50.50: Opinion

A ultradireita latino-americana não acaba com a saída de Bolsonaro

Opinião: o presidente de saída do Brasil é apenas um sintoma da maré conservadora na América Latina

Sonia Correa Juan Elman
Sonia Correa Juan Elman
16 Novembro 2022, 4.39
Caminhoneiros apoiadores do presidente Jair Bolsonaro bloqueiam uma rodovia durante protesto contra a derrota de Bolsonaro no segundo turno das eleições em Curitiba, capital do estado do Paraná. 1º de novembro de 2022
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REUTERS / Alamy Stock Photo / Rodolfo Buhrer

A ascensão de Jair Bolsonaro ao poder em 2018 foi fugaz e estrondosa, pegando observadores locais e internacionais de surpresa. Ex-militar de baixa patente e depois congressista, ele era conhecido por suas declarações misóginas e homofóbicas, mas tinha pouco capital político. Sua ascensão foi facilitada pela dinâmica que levou a uma oposição vertiginosa ao Partido dos Trabalhadores (PT), de esquerda, processo que começou com as mobilizações massivas de 2013, motivadas por demandas por melhores serviços públicos em uma época que o governo investia maciçamente em megaeventos esportivos, como a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016.

A então presidenta Dilma Rousseff, do PT, venceu por pouco as eleições de 2014 para seu segundo mandato. Mas o desgaste político continuou crescendo, sobretudo devido aos efeitos da recessão econômica e aos escândalos de corrupção que atingiram o PT durante a Operação Lava-Jato, uma série de investigações judiciais que levaram à prisão de dezenas de políticos e empresários e desacreditaram o sistema político, demonizando o PT. Muito rapidamente as mobilizações guinaram para a direita, impulsionadas pela Lava-Jato, e eventualmente levaram ao impeachment de Dilma em 2016 e à condenação e prisão do ex-presidente e líder do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, em 2018.

Com Lula preso, Bolsonaro instalou sua política digital, forjando uma relação direta com o eleitorado e fazendo amplo uso de fake news na corrida contra o candidato do PT, Fernando Haddad. Ele atacou a "ideologia de gênero" como a outra face do "comunismo" (que se converteu em sinônimo de petismo), criando um bode expiatório para problemas como a corrupção, pânico sexual e insegurança pública.

Posicionando-se como o salvador do Brasil, Bolsonaro atraiu um eleitorado heterogêneo e de diversas classes sociais, como mostrou uma pesquisa da antropóloga Isabela Kalil. Mas ele já era o candidato preferido da indústria de armas, do agronegócio e do mercado financeiro, bem como dos militares de alta patente. Tinha suas bases eleitorais no Rio de Janeiro, constituídas por policiais, militares de baixa patente e milícias (quadrilhas de policiais aposentados que lucram com a extorsão e a venda ilegal de serviços básicos – como eletricidade, gás, água ou internet) conectados a outras partes do país. Suas posições "morais" sobre questões como direitos sexuais e casamento igualitário ecoavam as visões do ultracatolicismo e do fundamentalismo evangélico.

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A eleição de Bolsonaro em 2018 também foi facilitada pela centro-direita tradicional, que teve um desempenho medíocre. O fato de Geraldo Alckmin, o candidato de centro-direita que conquistou meros 5% dos votos em 2018, ter sido o candidato à vice-presidência de Lula este ano, é prova de que esta erosão da direita tradicional continua. Nas eleições do mês passado, os candidatos centristas mais uma vez não chegaram a 5% dos votos, apesar do apoio das elites econômicas relutantes em apoiar Lula – que acabou derrotando Bolsonaro e ganhando as eleições presidenciais.

O legado de Bolsonaro

À medida que a centro-direita colapsava no Brasil e na região, a extrema-direita se expandiu e ganhou força, como ilustra o desempenho eleitoral de Bolsonaro e as eleições de 2021 no Chile.

Quatro décadas haviam se passado desde a queda das ditaduras militares na América do Sul quando Bolsonaro chegou ao poder no Brasil. Eleito por um partido fraco e sem muita estrutura por trás, ele conseguiu manter-se no controle do poder aderindo às barganhas típicas do sistema político brasileiro, principalmente graças a um acordo com um grupo de partidos no Congresso, conhecido como "Centrão", que concede governabilidade em troca de dinheiro e cargos. Com isso, teve à disposição e fez uso de uma maciça máquina eleitoral que contribuiu para que tivesse quase 60 milhões de votos no segundo turno, mesmo após uma gestão econômica medíocre e uma resposta desastrosa à COVID-19, cujo número de mortos chega aos 700.000.

Nos últimos quatro anos, Bolsonaro trouxe a ideologia da ultradireita para o Estado, impulsionando o repúdio sistemático à perspectiva de gênero nas políticas públicas e atacando o direito ao aborto e os direitos dos povos indígenas. Ele estimulou e sustentou a fúria de sua base política e canalizou recursos para grupos religiosos, financiando projetos controversos de reabilitação de drogas e utilizando dinheiro público para pagar propaganda oficial em veículos de mídia evangélicos.

