democraciaAbierta: Opinion

Impunidade, uma questão estrutural que corrói o México

A impunidade não é acidental, aleatória ou involuntária: é o resultado de uma cadeia de ações com o propósito de minar investigações

Patricia Cruz Marín James Cavallaro Alejandro Anaya
31 Agosto 2021, 12.01
Uma mãe exige justiça para os mais de 86 mil desaparecidos em protesto na Cidade do México em 10 de maio de 2021
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Sipa USA/Alamy Live News

O México enfrenta uma grave crise de direitos humanos. As execuções extrajudiciais, os desaparecimentos forçados e a tortura, entre outras violações, ocorrem em um contexto de impunidade praticamente absoluta. Em um período de quatro anos, os promotores conseguiram apenas 35 condenações em todo o país, em um universo de mais de 82 mil investigações por desaparecimento forçado no México – ou seja, uma taxa de condenação de 0,04%. Todos os dias, em média, duas valas comuns com cadáveres não identificados são descobertas no México.

Da mesma forma, os níveis relatados de violência nas execuções são espantosos: durante os primeiros quatro meses de 2021, uma média de 97 pessoas foram mortas todos os dias. Embora os dados disponíveis não diferenciem os homicídios das execuções extrajudiciais, a pesquisa acadêmica consistentemente identifica uma "taxa de letalidade" anormalmente alta associada às ações das forças armadas no México. Além disso, a prática sistemática de tortura, execuções extrajudiciais, femicídios e abusos contra os defensores dos direitos humanos no México continua em níveis preocupantes; muitos deles estão em ascensão. Apesar da gravidade da crise dos direitos humanos no México, os níveis de impunidade chegam a 99%.

A impunidade não pode ser explicada apenas pela falta de capacidade ou restrições orçamentárias. Em um relatório recente, por meio da documentação e análise detalhada de 11 casos exemplares de violações brutais de direitos entre 2008 e 2019 em seis estados do México, identificamos mecanismos ativos de impunidade para demonstrar que a impunidade em casos de violações graves resulta de interesses estruturais que manipulam a aplicação da lei. Em outras palavras, a impunidade nesses casos não é acidental, aleatória ou involuntária. Pelo contrário, a impunidade é o resultado de uma cadeia de ações realizadas com o propósito expresso de minar as investigações.

Esses mecanismos de impunidade ativa incluem: i) alterar a cena do crime e plantar evidências falsas; ii) a recusa oficial em aceitar as queixas das vítimas ou em iniciar investigações; iii) intimidação e ameaças às vítimas; iv) ameaças aos familiares das testemunhas, inclusive mediante a apresentação de falsas acusações contra elas ou as próprias vítimas; e v) a recusa da investigação de casos em que estejam implicadas as forças armadas ou figuras narcopolíticas.

A impunidade é o resultado de uma complexa estrutura de interesses que trabalha ativamente para sustentar essa impunidade

Alguns exemplos ajudam a ilustrar a dinâmica da impunidade ativa. Logo do assassinato de 42 civis em Tanhuato, Michoacán, em maio de 2015, as autoridades alteraram a cena do crime e fabricaram evidências para apoiar a falsa narrativa de que as forças militares agiram em legítima defesa. Três mulheres que testemunharam o massacre foram torturadas e ameaçadas de violência sexual caso se recusassem a se retratar. Mecanismos semelhantes de impunidade ativa foram usados ​​deliberadamente para alterar a cena do crime ou intimidar testemunhas na execução de 22 civis em Tlatlaya e no assassinato da jornalista Miroslava Breach em Chihuahua.

Os casos documentados no relatório levam à mesma conclusão: a impunidade no México não se explica apenas pela falta de capacidade do Estado, mas é o resultado de uma complexa estrutura de interesses que trabalha ativamente para sustentar essa impunidade.

Para abordar esta questão, e diante do reconhecimento do alto escalão das autoridades que se beneficiaram dessa estrutura corrupta de interesses, nós – como os especialistas e ativistas que vieram antes de nós – propomos a criação de uma Comissão Internacional contra a Impunidade no México. Experiências semelhantes na região, como a Comissão Internacional contra a Impunidade na Guatemala (CICIG), a Missão de Apoio contra a Corrupção e a Impunidade em Honduras (MACCIH), o Grupo Interdisciplinar de Especialistas Independentes (GIEI) no México e a Comissão Internacional contra a Impunidade (CICIES) em El Salvador, apresentam modelos úteis, com elementos positivos e negativos, para a criação e implementação de uma comissão internacional

Para que uma comissão internacional funcione com sucesso, deve haver i) uma sólida fase de negociação com significativo apoio social e político interno; ii) um tratado internacional para a criação do órgão, que requer a aprovação do Congresso; iii) mecanismos que garantam a independência e autonomia da comissão; iv) um esquema de financiamento internacional que independe de instituições nacionais; v) um procedimento de seleção que prioriza a capacidade técnica, independência e experiência de seus membros e vi) que a comissão receba os poderes necessários para cumprir seu mandato, incluindo a capacidade de recomendar alterações legislativas para fortalecer a justiça, iniciar processos criminais ou fornecer assistência técnica ao Ministério Público e capacidade de chegar a acordos complementares com as autoridades nacionais.

Pode até ser útil adicionar mais investigadores, mais promotores e mais juízes, mas não é isso que fará com que o México rompa o ciclo da impunidade

Ao projetar e recomendar reformas legais e institucionais, iniciar processos criminais por sua própria iniciativa e fornecer apoio técnico às autoridades nacionais, uma Comissão Internacional contra a Impunidade faria justiça em casos específicos. Mais importante ainda, tal comissão promoveria mudanças mais amplas ao desestabilizar interesses criminosos arraigados, colocando assim uma pressão indireta sobre o sistema de justiça comum do México. Isso, por sua vez, serviria para erodir o complexo conjunto de práticas e interesses que sustentam a impunidade ativa.

Para começar a enfrentar a crise de direitos humanos que o México enfrenta, devemos aceitar a impunidade – ela é ativa, não passiva. Pode até ser útil adicionar mais investigadores, mais promotores e mais juízes, mas não é isso que fará com que o México rompa o ciclo da impunidade. A ausência de responsabilidade penal individual e a correspondente punição para os agressores poderosos estabelece e reforça um contexto institucional em que o crime e as violações dos direitos humanos se reproduzem com o mínimo de resistência, o que praticamente garante sua reprodução sistemática.

Apesar dos inevitáveis ​​obstáculos políticos, vale a pena lutar por uma comissão internacional. Pode ser a única alternativa viável para quebrar o ciclo de impunidade apoiado e alimentado por agentes do Estado em todos os níveis no México.


Este artigo foi originalmente publicado pelo OpenGlobalRights em espanhol e inglês e traduzido ao português pelo openDemocracy Brasil. Leia el original aqui.

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