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Obama, Timochenko e os Rolling Stones, juntos em Cuba

Juntar em Cuba Obama e Raul Castro, Kerry e as FARC, e ter Mick Jagger a saltar de alegria, é uma maneira revolucionária de enterrar a revolução. Español English

Abel Gilbert
31 Março 2016
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The Rolling Stones em Cuba. 25 Março 2016. Dave J Hogan/Getty Images. All rights reserved

A ilha parece converter-se uma vez mais no centro da história. Pobre ilha, outra vez: chega um furacão e arrasa com as plantações de açúcar, as casas, e há que reconstruir tudo. Mas quem poderia atrever-se a contradizer a sensação de que nas Caraíbas os planetas se alinharam?

Barack Obama aterrou em Cuba para deixar para trás uma história de más relações e por termo de forma definitiva aos últimos restos do teatro de operações da Guerra Fria. As FARC e o Governo colombiano reuniram-se na Havana com o Secretário de Estado John Kerry e depararam-se com o aval e o encorajamento de Washington para percorrer o último trecho que falta para pôr fim a um sangrento conflito armado que dura há mais de meio século. E, como forma de encerramento musical simbólico, os Rolling Stones SA (Sociedade Anónima) apresentaram-se perante uma multidão presente na Cidade Desportiva de Havana. “Meio século depois”, diziam os cubanos, impressionados pelo poder e eletricidade das figuras que se passeavam pelo palco. Milhares de smartphones, muitos provavelmente adquiridos com dinheiro dos familiares que vivem nos Estados Unidos, registaram as imagens do concerto. Serão seguramente guardadas com a certeza de que aquela foi a noite em que tudo começou realmente a mudar.

Tudo parece tão simples… Mas nesse “meio século depois” podemos encontrar um dos paradoxos do nosso tempo. Gostava de voltar três semanas no tempo, ao momento em que Mick Jagger esteve em Buenos Aires, porque na capital Argentina está a ter lugar uma situação que talvez ajude a compreende melhor o que aconteceu em Cuba. Jagger deixou-se fotografar no cemitério da Recoleta, onde está enterrada Eva Perón. Era a imagem dum turista impressionado com a arquitetura mortuária? Ou era Jagger dizendo, como um Dorian Grey, por entre os túmulos aristocráticos, que “estou mais além do tempo”. Talvez essa fosse a desconcertante natureza do jogo do qual se fala em Sympaty for the Devil, uma das canções mais conhecidas do grupo, com a qual encerrou o concerto em Cuba. Dita canção propõe um jogo de permanente y escorregadia ambiguidade, que já tem quase “meio século”, tempo que os cubanos acreditaram estar à espera de Jagger e dos seus amigos. Há 48 anos, Jagger não se definia a si mesmo como um conservador com “c” minúscula (alguém que rejeita a pressão fiscal do Estado e é tolerante em questões morais ou relativas à liberdade de expressão), nem os Stones eram uma sociedade anónima. Não. Em 1968, o ano que foi composto Sympaty for the Devil, Sir Mick emergia como o referente das protestas que começavam a sacudir a Europa. Ou assim o queria entender parte da esquerda filo-castrista e até Jean Luc Godard. O seu filme, One plus one, registou o processo de gravação de Sympaty for the Devil. As primeiras filmagens introduzem a estrutura da canção. Não há instrumentos elétricos. O filme termina com a versão do disco Beggars banquet. O work in progress, que se alterna com intervenções de Black Panthers armados era, para Godard, uma metáfora do processo revolucionário. Que pensava o cineasta? Que uso fez dessa voz, desse corpo erotizado e dessas imagens? Jagger tinha-se inspirado no Mestre e Margarida, a sátira anti estalinista de Mijail Bulgakov. A obra permitia um sem-fim de interpretações, mas talvez nenhuma delas à altura das expetativas de Godard. O trajeto da canção é tão sinuoso que o National Review, a revista da direita ilustrada dos Estados Unidos, elegeu a canção no seu artigo Rockin´ the Right entre as 50 mais conservadoras. Não me parece que estes sejam temas que tenham sido motivo de preocupação na ilha, nem na Argentina ou na Colômbia. Os Stones eludem estes extremos.

