democraciaAbierta

Norah Padilla, recicladora de resíduos urbanos em Bogotá, e a conquista democrática de direitos

Uma vez conquistado um direito, é necessário construir uma “institucionalidade” que o torne imperecedouro, o converta em oportunidades para todos e o proteja dos abusos dos poderosos. English Español

Carlos March
4 Março 2016
640px-LixaoCatadores20080220MarcelloCasalJrAgenciaBrasil_1.jpg

Catadores de lixo. Wikimedia Commons. Some rights reserved.

Norah Padilla simboliza a diferença entre uma mulher dura de nascimento e uma mulher endurecida pela vida. Norah viveu em primeira pessoa todos os males que pode supor a pobreza extrema, o que ajudou a sazonar a sua humanidade. Sofreu as penosas carências da indigência, o que aprofundou também a sua inteligência. Padeceu as mais injustas iniquidades e isso converteu-a numa defensora do estado de direito. Norah é uma das principais referências latino-americanas no âmbito da reciclagem urbana.

A sua luta começou há anos em Bogotá, onde organizou um grupo de recicladores para que reclamassem o seu direito a serem reconhecidos como prestadores dum serviço público tal como o é a reciclagem de resíduos urbanos. Em 2012 o Tribunal Constitucional Colombiano, a partir dum recurso de amparo apresentado pelos recicladores, obrigou o governo nacional a estabelecer uma normativa para que os recicladores, organizados em cooperativas, pudessem participar nos processos de licitação do sistema de recoleção de resíduos domiciliários.

A partir desse reconhecimento Norah teve que adequar a sua estratégia, previamente dirigida a reclamar um direito, para incidir sobre uma normativa que o converteria em realidade. Para isso, convocou diversos atores que podiam aportar-lhe conhecimentos para obter uma regulamentação adequada e métodos para alcançar uma incidência politica que funcionasse como contrapeso contra os poderosos interesses do setor empresarial.

Finalmente, uma vez aprovada a norma, teve que adaptar novamente a sua estratégia para que o direito reconhecido pudesse ser exercido, procurando alianças e os recursos necessários para converter as frágeis cooperativas em prestadoras dum serviço público eficiente e competitivo. Desta maneira, lutando pelos seus direitos, Norah, que reciclava resíduos para sobreviver à indignidade, reciclou-se a si mesma para ressuscitar a dignidade humana.

Do direito reconhecido ao direito exercido

O ponto fraco de qualquer processo de reconhecimento de direitos que têm como protagonistas os setores vulneráveis da sociedade produz-se quando se reconhece o direito vulnerado em questão. Este reconhecimento supõe o ponto de inflexão: aquele que reclamava como excluído passa automaticamente a ter que assumir o role de sujeito de direito.

Ao mesmo tempo, o processo desenhado para reclamar e interpelar um terceiro, tem que ser alterado para gerar propostas que possibilitem que o direito reconhecido possa passar a exercer-se. A forma na que se passa duma reclamação dum direito ao exercício desse mesmo direito é chave para a consolidação do mesmo.

O paradoxo que surge é o seguinte: uma das formas de neutralizar o direito reclamado é reconhece-lo. Noutras palavras, o sujeito vulnerável que não consiga gerar o poder necessário para exigir ao Estado que facilite as condições para poder exercer o direito reconhecido e que, ao mesmo tempo, não consiga desenvolver a sua própria capacidade para enfrentar o exercício de dito direito, terminará por converter-se em refém do direito alcançado.

1)      Da etapa de luta heroica à etapa institucional

Para que os setores vulneráveis tenham sucesso durante a etapa de luta heroica pelos direitos, são indispensáveis pelo menos três condições: 1) lideres personalistas capazes de comunicar, mobilizar e convencer; 2) gestas sociais que mobilizem emoções coletivas; 3) relatos que vitimizem, visibilizem e legitimem o líder personalista e a gesta. 

Quando um direito é finalmente reconhecido, devem manter-se os incentivos da etapa de luta heroica. Mas é vital construir uma base institucional, porque o direito reclamado desde o ativismo e da emoção requere um fundamento muito mais sólido que a sempre vulnerável capacidade de luta dos indivíduos.

