democraciaAbierta

Pós-conflicto na Colômbia (18): Amnistias e indultos no processo de paz

O sistema de justiça criado na mesa de negociações para prestar contas é complexo e exigirá um grande esforço para que a sua implementação cumpra as expetativas criadas. English Español

Nelson Camilo Sánchez
22 Setembro 2016
PA-28696361_1.jpg

O Presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, entrega uma cópia do acordo de paz a Ban Ki-Moon, Secretário Geral da ONU. 19 setembro 2016. AP Photo/Craig Ruttle.

O acordo final assinado entre o governo colombiano e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) suscitou um grande interesse da comunidade internacional em relação à fórmula da justiça negociada entre as partes. Isto era expectável uma vez que não é normal que dois adversários não vencidos em hostilidades armadas pactuem um mecanismo de prestação de contas de natureza penal. O normal teria sido o contrário: que se pactuassem formas de perdão ou amnistia geral de forma bilateral, ou que se estabelecessem mecanismos onde a parte vencedora julgaria a parte vencida.

O sistema de justiça criado para prestar contas é complexo, porque, por um lado, incluiu diferentes mecanismos (uma comissão de verdade, uma unidade de procura de pessoas desaparecidas e um sistema de justiça criminal chamada Jurisdição Especial para a Paz-JEP). Por outro lado, o sistema não inclui fórmulas definitivas ou extremas dado que é o produto de uma negociação. Não acolhe um sistema retributivo maximalista (onde todos os ex-combatentes ou todos aqueles que participaram nos delitos devem ser julgados e devem ir para a prisão), mas também não acolhe uma amnistia geral e indeterminada. Tem mecanismos de prestação de contas em diferentes graus, dependendo de fatores tais como:

  1. A gravidade do delito (delitos mais graves serão julgados e sancionados)
  2. A natureza da participação no mesmo (a ação penal concentrar-se-á naqueles que tenham tido uma participação determinante nos delitos mais graves)
  3. O grau de compromisso de quem se apresenta perante a justiça tanto com o processo de paz como com os direitos das vitimas (quanto maior a contribuição e participação, maior a possibilidade de obter benefícios punitivos)

Por esta razão, o sistema da JEP está composto por mecanismos como (i) salas de prestação de contas, nas que se espera que através de procedimentos céleres, os funcionários judiciais outorguem benefícios punitivos tais como amnistias, indultos y cessações de procedimentos penais; (ii) um tribunal judicial propriamente dito que se encarregará de julgar a responsabilidade dos participantes principais dos delitos mais graves, assim como de lhes impor uma sanção; e (iii) um mecanismo de amnistia, indulto e excarceração antecipada para aqueles que tenham sido julgados ou estejam a ser processado por delitos considerados como menos graves.

Tendo isto em conta, se bem que o sistema pactuado não se acolhe a uma amnistia geral e indeterminada, estabelece uns determinados mecanismos de amnistia e perdão punitivo para delitos e pessoas determinadas.

Amnistia e indulto na Colômbia e no Mundo

Atualmente, no uso comum do direito internacional e comparado entendesse por amnistia penal toda aquela atuação que impede que se realize um julgamento ou se chegue ao castigo de quem cometeu um determinado delito. Neste sentido, a palavra amnistia usa-se como um termo genérico para qualquer medida que pretenda evitar que um delito ou autor seja processado (como poderia ser uma lei geral da amnistia, ou a decisão dum procurados ou juiz que determine não iniciar ou continuar um processo), ou que impeça que se implemente o castigo (como poderia ser uma condena muito leve para um delito grave que a torne completamente desproporcionada, ou o perdão do castigo de una condena já imposta).

A tradição jurídica colombiana interpreta o termo de forma mais estrita, por isso, o acordo reflete a terminologia penal tradicional colombiana, o que pode confundir uma audiência internacional não especializada. 

