
Cristina Kirchner e Lula da Silva durante um encontro na Casa Rosada. 10 Setembro 2015. Buenos Aires, Argentina. Gabriel Rossi/LatinContent/Getty Images. All rights reserved.
É sempre nos pilares da história que devemos ler o presente e pensar no futuro. O período 2000-2015 deve interpretar-se também nesta perspetiva, a do passado recente, a perspetiva da preguntas às que respondemos e às que falta por responder.
Na transição entre os séculos XX e XXI vivemos um sobressalto que teve que ver com a ideia do fim dum ciclo e o começo de outro. Foi um enterramento sem honras e um bautismo com fanfarras. Voltava a pairar sobre as nossas cabeças a palavra revolução, palavra intensa porque inclui a presunção de que quem a encarna é portador da mudança, uma mudança definitiva que vem acompanhada duma verdade revelada. Quem a expressa não pode aceitar que essa verdade absoluta possa ser questionada e ainda menos que possa ser substituída por outra. Os possuidores dessa verdade chegaram motivados pelo voto popular que lhes outorgou legitimidade, mas deram como certo que dito voto se ia reproduzir sem limites e que com o mesmo tinham chegado para ficar.
A história, já seja vista desde a perspetiva ocidental, a dialética, já seja vista desde a perspetiva indígena, o processo cíclico dos sóis que nascem e morrem, ensinou-nos que não é possível supor que uma vez chegado ao alto, nada mudará. Isto já aconteceu nos anos noventa do século passado, perante a sugestiva provocação de Fukuyama. Não há fim da historia, salvo – claro – que a espécie humana se extinga. A grande insuficiência dos líderes messiânicos foi, em consequência, não entender a raiz da sua própria postura, tao latino-americana, de que os ciclos se esgotam inevitavelmente.
Socialismo do século XXI no ciclo de bonança
Uma análise superficial dos projetos mais notáveis da America do Sul permite constatar alguns fatores. A vigorosa proposta de Chávez (1999-2013) inspirador do denominado socialismo do século XXI – cujas características nunca puderam ser situadas ideologicamente como o fizeram, por exemplos, as características da Revolução Cubana – terminou, não com a sua morte, mas sim com o seu sucessor, Nicolás Maduro, herdeiro duma crise económica estrutural que não pôde dominar e que levou a Venezuela à pior crise da sua história republicana. Em dezembro de 2015 esta realidade viu-se refletida na estrepitosa derrota parlamentária do oficialismo.
A postura menos grandiloquente e aparentemente mais sólida, desde uma esquerda pragmática, encarnada por Lula da Silva (2003-2010), cujos êxitos na luta contra a pobreza e a incorporação de milhões de brasileiros na classe média foram significativos, pareciam indicar uma consolidação do PT sob a presidência de Dilma Rousseff (no cargo desde 2010). Isto não aconteceu. A crise brasileira ameaça com levar à frente a Presidenta e o próprio Lula, que está sob investigação por corrupção. Nestor y Cristina de Kirchner (2003-2015), que pareciam ter encontrado o mecanismo perfeito entre a alternância de esposo a esposa, enfrentaram-se, tal como a Venezuela, à implacável realidade do imperativo biológico e o desgaste de três governos que terminaram com a ajustada vitória do liberal Maurício Macri em dezembro de 2015. O Presidente Rafael Correa (2006) num contexto político social difícil anunciou que não se candidatará à reeleição em 2017. Evo Morales (2006) sofreu a sua primeira derrota eleitoral em dez anos num referêndum que pretendia habilitá-lo a concorrer a um quarto mandato (2020-2025). O Presidente adiantou que queria saber se o povo o queria ou não…
Se falta um exemplo similar, este poderia encontrar-se fora da América do Sul na visita do Presidente Obama a uma Cuba presidida por Raul Castro, quase sessenta anos depois do triunfo da Revolução anti-imperialista por excelência.