A capacidade de passar duma etapa de luta heroica desde a marginalidade a uma etapa de institucionalização daquilo que deve ser reconhecido pela sociedade para que exista legitimidade de origem no exercício do direito conquistado dependerá da transição. Quer dizer, transitar duma etapa baseada nas pessoas a uma baseada no desenho organizativo do espaço que deve criar as condições para tornar efetivo o exercício do direito e levar a cabo as ações que dito direito exige.

2)      De vítima a líder

A pessoa ou o grupo vulnerável deixa de ser vítima quando adquire a capacidade de lutar pela sua própria qualidade de vida e incidir na qualidade de vida coletiva. Passam de ser objetos de assistência a ser sujeitos de direito. E ainda que não se deva esquecer o aprendido quando se era vítima, devem adquirir-se competências de liderança.

Existem três razões fundamentais para abandonar o role de vítima e ocupar o role de líder: 1) A vítima não agradece, exige; 2) A vítima não raciocina, emociona-se; 3) A vítima não lidera, mobiliza-se.

É necessário agradecer àqueles que colaboram com os processos de reconhecimento de direitos, porque agradecer a àqueles que se comportam justamente incentiva outros a fazê-lo, e porque o que ajudou uma vez, pode continuar a ajudar. É necessário liderar desde a racionalidade, uma vez que permite usar a emoção não para emocionar-se, mas sim para emocionar. E temos que compreender que ás vezes podemos optar por exercer o papel de vítimas, mas jamais o de líder.

A liderança é uma qualidade concedida pelos liderados. Isto significa que liderar consiste em interpretar aonde quere ir o conjunto. O líder tem o dever de encarnar a visão coletiva e não perseguir cegamente uma missão pessoal. O líder eleva e vincula. O desafio consiste em deixar de atuar desde uma posição de vítima compadecida para converter-se num líder legitimo.

3)      Da acumulação à distribuição

Os movimentos sociais que crescem desde a vulnerabilidade necessitam demonstrar a sua força para tornar-se visíveis no lugar que lhe é negado. Justifica-se por tanto a estratégia de acumulação de poder por parte de quem é vítima da negação dum direito a ocupar um espaço e desempenhar um role. Mas tal como o reconhecimento de dito direito obriga a passar do status de vítima ao de líder, para construir a liderança é preciso passar da acumulação de poder à distribuição de liberdades.

Para incidir nas condições que se esperam que permitam exercer o direito conquistado, o líder deve ocupar-se de criar, no grupo ao qual pertence, as capacidades necessárias para incidir nas decisões. Isto consegue-se quando o espaço de líder se converte no lugar a que todos podem aceder: “Todos subimos um degrau no momento em que o ultimo de nós subiu o degrau”.

A solidão não é própria da liderança e a concentração de capacidade é a negação da evolução coletiva. A concentração de poder impede a construção dum poder difuso, um poder que não é próprio, mas que se administra ao serviço dos objetivos coletivos, e não pode neutralizar-se porque não pode concretar-se. Aos efeitos da incidência pública, quanto mais difuso é o poder, mais concreto é o impacto. Por isso, aqueles que lideram não devem acumular poder, mas sim distribuir capacidades e oportunidades.

4)      Do lúmpen ao servidor público

Se queremos avançar na compreensão do argumento, é preciso realizar o esforço de abandonar as hipocrisias sociais e a má imagem que tem a sociedade aos olhos de quem vive no terreno da exclusão.

A sociedade moderna tende a adoçar as suas atrocidades com uma retórica ao mesmo tempo cínica e ambígua. Aqueles que são classificados desde o ponto de vista da carência de riqueza, vulneráveis desde o ponto de vista social, excluídos desde o ponto de vista político e perigosos desde o ponto e vista classicista, podem ser definidos através duma palavra que, ao ser negada pela sociedade, os condena irremediavelmente à perpetuidade: lumpens. Esta é a definição que a sociedade oculta por detrás do eufemismo.

Lúmpen é a palavra através da qual se classifica a todo um grupo social formado por pessoa social e economicamente marginalizadas em ambientes urbanos. Karl Marx usou o termo lúmpen para referir-se àquele estrato social que vive em condições muito precárias. A categoria social reservada para o lúmpen não á a de mendigo: quer dizer, aquele que tem que mendigar para aceder às oportunidades e que não constitui uma classe social.

