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A pandemia e a dialética brasileira da barbárie

No Brasil, a barbárie é representada pelo reacionarismo, fanatismo religioso, anticientificismo, necropolítica e novas lógicas de desinformação. Español English

Rafael Heiber
20 Abril 2020, 2.32
Apoiadores do presidente Jair Bolsonaro protestam contra as recomendações para o isolamento social do governador de São Paulo, João Doria, durante o surto de COVID-19, em São Paulo,
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Cris Faga/SIPA USA/PA Images. Todos os direitos reservados

Já afeta quase metade do planeta. Em poucas semanas o COVID-19 se transformou em pandemia, obrigando impensáveis paralisações e confinamentos. Desde então, iniciou-se uma série de debates sobre os possíveis paradigmas de uma nova normalidade e a urgência de uma outra globalização. Na maioria dos casos, retóricas reformistas que se utilizam de reflexões amadurecidas há décadas em circuitos intelectuais contra-hegemônicos. Em outros, indagações sobre a regulação das tecnologia mais recentes e seus papéis em um novo contrato social, deixam uma brecha de incertezas sobre se estamos a caminho de um mundo mais solidário ou autoritário.

Os primeiros estudos avalizados pela comunidade científica, permitem aferir que a humanidade teve sorte. A pandemia é causada por um vírus muito mais temido por sua capacidade de disseminação do que por sua letalidade. Se muitos estamos em quarentena, não é por outro motivo que o de evitar o contágio simultâneo de toda a população, manter o máximo de normalidade nos sistemas de saúde para que atendam, tanto os casos mais graves de COVID19, como as necessidades sanitárias de rotina. Nenhum governo condiciona a agenda de restabelecimento da rotina à fabricação de uma vacina.

Além de fatores demográficos, urbanísticos, culturais e socio-econômicos, ficou evidente que a intensidade da atual privação social e da paralisia econômica é proporcional à sujeição dos sistemas de saúde às regras da administração empresarial. Ficaram evidentes os limites do aclamado dinamismo global, incapaz de oferecer insumo hospitalar adequado para potenciais 5% da população com os sintomas mais agudos da doença. A incapacidade de zonas ricas do hemisfério norte em lidar com a quantidade repentina de enfermos (Lombardia, Madrid, Nova York e outras), somente comprova que estes sistemas sanitários funcionavam perfeitamente bem, de acordo com suas diretrizes administrativas. O que estava rotundamente equivocado eram, e continuam sendo, os princípios do mercado aplicados às esferas que escapam de sua alçada. A Suécia, tradicional exemplo de Estado de bem-estar social, considerou estar preparada para se abster da quarentena. Dentro de alguns meses, a comparação com seus vizinhos nórdicos mais precavidos, evidenciará os equívocos globais das últimas décadas.

É cedo para saber se esta pandemia abrirá novos horizontes para o mundo, se ela realmente suspenderá em definitiva o último estado de normalidade ou se o status quo retornará amanhã ao seu business as usual. Em resumo, um mundo de acumulações injustificáveis, regulado com uma mistura de fantasia meritocrática, de Estado fagocitado e de caridade funcional. O certo é que este curto-circuito precipita a tendência geopolítica em curso - iniciada com a guerra ao terror de Bush e coroada com a chegada de Trump à presidência - favorável à China em detrimento dos Estados Unidos, ameaçadora para o quase falido projeto europeu e temerária para regiões como América Latina y África.

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O negacionismo infindável de Bolsonaro em relação aos riscos do SARS-Cov2, coloca agora o Brasil às portas de um verdadeiro genocídio residual

No Brasil, onde o presidente demitiu seu ministro de saúde por defender a quarentena, a pandemia refletiu no vocabulário político um novo termo notório: pandemônio. É o resultado de uma postura preconceituosa, obscurantista e subalterna de Jair Bolsonaro aos interesses do homólogo Donald Trump, o que varreu do mapa a altivez da diplomacia brasileira e entregou ao ultraliberalismo o controle sobre as políticas públicas. Já em 2016, este mesmo setor levou Michel Temer à presidência e aprovou a reforma fiscal que os congressistas da oposição apelidaram de PEC da Morte. Os insuficientes gastos em saúde, ciência e educação ficaram congelados pelos próximos vinte anos. O atual governo avançou com a doutrina do Estado Mínimo, realizando privatizações prejudiciais ao patrimônios dos cidadãos e uma reforma previdenciária que manteve os tradicionais privilégios de militares e altos cargos públicos, sempre em detrimento da massa empobrecida, para garantir o fluxo de capital ao rentismo financeiro. O apoio oficial do governo às queimadas florestais e ao extermínio dos povos nativos foi, internacionalmente, a cara mais visível de um governo, cujos perigos não respeitam fronteiras.