O radicalismo do discurso não foi sempre de mão dada com os acontecimentos e, muito provavelmente, não teria conseguido parte do que se consegui no período 2005-2015 sem o impulso dos preços internacionais das matérias primas, os mais altos de toda a história independente da região, especialmente benéficos para a América do Sul. O discurso duro contra a ortodoxia neoliberal dos anos noventa, tinha um suporte externo que permitiu que o legitimo compromisso para com a dívida e consequente investimento social, conseguisse resultados significativos graças aos rendimentos obtidos por exportações que multiplicaram por cinco os rendimentos das três décadas anteriores.
Dito cenário permitiu a reafirmação do Estado como grande protagonista não só de políticas públicas de carácter social, especialmente em saúde e educação, mas também no alargamento da presença estatal na economia, não já como regulador, mas sim como empresário, recuperando alguma das características do capitalismo de Estado que – na lógica da força duma economia mista – tinha impulsado o CEPAL nos anos cinquenta e sessenta do século XX. Contudo, seria injusto afirmar que todo o mérito foi exógeno. Não. É óbvio que se aplicaram políticas deliberadas e que, em muitos casos, se administrou com sensatez dita bonança.
O resultado mensurável teve que ver com uma modesta diminuição da desigualdade (tendo em conta que a América Latina ainda é a região mais desigual do mundo), uma diminuição relevante e mais além do esperado da pobreza extrema e da pobreza moderada, um crescimento da classe média (ainda frágil pela quantidade de pessoa que saíram da pobreza, mas que está numa linha precária entre a pobreza e a classe média), com a incorporação de quase 60 milhões de latino-americanos a esse novo status. A consequência foi, complementarmente, o crescimento do consumo e o consequente aumento da poupança e da demanda interna gerando, gerando mudanças importantes nas estruturas econômicas dos países mais pequenos da região.
Passado pós-ditatorial
Nos tempos que correm nos quais se desqualifica tudo o que foi feito anteriormente a estes processos políticos de transformações que se iniciaram com o novo milênio, vale a penar fazer uma análise justa do passado pós-ditatorial na região. Os anos oitenta, por exemplo, foram sempre classificados como a década perdida, devido a pesada herança de dívida externa que impossibilitou recuperar o crescimento e melhorar a distribuição de recursos na sociedade, mas, esquece-se como muita facilidade que desde o ponto de vista político foi uma década bem aproveitada, ganha para a democracia, para a liberdade, para os valores cidadãos e para a aplicação da Constituição, que tinha sido arquivada ou pisada pelos governos militares que dominaram o continente durante quase duas décadas (65-80).
Não é razoável fazer uma leitura da história como se se tratasse dum livro de banda desenhada, dividindo o mundo entre bons e maus, heróis e vilões. Cabe dizer que o êxito dos países que combinaram um discurso radical com um manejo prudente da econômica, tem alguma relação com a herança positiva dos anos de liberalismo econômico (os noventa), a constatação de que uma administração responsável da macroeconomia é uma condição indispensável ainda que não suficiente para qualquer projeto político seja qual seja a natureza do mesmo. Políticas macroeconómicas consistentes, políticas monetárias flexíveis e adequadas a cada contexto, não são – lição aprendida – imposições do FMI ou do Banco Mundial, não tendo que ver com quão de esquerda ou de direita se considera um governo, mas sim uma parte imprescindível duma correta administração do Estado. Talvez o exemplo mais ilustrativo das consequências de não entender esta premissa seja a realidade venezuelana atual.
Não supõe um detalhe insignificante recordar que nessa década, a dos noventa, num país como a Bolívia, se geraram mudanças estruturais muito significativas, entre as quais a consolidação das autonomias municipais que originariam as autonomias indígenas, a educação intercultural e bilíngue e uma reforma agraria que reconheceu as terras comunitárias de origem nas terras baixas e as terras de comunidade dos Andes, além da função econômica e social da terra. Nenhuma destas medidas pode ser classificada como “neoliberal”.