As nossas sociedades geram lumpens e isso não fala mal das pessoas que padecem tal condição, senão que fala mal da sociedade que os submete a dita condição e logo os nega. Por exemplo, quando uma população não separa os seus resíduos de origem e condena os recicladores a ter que remexer no lixo, fica demonstrado que não são os setores vulneráveis os que se colocam em situação de pobreza, senão que é a sociedade acomodada que os situa em tal situação. Ao lúmpen é-lhe negada uma identidade como classe, e dignidade como pessoa. Vivemos em sociedades incapazes de contruir um projeto coletivo de êxito para garantir a dignidade dos que fracassam individualmente.

A base para que o lúmpen o deixe de ser constrói-se desde o reconhecimento dos direitos que lhe são negados e vulnerados. No âmbito individual, o direito a aceder a oportunidades; no âmbito coletivo, o direito a constituir-se como classe social. O direito reconhecido é o fundamento para a construção do role social do lúmpen. Ao afirmar-se como sujeito de direitos, o lúmpen vê garantidos os seus direitos individuais até então negados e adquire a capacidade de lutar pelas condições que permitam exercê-los. É o caso dos cooperativistas, é o caso dos trabalhadores que recuperam empresas, é o caso dos recicladores que se integram nos sistemas de recoleção de resíduos urbanos.

5)      Da comodidade da reivindicação ao desafio da proposta

O direito que ganham através da sua luta os setores vulneráveis não pode instala-los na zona de conforto por tê-los alcançado, ou na comodidade das ações aprendidas. A atitude que serviu para alcançar o objetivo, o know-how que já se assimilou e a estratégia usada que serviu para alcançar o reconhecimento do direito, assim como os seus executores e aliados, devem ser revistos e analisados no âmbito do novo cenário.

A partir de aí, deve desenhar-se um novo plano de ação que se adeque à mutação exigida ao passar da reclamação ou reinvindicação à proposta. Não se podem construir as condições para o exercício dos direitos desde a mesma lógica, atitude, estratégia e ações que deram visibilidade e permitiram alcançar o direito reclamado.

Também não têm que ser obrigatoriamente os mesmos protagonistas e aliados os que têm que ocupar posições parecidas ou repetir alianças idênticas. A força que serviu para converter a necessidade em reinvindicação e a reivindicação em direito não é necessariamente efetiva para: 1) obter a massa crítica necessária para alcançar as condições para exercer o direito, e não reclama-lo; 2) institucionalizar ditas condições para enraizá-las a longo prazo, e não reclamar às instituições o reconhecimento do direito; 3) alinhar os interesses dos próprios protagonistas para levar a cabo uma negociação que estabeleça acordos para o exercício do direito, e não articular emoções e reclamações em função do direito vulnerado.

O objetivo alcançado não deve ser entendido como o limite que ampara os protagonistas, mas sim como o ponto de partida duma nova etapa de incidência publica que exigirá novos desafios: mais propostas e menos protestos. Da mesma forma que a legitimidade social de origem depende da capacidade do ator vulnerável para institucionalizar a sua organização, da sua competência para exercer o direito reconhecido no espaço coletivo depende a legitimidade social da sua gestão.  

6)      Da reclamação do direito à abordagem das condições

Responder à necessidade expressada pela reclamação e converter essa reclamação em direito: isto é o que se tem que agradecer, porque o facto de agradecer é um gesto estrategicamente altruísta. Quem adquiriu um direito assume que a sua luta se converteu num êxito, reconhece que o outro se converteu num aliado, motiva os que se mantem indiferentes e que também são potencialmente aliados, e demonstra aos outros em similares circunstancias que o Estado ou o Privado que ignora necessidades também é capaz de modificar a sua atitude e restabelecer direitos. O agradecimento do êxito não tem valor pela sua referência ao passado, mas sim pelas condições que cria para o futuro: um futuro possível.

O passo seguinte de todo processo que chega à fase do reconhecimento do direito é a luta pela construção do que está por vir. Frente ao direito proclamado, em alguns momentos é necessário exigir e em todo momento negociar as condições para que dito direito se possa exercer.

Ao mesmo tempo que se consagra um direito, abre-se o espaço das obrigações. Os sectores vulneráveis em questão têm dois desafios: 1) construir uma proposta tecnicamente consistente e politicamente viável, sobre a base de informação e conhecimento, para que quem deva estabelecer as condições para o exercício efetivo desse direito conte com todos os recursos necessários para garantir o mesmo; 2) definir um plano para isso que garanta que estas condições se convertem, a nível estatal, em leis, resoluções e políticas públicas e, no marco do mercado e das cadeias de valor, em contratos fundamentados na lógica de win-win.

