Nos últimos quatro anos, Bolsonaro trouxe a ideologia da ultradireita para o Estado, impulsionando o repúdio sistemático à perspectiva de gênero nas políticas públicas e atacando o direito ao aborto e os direitos dos povos indígenas. Ele estimulou e sustentou a fúria de sua base política e canalizou recursos para grupos religiosos, financiando projetos controversos de reabilitação de drogas e utilizando dinheiro público para pagar propaganda oficial em veículos de mídia evangélicos.
Ele deixa a extrema-direita mais forte no Congresso (seu Partido Liberal agora detém a maior bancada na Câmara dos Deputados e no Senado) e no controle dos principais governos estaduais, além de uma base política mais organizada e melhor distribuída geográfica e socialmente. Uma parcela significativa do eleitorado tradicional de direita convergiu e se homogeneizou com o núcleo duro do bolsonarismo, como explica a pesquisadora Camila Rocha, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP).
Ao mesmo tempo, "nas eleições de 2022 houve sinais de que o bolsonarismo, como Frankenstein, está se distanciando de seu criador e se tornando mais violento", disse Isabela Kalil ao openDemocracy. "Isto é demonstrado pelas diversas manifestações e bloqueios de estradas após o segundo turno presidencial de 30 de outubro, que, em alguns casos, foram financiados por empresários locais", acrescentou ela.
Brasil, nodo da ultradireita transnacional
O giro à extrema-direita no Brasil deve ser analisado à luz de dinâmicas especificas nacionais. Mas também deve ser lido como a manifestação brasileira do ressurgimento político da extrema-direita, que vem ocorrendo na Europa e nas Américas desde o início dos anos 2010, mas cuja genealogia nos transporta para muito mais longe no tempo. O ataque ao conceito de gênero que ocorreu nas vésperas da IV Conferência Mundial sobre a Mulher da ONU, em 1995, é descrito, por exemplo, como o momento inaugural da atual política antigênero, cujos efeitos no Brasil são inequívocos.
Desde os anos 70, começando na Europa e nos Estados Unidos, esta reorganização ideológica tem sido dispersa e gradual, mas contínua. Em seu curso, o ultraconservadorismo secular e religioso abandonou posições estáticas de defesa da ordem política existente para investir em "mobilizações metapolíticas", ou seja, desvinculadas de instituições estatais ou de partidos políticos. Esta "revolta conservadora", para usar o termo do filósofo brasileiro Marcos Nobre, é interpretada por muitos analistas como o giro gramsciano da direita, uma estratégia de mobilização para promover mudanças culturais e assim assegurar a hegemonia política, seguindo a teoria do filósofo comunista italiano Antonio Gramsci.
Desde 2018, Bolsonaro e seu filho Eduardo estabeleceram fortes laços com a extrema-direita dos EUA – como mostra um recente artigo do OpenDemocracy – especialmente com o estrategista do ex-presidente Donald Trump, Steve Bannon, e a Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC). Nos últimos quatro anos, o Brasil se converteu em um nodo articulador para essas tramas e parada obrigatória para figuras globais de extrema-direita. Bolsonaro está deixando o poder, mas esta teia de conexões permanecerá ativa.
Um alerta regional
Não sem razão, a vitória de Lula no segundo turno presidencial brasileiro foi recebida com entusiasmo pelas forças progressistas da região. Envolveu um esforço árduo contra a política digital da ultradireita e sua novíssima máquina eleitoral. Em seus momentos finais, teve que enfrentar várias formas de coerção eleitoral, exemplificadas pela onda de denúncias de que empregadores estariam pressionando seus funcionários a votar em Bolsonaro.
De certa forma, as eleições brasileiras marcam a consolidação do novo ciclo político progressista latino-americano. A esquerda ganhou seis das últimas oito eleições presidenciais e, pela primeira vez, governará as cinco principais economias da América Latina (Argentina, Brasil, Chile, Colômbia e México).
Mas Lula se juntará a um movimento político com sinais de crise e muitos desafios. Ao contrário do que aconteceu no início dos anos 2000, os governos progressistas atuais enfrentam maiores restrições políticas e econômicas para concretizar suas agendas. O clima de inquietação e cansaço se aprofundou nos últimos anos, face a um quadro sociopolítico desencorajador. Embora no Brasil, em 2022, o apreço pela democracia tenha sido o maior em muito tempo, pesquisas como o Latinobarómetro mostram um crescente descontentamento dos cidadãos com as instituições democráticas e uma marcada rejeição a líderes políticos. Com a pandemia, a região retrocedeu 20 anos em termos de desenvolvimento social, revertendo parte central das conquistas dos governos da primeira década deste século, especialmente na redução da pobreza. As classes médias, por sua vez, estão sofrendo cada vez mais com a precariedade da vida enquanto exigem melhores serviços públicos.
Em tal cenário, a resiliência eleitoral de Bolsonaro e a consolidação do movimento que ele trouxe são dados relevantes. A experiência brasileira foi acompanhada de perto por referências da extrema-direita na região, como Javier Milei, na Argentina, e José Antonio Kast, no Chile. A conectividade transnacional dessas forças está agora mais consolidada, pois elas tentam replicar e adaptar as narrativas e táticas de Bolsonaro ao contexto de seus países, com sucesso eleitoral misto, mas crescente. A afinidade e identificação pessoal de Bolsonaro com diferentes setores sociais - desde policiais até trabalhadores agrícolas - aliada à evaporação da direita tradicional formam um modelo que é examinado de perto por essas forças regionais, que buscam provocar a agitação social para se estabelecerem como protagonistas do jogo político.
Se a experiência estadunidense nos mostra alguma coisa – e deveria, considerando as semelhanças entre estes movimentos de extrema-direita – a sobrevivência do Trumpismo sugere que, uma vez que estas forças chegam ao poder político, é difícil eliminá-las do mapa.
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