O negacionismo infindável de Bolsonaro em relação aos riscos do SARS-Cov2, coloca agora o Brasil às portas de um verdadeiro genocídio residual, o risco de deixar morrer centenas de milhares de “ subcidadãos dispensáveis” que não terão socorro nem despedida. Jair Bolsonaro aposta que a maioria tampouco se transformará em estatísticas. Embora estejamos diante de um vírus extremamente democrático, na república mais desigual do planeta, a assistência é aristocrática. O trajeto do SARS-Cov2 no país confirma: trazido por turistas endinheirados voltando da Itália e dos Estados Unidos, fez de um porteiro e de uma limpadora doméstica suas primeiras vítimas.

No sentido mais hegeliano, o Brasil chegou ao terceiro e derradeiro movimento de uma dialética própria. No primeiro ato, o conservadorismo como tese, fruto de uma sociedade colonialista, relacional, aristocrática e desigual. No segundo, a vulgaridade como antítese, pela instalação de um modelo neoliberal, de individualismo alienador e subjetividade narcísica. Antítese que não nega a tese, que a absorve e assimila até que a contingência permita o terceiro ato: a barbárie como síntese da dialética brasileira. Barbárie representada por reacionarismo, fanatismo neopentecostal, anticientificismo, necropolítica e novas lógicas da desinformação, que reforçam a ignorância, o ressentimento e a iniquidade daqueles que, ativos como nunca, fizeram de Jair Bolsonaro seu representante máximo, também chamado de “o mito”.

Sob o modelo neoliberal ainda vigente (doutrinamento de Hayek e Mises operado com eficiência desde Thatcher e Reagan) é o detestado Estado que sai com seus mais substanciosos recursos para resgatar bancos e mercado financeiro. Neste caso, o faz invariavelmente sob justificativas simplistas e capciosas. Ao povo, bastou um anúncio troiano: mais autonomia para o Banco Central proteger a economia. O que significará a transferência direta de US$200bi do Tesouro Nacional para os banqueiros. Mais uma vez, o controle nas mãos dos representantes do grande capital privado, seguidores do mantra que transforma crise em oportunidade. Aos cidadãos sem sustentos durante a pandemia, a oferta do Ministro Paulo Guedes foi de US$40 mensais, elevados a US$120 pelos congressistas da oposição.

Quando o aquecimento global ou a desigualdade estrutural provocarem similar excepcionalidade a esta pandemia, será demasiado tarde para encontrar qualquer alternativa

Como se esperava desde o início do atual governo, a maioria da direita pseudo-civilizada e oportunista, abandonou Bolsonaro. O advento da pandemia ajudará este perigoso grupo de políticos, empresários e jornalistas a reforçar uma amnésia coletiva e desvincular-se de vez de seu antigo hospedeiro. Ao Capitão Bolsonaro, resta o gabinete comandado por seus filhos, o apoio da bancada evangélica e a tutela dos generais, que exercem um governo militar de facto.

Se o golpe em Dilma Rousseff abriu a Caixa de Pandora, a pandemia amplificadora do pandemônio poderá decretar seu fechamento. Em 2018 era razoável prever que Bolsonaro não terminaria seu mandato. Hoje, percebe-se que ele pode nem cumprir a metade. Em menos de um ano, suspeitas incômodas se somam aos desmandos políticos: assassinato do Capitão Adriano, condecorado oficialmente pela família Bolsonaro e presunto matador de Marielle Franco; desaparecimento de Fabrício Queiroz, principal assessor da família Bolsonaro no Rio de Janeiro, conhecido por operar milícias na cidade e realizar depósitos na conta da atual Primeira Dama; súbito infarto do ex-aliado e recém desafeto político, Gustavo Bebbiano. Fatos que apenas se somam a antigas práticas de corrupção e desserviços acumulados por quase três décadas pela família Bolsonaro no poder legislativo do país. A figura política de Bolsonaro é sintoma e passará, mas as causas permanecerão: o reacionarismo incorrigível, o fundamentalismo ascendente, a elite ignóbil e o Lawfare como ferramenta de manipulação política. Qualquer tentativa de refundação republicana, deverá enfrentar estes inimigos da democracia e realizar um profundo exame dos fracassos acumulados nas últimas quatro décadas de exercício democrático.

Para a comunidade global, a pandemia não deixa de ser a chance de também refundar seus princípios e combater seus mitos. Um deles, o mito absolutista liberal que exalta as conquistas da modernidade triunfante, possível graças à inegável acumulação exponencial de saberes e de fazeres. Ignora, porém, as alternativas ao dever-ser do mundo que este capital cognitivo possibilitaria, mas coíbe porque dele se apropriam e o transformam em território de dominação. Ao final de 2020, as mortes por acidentes de tráfego e pela contaminação atmosférica dos automóveis serão superiores aos óbitos por SARS-Cov2. Uma estatística que se repete há décadas, mas a vida continua astuciosamente programada para que o máximo de pessoas desejem e dependam do carro. Quando o aquecimento global ou a desigualdade estrutural provocarem similar excepcionalidade a esta pandemia, será demasiado tarde para encontrar qualquer alternativa.

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