7)      Da ética ao poder

A discussão das agendas sociais que propõem os setores vulneráveis é protagonizada por aqueles que exercem poder em termos éticos, entendendo por ética a expressão abstrata dos desejos de quem não têm acesso a uma oportunidade. O desafio consiste em colocar esta discussão na agenda social, que já vem precedida pelo processo de reconhecimento de direitos, pelo espaço de poder tangível que corresponde ao ator até esse momento vulnerado. Não se trata aqui de reclamar um poder que deve ser concedido, senão que se trata de conseguir aceder ao poder que deriva do direito reconhecido.

Da capacidade que se tenha para ganhar este espaço de poder dependerá a capacidade de exercer o direito, uma vez que o que garante o direito é o acesso ao poder: quer dizer, a oportunidade de definir as regras do jogo.

8)      Do social ao económico

Os setores vulneráveis devem impor a seguinte lógica: um direito reconhecido converte-se em direito efetivo quando se garantem os recursos para o seu pleno exercício. O contexto que gera vulnerabilidade é aquele que separa o capital social do capital económico, o que limita os sectores vulneráveis ao âmbito da agenda social e outorga aos representantes do Estado e do sector de economia formalizada o privilégio de aceder e administrar o capital económico.

O capital social incluiu o capital económico e não há outra discussão possível sobre as condições para que um direito seja exercido que negociar orçamentos, recursos, acesso ao financiamento e condições de investimento; quer dizer: toda a necessária arquitetura financeira, pública ou privada, para que o direito reconhecido desde a vulnerabilidade seja exercido e protegido desde a institucionalidade. Os setores vulneráveis têm que adquirir habilidades para exercer o direito ganho no terreno da economia, uma vez que não há nada mais económico que uma necessidade social.

9)      Da informalidade à institucionalidade

A pobreza estrutural não radica na falta de acesso à economia, senão que se concentra na inacessibilidade às oportunidades que oferece o capital social estruturado e registado. Uma das formas de negar esse acesso consiste em someter uma parte da sociedade à informalidade.

Por isso, o reconhecimento do direito negado é o primeiro passo para que a condição de informalidade possa enraizar-se na institucionalidade. Esta arquitetura social garante que um indivíduo ou grupo de pessoas poder desenvolver-se num marco de estado de direito e ser protegido desde a perspectiva da segurança jurídica.

É necessário construir para dito direito uma institucionalidade que o torne perdurável no tempo, que o converta em oportunidades para todos e que o proteja dos abusos dos poderosos.

10)   Do local ao regional

Sendo a América Latina a região mais desigual do planeta, as diferenças entre quem têm mais e quem têm menos refletem uma profunda ineficiência do estado para equilibrar as capacidades de acumulação por parte duma pequena porção de habitantes em relação às limitações que têm vastos setores da sociedade para gerar riqueza.

Por isso, quando um ator social reconhece um direito reclamado pelos setores vulneráveis, acaba por ser uma obrigação vital registar esse processo e contagia-lo ao resto dos países da região. Não existe capacidade de transformar todas e cada uma das nações se não se transformam os padrões e as lógicas que regem a construção da América Latina.

Modificar as condições regionais de exclusão social depende em grande parte de que os setores excluídos possam disseminar regionalmente os seus êxitos em matéria de direitos conquistados. Isto exige construir capacidades de incidência a nível regional através de espaços coletivos com poder para impulsar agendas comuns e articular lideranças e, ao mesmo tempo, requere a construção de iniciativas regionais comuns nos aliados dos setores vulneráveis, que acompanham a suas lutas e conquistas.

Este decálogo tem como objetivo que os atores duma sociedade que vivem num âmbito de vulnerabilidade plena, não só possam conquistar os direitos que lhes são negados, mas também possam exerce-los plenamente. O caso de Norah em Bogotá demonstra que é possível.

Assine nossa newsletter Acesse análises de qualidade sobre democracia, direitos humanos e inovação política na América Latina através do nosso boletim semanal Inscreva-me na newsletter

Comentários

Aceitamos comentários, por favor consulte ás orientações para comentários de openDemocracy
Audio available Bookmark Check Language Close Comments Download Facebook Link Email Newsletter Newsletter Play Print Share Twitter Youtube Search Instagram WhatsApp yourData