Mas, the song remains the same? No título daquele filme sobre os concertos dos Led Zeppelin no Madison Square Garden, a mediados dos anos 70, percebeu-se o sentido das canções é sempre contingente, volátil, utilitário. Como entender senão a trajetória da Stairway to Heaven? O hino hippie zeppeliano chegou mesmo a disputar com a Cavalgada das Valquírias de Wagner o primeiro lugar nas listas de reprodução dos iPods dos soldados dos Estados Unidos no Iraque entre 2013 e 2013.

Os Stones também tocaram Street Fighting Man, canção que liga com a “velha Cuba” que oferecia uma imagem desafiante e insurrecional ante o mundo. Nesse ano, 1968, Jagger conversava em Londres com Tariq Alí, um escritor marxista de origem paquistanesa, membro da New Left Review e da revista The Black Dwarf. Alí recordou esses encontros em Street Fighting Years: An Autobiography of the Sixties. Depois da ofensiva do Tet, o movimento de protesta contra a guerra cresceu exponencialmente em Inglaterra. Milhares de manifestantes enfrentaram-se numa verdadeira batalha campal com a polícia montada na Governor Square. Entre os manifestantes, estava (essa vez) Jagger. Foi durante a recuperação dos golpes que sofreu, que Jagger escreveu Street Fighting Man.  A canção é musicalmente rudimentar mas transmite a energia duma época vertiginosa: “chegou o verão e o momento de lutar nas ruas”. Numa entrevista dada ao International Times, o seu autor foi ainda mais longe que o próprio texto: “o sistema está podre (…) o momento chegou. A revolução está justificada”. Excitado pelas circunstâncias, e no meio dos preparativos duma segunda mobilização de rua, Jagger ofereceu a letra ao The Black Dwarf. A revista imprimiu-a com uma citação de Engels (“uma onça de ação vale uma tonelada de pensamento”) e um título: Mick Jagger e Fred Engels lutam na rua. Quando Street Fighting Man foi completada, em maio, e no meio dos acontecimentos em Paris, foi tomada a decisão de não distribuir o single em Inglaterra. A empresa temeu que fosse escutada e interpretada como uma incitação à revolta.

Nada de isso foi discutido na ilha. Os Stones SA são uma fonte de entretenimento a nível mundial e, como tal, espalharam a sua música numa ilha que já não só está impossibilitada de promover a mudança revolucionária: essa revolução há já muito anos que não existe (como os setuagenários Stones já não podem ser aqueles jovens lascivos que assustavam os pais dos jovens da altura). A ilha dirige-se inexoravelmente rumo ao capitalismo. Será primeiro, um capitalismo com forte presença estatal. Mas, nalgum momento, a burguesia emergente reclamará aquilo que Obama foi a Cuba predicar. Jagger e a sua banda vieram para a inauguração. Pode dizer-se que cantaram aos cubanos que tinham sido expulsos da festa durante décadas. Mas poderia também interpretar-se dito concerto como uma forma diferente de louvar a grande vitória diplomática de Obama: retomou os vínculos com Cuba e teve um papel relevante no acordo de paz na Colômbia (os Estados Unidos estão convencidos que, quando se realizarem eleições, as FARC, convertidas em partido politico, obterão muito poucos votos). Mas além disso, cabe ter em conta que toda a América Latina está a mudar de rumo em direção à direita. Se 2005 tende a ser recordado como o ano em que George Bush foi derrotada na sua tentativa de converter todo o continente numa grande zona de livre comercio, 2016 ameaça com converter-se no ano em que sobrarão poucos vestígios daquele espirito anti norte-americano. A Argentina já virou à direita, o Brasil está prestes a faze-lo e espera-se que o mesmo aconteça na Venezuela. Obama, ao concluir o seu mandato, poderá dizer que obteve Satisfaction.

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