Das “verdades reveladas” à procura da nova política
Voltemos ao ponto de partida, o das “verdades reveladas” e da história cíclica. No mundo interligado, dinâmico e em continua mudança, no qual as capacidades de adaptação são um requisito imprescindível para sobreviver, afirmar que o Estado empresário, ou as nacionalizações, ou o estatismo como premissa dominante, são parte dum processo irreversível, supõe não entender a realidade. Não há possibilidade de afirmações categóricas e dogmas incontrastáveis. Na política econômica, especialmente no cenário dominado pela economia de mercado, tem que se ser capaz de dar respostas rápidas e inteligentes para proteger os melhores interesses de cada sociedade e não estar ao serviço de premissas ideológicas preestabelecidas. Às vezes com mais Estado, e às vezes com menos Estado.
Outra coisa muito diferente, desde o ponto de vista conceitual, são os êxitos sociais vinculados à responsabilidade estatal em áreas tais como a saúde, educação, saneamento básico e redistribuição da riqueza. O caminho avançado até ao fim da discriminação e uma maior inclusão econômica é sem dúvida irreversível. Mas atenção, ditas ideias devem ser defendidas dia a dia, tendo sempre em conta e êxito econômico. A crise do Estado de Bem-Estar na sociedade Europeia é uma prova da fragilidade dos avanços sociais, que se davam como conquistas inamovíveis, mas que se cambalearam no momento em que a combinação entre as premissas éticas e a realidade demográfica, social e econômica começaram a atravessar turbulências imprevistas.
Nesse contexto há também que enfrentar um presente complexo. Se na Europa os dois problemas cruciais atualmente são a emigração e o terrorismo fundamentalista, na América Latina, além das questões sociais e económicas anteriormente citadas, um desafio critico é o crime organizado e a violência subsequente. A região, apesar de ser a mais pacifica do mundo na forma em que resolve os conflitos internacionais, é a mais violenta do mundo se analisarmos o número de mortes violentas por cada 100.000 habitantes. O crime organizado supera a capacidade de resposta a nível nacional e exige uma resposta conjunta. Se queremos uma integração econômica e eventualmente política, precisamos de políticas regionais para combater o crime transnacional que floresce numa região cuja taxa de pessoas que vivem na cidade supera o 70%.
O século XXI – incluindo também o modelo europeu – demonstrou que as dinâmicas sociais mudaram de forma dramática, o protagonismo das pessoas através e instrumentos extraordinários como as redes sociais e o crescente desencanto perante políticos apoltronados, já seja pela construção de círculos fechados de poder, pelo caráter iluminado de alguns líderes, já seja – muito especialmente – pela terrível corrupção de políticos que por sua vez corrompem o exercício da política, puseram em evidencia a insuficiência dos nossos textos constitucionais. Não é uma deficiência dos princípios republicanos e da base do liberalismo político que concebeu a forma de funcionamento do modelo democrático, mas sim a inoperância dos mecanismos do seu exercício cotidiano. Os supostos decimonónicos das nossas Cartas Maganas, baseados na lógica intocável da democracia representativa, entraram em tensão com a legitima exigência duma democracia participativa.
O problema encontrasse no facto de que ainda não dispomos das receitas adequadas para aplicar essa exigência. Por enquanto são as expressões da sociedade ultrajada que não quer cabeças, mas sim formas de se fazer ouvir, ou a deificação de movimentos coletivos denominados “movimentos sociais” que pretenderam consagrar a “politicas nas ruas” como a resposta mais legitima das pessoas perante a falta de sensibilidade do poder, gerando expressões descontroladas de poder em defesa de interesses de grupo. Não são ainda respostas que possam aceitar-se como perfis alternativos que possam substituir com êxito o modelo clássico, mas sim alarmes que obrigam a uma reflexão de fundo sobre os nossos textos constitucionais.