Em primeiro lugar, na Colômbia sempre se distinguiu entre amnistia e indulto. O primeiro termo reconhece a não iniciação ou cessação do procedimento em curso, mas onde ainda não se ditou uma condena. O segundo, refere-se ao perdão judicial de que já foi condenado, incluindo aqueles que podem ter pago parte da sanção e se lhes perdoa o cumprimento do resto.

No constitucionalismo colombiano existe uma longa tradição de reconhecimento de amnistias e indultos, mas restringidos a delitos políticos e similares, sempre e quando estes delitos não incluíssem “crimes atrozes”. Os delitos políticos são cometidos por aqueles que se rebelam com armas contra o Estado (os clássicos insurgentes). A tradição jurídica entendeu que para que a rebelião se produza é natural que a insurgência recorra a uma serie de atividades geralmente ilícitas que são necessárias para manter, financiar e executar a sua gesta. Estos últimos delitos são classificados como delitos conexos. Geralmente excluiu-se do reconhecimento como delitos conexos os crimes atrozes como os homicídios cometidos fora de combate ou que envolveram o aproveitamento da incapacidade da vitima de se defender.

A Constituição de 1991 manteve esta tradição jurídica e, por tanto, somente admite amnistias e indultos que cumpram com as restrições anteriormente assinaladas. A Constituição delegou a função de conceder amnistias ao poder legislativo (artigo 150.17 da Constituição) enquanto que o indulto é uma função tanto do poder legislativo (artigo 150.17) como o Governo (artigo 201.2). Em consequência, na Colômbia, somente se podem outorgar indultos ou amnistias aos guerrilheiros que se desmobilizem e, somente, por aqueles delitos que sejam políticos ou conexos. Desta forma excluem-se tanto os delitos graves como aqueles que foram cometidos por agentes do Estado ou civis que não eram parte das guerrilhas.

Acordo de paz e lei de amnistia

A questão da amnistia foi objeto duma amplia discussão na mesa de negociações. Especialmente para as FARC, reconhecer a amnistia por delitos políticos não só tinha um conteúdo político simbólico muito importante (reconhecer que a sua luta armada teve uma motivação politica), mas também pragmático (ter uma forma de segurança jurídica de que não se iniciarão processos no futuro pelo facto das partes terem sido guerrilheiros). Por estas razões, as FARC promoveram uma “amnistia o mais amplia possível” nos termos do artigo 6.5 Protocolo II das Convenções de Genebra. Além disso, a insurgência exigiu que o processo de desarme deveria estar ligado à ratificação da lei de amnistia para evitar que depois do abandono das armas os ex-combatentes fossem traídos e processados por aqueles delitos que não foram considerados como os mais graves.

No acordo sobre justiça (onde se criou a JEP) estabeleceu-se que se outorgará (i) uma amnistia ampla por delitos políticos e conexos àqueles se que desmobilizem das FARC; (ii) uma extinção da ação penal ou suspensão de condenas àqueles que ano sendo parte das FARC foram condenados pelos mesmo delitos; e (iii) medidas similares de extinção da ação penal ou da sanção àqueles agentes do Estado, como medida equivalente às amnistias que se outorgam aos insurgentes.

As regras específicas destas medidas foram posteriormente estabelecidas num documento anexo (elevado a acordo especial segundo o estabelecido pelo artigo 3 das Convenções de Genebra) que será apresentado perante o Congresso para que, uma vez aprovado o plebiscito que daria via livre à implementação do acordo, seja aprovado como a primeira lei de regulamentação do acordo. As principais características desta regulamentação são:

