
Hugo Chávez em 2012. Carlos Hernandez/DPA/PA Images. Todos os direitos reservados.
Juan Domingo Perón era tão desconfiado, que quando se apresentou como presidente em 1973 nomeou a sua mulher como vice-presidente. Perón não pôde dirimir o seu sucessor – “o meu único herdeiro é o povo”, dizia com picardia. Ao morrer Perón em Julho de 1974, Maria Estela Martinez de Perón, conhecida como Isabelita, assumiu a presidência. O seu governo recrudesceu o confronto armado entre a esquerda e a direita peronista e abriu as portas ao golpe militar de 1976 e à sua política de aniquilação. Foi tal o caos e o medo, que muitos peronistas esperavam o funesto golpe.
Juan Domingo Perón era tão desconfiado, que quando se apresentou como presidente em 1973 nomeou a sua mulher como vice-presidente.
Hugo Chávez era tão desconfiado, que quando assumiu a sua morte iminente nomeou Nicolás Maduro como o seu sucessor. Três dias depois da sua morte, Maduro assumiu a chefatura do Estado e do Governo como “presidente encarregado da Venezuela” e, no dia 14 de Abril de 2013, as eleições reafirmaram-no como presidente constitucional.
Na Argentina, durante o governo de Isabelita, a criação da Aliança Anticomunista Argenta (Triplo A) aumentou o terror. Trezentos mortos entre 1974 e 1975 exemplificam exactamente isso. Em Junho de 1975, uma desvalorização de 160% passou à história como o Rodrigazo, em honra do ministro da Economia, Celestino Rodrigo. A inflação superou o 700% anual. Perón tinha representado o retorno democrático, o fim da proscrição e a esperança dum governo popular. Mas precipitou a violência, tanto a exercida pelas guerrilhas de esquerda como pelos militares e paramilitares de direita. A presidente Martinez lidou com limitada perícia com a tensão dum Estado polarizado, inclinando a balança na direcção dos sectores mais reaccionários do partido, falhou de diversas formas para manejar uma economia em crise, começando pela mudança do ministro de Economia que tinha construído pontes entre o sector empresarial e sindical. A presidente acendeu ainda mais o tradicional discurso peronista do povo e antipátria.
Hugo Chávez era tão desconfiado, que quando assumiu a sua morte iminente nomeou Nicolás Maduro como o seu sucessor.
Sabe-se que Hugo Chávez extraiu muitas ideias do Peronismo, tendo mesmo sido assessorado por um controverso sociólogo peronista, Norberto Ceresole. Podem-se encontrar muitos pontos e comum tanto a nível político, como a nível económico e ideológico. Também é certo que existem importantes diferenças: o contexto internacional, a globalização económica, a reconversão capitalista de estados comunistas e, a nível nacional, estruturas económicas diferentes, sociedades com diferentes experiencias de militância e de partidos políticos.
Nem Perón nem a sua velhice, nem Chávez nem a sua doença, foram suficientemente responsáveis ou generosos para formar os seus sucessores, abrir a porta a lideres jovens ou começar um diálogo com opositores para garantir a paz social através da sua morte. Pelo contrário, os dois parecem ter sido inspirados por aquela frase, “depois de mim, o abismo”.
Maduro e Isabel não puderam continuar com um processo marcado pelo personalismo, pelo autoritarismo individual e exclusivo. Sempre tratando de imitar os seus mestres, pretenderam ser autoritários sem o carisma dos seus antecessores. Seguiram com o plano traçado sem serem capazes de adequar-se a cenários regionais e internacionais em constante mudança. Com uma legitimidade hereditária, demonstraram a sua incapacidade para governar.
Nem Perón nem a sua velhice, nem Chávez nem a sua doença, foram suficientemente responsáveis ou generosos para formar os seus sucessores.
Nicolás Maduro não pode continuar a alegar que a burguesia tradicional e os poderes associados ao imperialismo são aqueles que destruíram o país. Tal como a viúva de Perón, o presidente venezuelano mostra não dispor das ferramentas necessárias para governar, especialmente num contexto critico. Quebrou o que restava do sistema institucional. A sua presidência já começou de forma pouco auspiciosa quando a faixa presidencial lhe foi colocada pela filha de Chávez. Converteu a sociedade venezuelana em grupos foragidos que se matam uns aos outros. Isabel, devido à sua falta de autoridade e capacidade, deixou a Argentina imersa numa violência fratricida, um governo militar que fez desaparecer 30.000 pessoas e enviou para a morte nas ilhas Malvinas jovens soldados sem qualquer tipo de experiência.