Ele deixa a extrema-direita mais forte no Congresso (seu Partido Liberal agora detém a maior bancada na Câmara dos Deputados e no Senado) e no controle dos principais governos estaduais, além de uma base política mais organizada e melhor distribuída geográfica e socialmente. Uma parcela significativa do eleitorado tradicional de direita convergiu e se homogeneizou com o núcleo duro do bolsonarismo, como explica a pesquisadora Camila Rocha, do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP).

Ao mesmo tempo, "nas eleições de 2022 houve sinais de que o bolsonarismo, como Frankenstein, está se distanciando de seu criador e se tornando mais violento", disse Isabela Kalil ao openDemocracy. "Isto é demonstrado pelas diversas manifestações e bloqueios de estradas após o segundo turno presidencial de 30 de outubro, que, em alguns casos, foram financiados por empresários locais", acrescentou ela.

Brasil, nodo da ultradireita transnacional

O giro à extrema-direita no Brasil deve ser analisado à luz de dinâmicas especificas nacionais. Mas também deve ser lido como a manifestação brasileira do ressurgimento político da extrema-direita, que vem ocorrendo na Europa e nas Américas desde o início dos anos 2010, mas cuja genealogia nos transporta para muito mais longe no tempo. O ataque ao conceito de gênero que ocorreu nas vésperas da IV Conferência Mundial sobre a Mulher da ONU, em 1995, é descrito, por exemplo, como o momento inaugural da atual política antigênero, cujos efeitos no Brasil são inequívocos.

Desde os anos 70, começando na Europa e nos Estados Unidos, esta reorganização ideológica tem sido dispersa e gradual, mas contínua. Em seu curso, o ultraconservadorismo secular e religioso abandonou posições estáticas de defesa da ordem política existente para investir em "mobilizações metapolíticas", ou seja, desvinculadas de instituições estatais ou de partidos políticos. Esta "revolta conservadora", para usar o termo do filósofo brasileiro Marcos Nobre, é interpretada por muitos analistas como o giro gramsciano da direita, uma estratégia de mobilização para promover mudanças culturais e assim assegurar a hegemonia política, seguindo a teoria do filósofo comunista italiano Antonio Gramsci.

Desde 2018, Bolsonaro e seu filho Eduardo estabeleceram fortes laços com a extrema-direita dos EUA – como mostra um recente artigo do OpenDemocracy – especialmente com o estrategista do ex-presidente Donald Trump, Steve Bannon, e a Conferência de Ação Política Conservadora (CPAC). Nos últimos quatro anos, o Brasil se converteu em um nodo articulador para essas tramas e parada obrigatória para figuras globais de extrema-direita. Bolsonaro está deixando o poder, mas esta teia de conexões permanecerá ativa.

Um alerta regional

Não sem razão, a vitória de Lula no segundo turno presidencial brasileiro foi recebida com entusiasmo pelas forças progressistas da região. Envolveu um esforço árduo contra a política digital da ultradireita e sua novíssima máquina eleitoral. Em seus momentos finais, teve que enfrentar várias formas de coerção eleitoral, exemplificadas pela onda de denúncias de que empregadores estariam pressionando seus funcionários a votar em Bolsonaro.

De certa forma, as eleições brasileiras marcam a consolidação do novo ciclo político progressista latino-americano. A esquerda ganhou seis das últimas oito eleições presidenciais e, pela primeira vez, governará as cinco principais economias da América Latina (Argentina, Brasil, Chile, Colômbia e México).

Mas Lula se juntará a um movimento político com sinais de crise e muitos desafios. Ao contrário do que aconteceu no início dos anos 2000, os governos progressistas atuais enfrentam maiores restrições políticas e econômicas para concretizar suas agendas. O clima de inquietação e cansaço se aprofundou nos últimos anos, face a um quadro sociopolítico desencorajador. Embora no Brasil, em 2022, o apreço pela democracia tenha sido o maior em muito tempo, pesquisas como o Latinobarómetro mostram um crescente descontentamento dos cidadãos com as instituições democráticas e uma marcada rejeição a líderes políticos. Com a pandemia, a região retrocedeu 20 anos em termos de desenvolvimento social, revertendo parte central das conquistas dos governos da primeira década deste século, especialmente na redução da pobreza. As classes médias, por sua vez, estão sofrendo cada vez mais com a precariedade da vida enquanto exigem melhores serviços públicos.

Em tal cenário, a resiliência eleitoral de Bolsonaro e a consolidação do movimento que ele trouxe são dados relevantes. A experiência brasileira foi acompanhada de perto por referências da extrema-direita na região, como Javier Milei, na Argentina, e José Antonio Kast, no Chile. A conectividade transnacional dessas forças está agora mais consolidada, pois elas tentam replicar e adaptar as narrativas e táticas de Bolsonaro ao contexto de seus países, com sucesso eleitoral misto, mas crescente. A afinidade e identificação pessoal de Bolsonaro com diferentes setores sociais - desde policiais até trabalhadores agrícolas - aliada à evaporação da direita tradicional formam um modelo que é examinado de perto por essas forças regionais, que buscam provocar a agitação social para se estabelecerem como protagonistas do jogo político.

Se a experiência estadunidense nos mostra alguma coisa – e deveria, considerando as semelhanças entre estes movimentos de extrema-direita – a sobrevivência do Trumpismo sugere que, uma vez que estas forças chegam ao poder político, é difícil eliminá-las do mapa.

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