  1. Em nenhum caso e por nenhum motivo serão objeto de amnistia ou tratamento equivalente aqueles atos que constituam crimes internacionais, ou seja, crimes de genocídio, contra a humanidade ou crimes de guerra sistemáticos. Estes crimes serão julgados e aos seus responsáveis ser-lhe-á aplicada uma sanção que poder ir desde a prisão até a restrição de liberdades para o cumprimento de uma pena restauradora e reparadora.
  2. Não serão objeto de amnistia crimes que sem ser graves não estejam diretamente ligados ao conflito armado. Por tanto, não poderão ser conexos com a rebelião crimes que tenham sido cometidos com animo de lucro pessoal, em beneficio próprio ou de um terceiro. Também não passarão pelo sistema os delitos cometidos por civis ou agentes do Estado que não tenham sido cometidos por causa, devido a, ou com uma relação direta ou indireta com o conflito armado.
  3. O tratamento especial que poderá ser outorgado poderia ser: (i) a amnistia para os ex-combatentes rebeldes; (ii) renuncia à perseguição penal, a segurança de que não se lhes abrirão processo futuros; (iii) cessação do procedimento aos que estejam a ser processados; e (iv) extinção da responsabilidade por cumprimento da sanção, para aqueles que tenham sido condenados e a pena que já tenham pagado seja superior de forma importante à que estabelece o acordo.
  4. O procedimento para o outorgamento de amnistias divide-se em dois. Por um lado, uma automática (que se chama em termos jurídicos, De Iure), que se outorgará aos delitos políticos e aos conexos mais óbvios (quer dizer, aqueles onde não há dúvidas de que cometeram com um fim altruísta de rebelião ou com animo de lucro pessoa). Por outro lado, a determinação de conexos difíceis (onde sim existe essa dúvida) cujos casos serão estudados pela jurisdição especial para a paz para decidir se se aplica ou não a amnistia.
  5. Com as amnistias e o equivalente para os agentes do Estado, que se denomina “renuncia à perseguição penal para agentes do Estado” produzir-se-ão as excarcerações de todas aquelas pessoas que estejam por tais motivas privadas de liberdade.
  6. Para aceder à amnistia de ex-guerrilheiros como a renuncia à perseguição penal de agentes do Estado, cada um deles deverá comprometer-se com o sistema em matéria de reparação, verdade e garantias de não repetição.
  7. Os militares que tenham sido condenados por crimes internacionais e decidam fazer parte do sistema, sempre e quando se comprometam com a verdade das vitimas e a sua reparação, terão um tratamento prisional especial em unidades militares ou policiais. Um militar que se acolha ao regime de justiça especial para a paz só poderá reingressar na Força Pública se for a tribunal e não for condenado pelo mesmo.  
  8. Os civis que foram condenados por atos de rebelião, conexos e delitos associados à protesta social tais como a perturbação do transporte publico ou danos produzidos a bens alheios poderão candidatar-se ao a este regime sem a obrigação de considerar-se a si mesmos como membros das FARC ou que este grupo os inclua na lista de combatentes.

Nestes termos, o acordo delineia um sistema complexo que, em principio, não choca com o direito internacional vigente. Assim o ratificou a Procuradora Geral da Corte Penal Internacional num recente comunicado em que “apreciou com satisfação que o texto final do acordo de paz excluiu amnistias e indultos para crimes que lesaram a humanidade e crimes de guerra sob o Estatuto de Roma”. Mas ao mesmo tempo este grau de satisfação exigirá um grande esforço para que a sua implementação cumpra as expetativas criadas e não se converta numa promessa incumprida, tanto para as vitimas como para aqueles que de boa-fé se submeterem ao mesmo. Falta um longo caminho por percorrer; e muito trabalho por fazer. 

Se gostaste deste artigo segue-nos no Facebook e no Twitter.

Assine nossa newsletter Acesse análises de qualidade sobre democracia, direitos humanos e inovação política na América Latina através do nosso boletim semanal Inscreva-me na newsletter

Comentários

Aceitamos comentários, por favor consulte ás orientações para comentários de openDemocracy
Audio available Bookmark Check Language Close Comments Download Facebook Link Email Newsletter Newsletter Play Print Share Twitter Youtube Search Instagram WhatsApp yourData