Em que contexto devemos situar estas situações? Max Weber enfatizou o problema da sucessão desde uma perspectiva carismática. Como pode substituir-se um líder político que se converteu, através do seu próprio discursos e graças ao contexto nacional e internacional, no dono da verdade e do destino do seu povo? Um líder personalista e monopolizador de poder dificilmente prepara sucessores. O seu partido político não funciona independentemente. Tanto Perón como Chávez formaram movimentos políticos à volta das suas figuras: o Movimento Judicialista, também conhecido como Peronista, e o Partido Socialista Unido da Venezuela. Nem Perón nem Chávez pensaram no impacto político da sua mortalidade. Nem os seus partidos nem os seus sucessores mais próximos foram capazes de evitar o conflito social que trouxe a sua morte. Um líder carismático pode substituir-se em contextos nos que as instituições do Estado são sólidas e não tenham sido enfraquecidas pelo exercício personalista do poder. No caso Argentino, as instituições encontravam-se num momento de fraqueza, depois de anos de golpes militares e democracia fraca. Ao contrário da Argentina, onde a General Perón não contava com o apoio das forças armadas, na Venezuela as instituições foram esvaziadas de poder: as forças armadas e a justiça eram leais a Chávez, não ao sistema democrático, e a Assembleia delegava o seu poder através das leis habilitantes.
Nicolás Maduro não pode continuar a alegar que a burguesia tradicional e os poderes associados ao imperialismo são aqueles que destruíram o país.
Em ambos casos havia lideres carismáticos que deterioraram as instituições democráticas, concentraram o poder, manipularam as leis, neutralizando desta forma o jogo dos partidos políticos. Este tipo de liderança retirou qualquer tipo de poder às instituições e aos opositores. Isto reforça a incapacidade de gerar sucessores e reafirmar essa sensação de abismo.
Existe um terceiro aspecto do legado que deixam estes lideres personalistas: o populismo. Na nossa região, o populismo como modo de representação política e forma de liderança foi predominante. As democracias foram castigadas pela emergência de lideres populistas que polarizaram as sociedades, deteriorando a prestação de contas e debilitando a divisão de poderes.
A combinação destes elementos e a contracção de poder nas suas mãos, deixa um terrível vazio com a sua morte. O carisma não os eterniza fisicamente.
Quando morrem estes lideres carismáticos, as instituições de mediação política ficam devastadas. Aos sucessores não se lhes transfere o carisma, e, além disso herdam todos os erros dos seus antecessores, sem a capacidade de convencer ou apaziguar, como o faziam Perón ou Chávez com a retórica que exibiam para controlar seguidores e opositores.
Enfatizar as semelhanças não nos inibe de sublinhar uma diferença crucial: enquanto que na Argentina Isabel foi deposta por um golpe militar sangrento, na Venezuela os militares não querem mudanças. Não é que ponham de lado a possibilidade de conduzir o Estado. É que já o fazem.
Quando morrem estes lideres carismáticos, as instituições de mediação política ficam devastadas. Aos sucessores não se lhes transfere o carisma, e, além disso herdam todos os erros dos seus antecessores
Esta diferença é importante, uma vez que o ultimo recurso para suster o governo de Nicolás Maduro é a lealdade das forças armadas. A Força Armanda Nacional Bolivariana não só detém o monopólio da violência estatal, mas também centraliza a ajuda social (Grande Missão de Abastecimento Soberano), a condução politica e o manejo de negócios estatais e privados (agro-alimentar, farmacêutico e industrial). As milícias populares completam o quadro, tal como o disse o Ministro de Defesa Vladimir Padrino López: “hoje a milícia bolivariana é um conceito estratégico, é uma arma estratégica que não só representa a união do povo – é uma bisagra entre o povo e as Forças Armadas – mas também é o povo em armas” (Diário Excelsior, México, 26 Maio 2017). É difícil pensar numa reconciliação ou consenso nestes termos.
No caso argentino, havia uma alternativa política ao governo de Isabel que não se vislumbra na Venezuela. Em ambos casos, os herdeiros esbanjaram o capital político dos seus antecessores e mergulharam os países na violência. A Argentina viu-se emersa num governo militar que impôs o terrorismo de Estado. O futuro da Venezuela é, por agora, incerto. O que está claro são os riscos que acompanham os personalismos carismáticos. Os legados de Perón e Chávez destroem-se rápida e violentamente.
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