Personalismo e partidos políticos
Nesta leitura não se pode deixar de parte a pretensão de muitos políticos exitosos da América Latina que, devido à força dum desmesurado culto à personalidade, da sua representação simbólica (étnica, por exemplo), das suas capacidades inatas de ligar com o povo, ou, finalmente, pelo impulso da sua proposta ideológica, que acredita que a sua liderança insubstituível. É a velha canção dos imprescindíveis, dos condutores iluminados, dos grandes timoneis, daqueles que personificam a mudança. Este raciocínio levou à procura da reeleição indefinida e à concentração de todos os poderes numa só pessoa, danificando seriamente dois princípios inexcusáveis da democracia: a alternatividade no poder e a fortaleza das instituições por cima das pessoas. A premissa extraordinária de que o nascimento do republicanismo tem que ver com a necessidade capital de limitar o poder, tem que se quebrada. Como se a história não nos tivesse ensinado até à exaustão que não há pessoas imprescindíveis, só causas imprescindíveis.
A prova desta realidade tem que ver com os problemas de alguns mandatários de esquerda que chegaram com força, entre outras coisas porque anunciavam uma revolução ética, e que enfrentam hoje graves acusações de corrupção. Acusações que provocaram a apertura de processos de investigação e imputações. A sua argumentação defensiva não parece consistente. “Tratam-se de ataques políticos”. “Pretendem desacreditar os nossos líderes para debilitar os processos de mudança”. “É uma conspiração da direita e do imperialismo”.
Não há corruptos de direita ou corruptos de esquerda. Há corruptos. Igual que alguns mandatários neoliberais foram acusados e em alguns casos condenados a penas de prisão por corrupção, os mandatários ou figuras políticas de esquerda acusados de corrupção, deveram defender-se na justiça e demonstrar na mesma a sua inocência. É evidente que nestes casos há um uso político de parte e parte sobre assuntos tão sensíveis, mas esconder-se na “perseguição” para sair imune não é o caminho que se espera daqueles que fizeram da luta contra a corrupção a sua bandeira. Em qualquer caso, esta é claramente uma questão altamente corrosiva e que supõe grandes danos para a política e para democracia na América Latina.
O outro desafio que personalismo não resolve é a recomposição dum sistema de partidos do século XXI, mais horizontal, mais participativo, estruturado em redes, longe do velho “centralismo democrático” e capaz de renovar uma estrutura partidária fossilizada, ou talvez mesmo acabada. O fracasso dos partidos, ou melhor, o seu lógico esgotamento que não desconhece contribuições cruciais como os que fizeram o peronismo, o APRA, o MNR, Liberais, Conservadores, COPEI, AD, de Cor, Brancos... não elimina a ideia da necessidade dos partidos para o funcionamento da democracia, e exige uma aproximação diferente para confrontá-los. Não é possível um sistema plural e transparente, participativo e renovado num cenário baseado na construção de hegemonias partidárias, na lógica de recuperar premissas revolucionarias que pela sua própria natureza não conduz a uma visão democrática, aberta e de diálogo.
Saldo positivo, velhos desafios
Os primeiros quinze anos do século XXI deixaram-nos um saldo positivo e um espaço para o optimismo moderado, sempre e quando entendamos que esse avanço está ligado estreitamente com o que fizemos desde o começo dos anos oitenta quando reconquistámos a democracia.
Entre estas contribuições está precisamente a democracia, a redução da pobreza, a desigualdade e o aumento da inclusão, tudo em contextos em continua mudança e em posições ideológicas diversas. Pelo contrário, em muitos países as velhas elites permanecem e adaptaram-se aos novos ventos do poder ao ponto de penetrar nos estamentos da esquerda e cooptar alguns dos seus líderes mais importantes.
Mas essas elites são parte do jogo e não sempre para mal. A contribuição do investimento privado, da iniciativa empresarial, da capacidade de inovação e mudança, deve ser valorizada e integrada em projetos nacionais dinâmicos e criativos.
Dos grandes avanços nestes três lustros é necessário concluir que devemos cobrir os vazios deixados pelos aspectos em que não houve avanços. Os três principais: a educação, a investigação e a inovação.
Enquanto sejamos conscientes de que não há verdades absolutas, nem caminhos resolvidos e terminados, seremos capazes de continuar a ser autocríticos e de contar com o impulso permanente para procurar o bem-estar das nossas sociedades.
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