bo/2ocm51e

[5] Moreira Domingues da Silva, Ângela. (2013), Histórico da Justiça Militar brasileira: foro especial e crime político. Disponível: https://bit.ly/2IqilkW

[6] Zaverucha, Jorge; Melo Filho, Hugo Cavalcanti. Superior Tribunal Militar: entre o autoritarismo e a democracia. Dados [online]. 2004, vol.47, n.4, pp.763-797. ISSN 0011-5258. 

[7] Cesário Alvim Gomes, Juliana. (2017), Os retrocessos de Temer e o silêncio do Supremo. JOTA.  20 de Outubro de 2017. Disponível: https://bit.ly/2jZBRtY

[8] STF começa a julgar lei que amplia competência da Justiça Militar. Consultor Jurídico. 7 de abril 2018. Disponível: https://bit.ly/2IpKdFJ

[9] Veja-se, por exemplo, Folha de São Paulo. “Exército nega acusação de violência em favela e diz que vai continuar ocupação. 16.06.08. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u413007.shtml.; Forças Armadas assumem ocupação de 15 comunidades da Maré, Rio. G1, Rio de Janeiro. 5 de abril de 2014. Disponível: https://glo.bo/1kaUU0J; Moradores protestam após Exército matar homem em favela da Maré, no Rio. R7, Rio de Janeiro. 12 de abril de 2014. Disponível: https://bit.ly/2k3rup4

[10] Decreto n. 9.288, de 16 de fevereiro de 2018. Disponível: : https://bit.ly/2IKY9NR

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