
Trabalhadores humanitários 'exigem sexo em troca de comida' em Moçambique
Trabalhadores humanitários exploram refugiadas com promessa de comida, enquanto se recusam a alimentar idosos


Macia* tinha 13 anos quando chegou, já grávida, a um acampamento para pessoas deslocadas internamente na província de Cabo Delgado, norte de Moçambique, em maio de 2020.
Como milhares de outras pessoas, ela fugiu do conflito que assola a província desde 2018, travado principalmente entre militantes islâmicos (conhecidos localmente como Al-Shabaab) e as forças de segurança moçambicanas. Os islamistas queimaram sua casa, decapitaram seu pai e irmãos e a estupraram.
Hoje, Macia alega que, enquanto esteve no acampamento, foi forçada a trocar sexo por ajuda alimentar de trabalhadores humanitários locais. "Dormi com vários homens desde 2020 para poder alimentar a mim e ao meu bebê", disse ao openDemocracy.
Macia, agora com 16 anos, está grávida novamente e afirma que "para alimentar os desejos dessa gravidez, sucumbi às exigências sexuais dos poderes constituídos".
Questionada sobre o responsável por sua segunda gravidez, Macia disse: “Não tenho certeza. O que tenho certeza é que sou a mãe e estou sozinha.”
Há cerca de 14 mil deslocados internos no acampamento que dependem quase exclusivamente de ajuda humanitária, principalmente do Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas (PMA), da comunidade islâmica local e da Caritas, uma organização católica de ajuda.
O openDemocracy viajou para Cabo Delgado para conversar com mulheres que, como Macia, alegam que os trabalhadores humanitários locais responsáveis pela distribuição de alimentos exigem sexo e dinheiro em troca de comida.
Os trabalhadores humanitários deveriam ser contratados pelo governo moçambicano para distribuir a ajuda fornecida pelo PMA e outros, mas as muitas brechas significam que são frequentemente nomeados pelos líderes comunitários. O openDemocracy entrou em contato com funcionários do governo, mas não obteve resposta.
Os líderes locais controlam quem recebe a ajuda alimentar e, muitas vezes, usam isso a seu favor.
"Quando cheguei [ao acampamento], depois de viajar por quase duas semanas, estava fraca e com fome. Fui informada que não qualificava para a lista para receber ajuda alimentar", conta Macia, alegando que um líder comunitário disse que isso se devia ao fato de ela ser mulher.
Macia conta que um dos líderes disse que, por "eu ter a pele clara e estar em boa forma, ele me ajudaria a conseguir comida – se eu cedesse esse beleza a ele”.
O PMA disse ao openDemocracy que recebe relatos de abuso desde 2019, mas "não realizou nenhuma investigação contra líderes locais", de acordo com a porta-voz do programa, Denise Dalla Colletta.
Em vez disso, explicou Coletta, "o PMA encaminha as vítimas para serviços de violência de gênero, que incluem apoio psicossocial e assistência jurídica". Essas organizações fornecem esclarecimentos sobre possíveis recursos legais.
Embora as sobreviventes com quem o openDemocracy conversou temessem nomear seus agressores, várias mulheres identificaram um suposto funcionário da organização de assistência.
"Ele nos aterrorizou entre 2020 e 2021. Tínhamos medo dele", lembrou Unna, uma das mulheres deslocadas internamente no acampamento.
"Ele sempre vinha vestindo um macacão laranja, dirigindo um carro grande. Ele dava instruções aos trabalhadores no local. Eles então distribuíam alguns sacos de comida e diziam que o resto estava à venda."
Minha irmã tem apenas 15 anos e também sucumbiu às exigências desses homens sem coração para conseguir mais comida para a família
Em outro campo de refugiados visitado pelo openDemocracy em Cabo Delgado, o nome de outro líder comunitário foi citado como tendo supostamente abusado de várias mulheres.
“Ele era obcecado por mulheres altas e bonitas. Se ele achasse você atraente, ele dizia: ‘Não há necessidade de anotar seu nome. Vou garantir que você seja alimentada, para que você também me alimente’”, conta Ozama, explicando que o homem se referia a sexo.
“Ele fez isso comigo e com outras duas mulheres que conheço”, acrescenta.
Negligência do governo
Cabo Delgado é um dos conflitos esquecidos do mundo, mas o fracasso do Estado moçambicano em fornecer apoio aos seus deslocados internos piorou a situação.
O governo não esteve diretamente envolvido no registo de pessoas deslocadas e não elaborou listas de pessoas que deveriam se beneficiar de ajuda internacional. Mas também não permite que as próprias organizações de ajuda elaborem listas, argumentando que Moçambique é um Estado soberano.
O trabalho, portanto, recai sobre os representantes locais e dos líderes comunitários, que estão estreitamente ligados ao partido no poder e raramente são responsabilizados – mesmo por acusações de abusos sexuais.
“Esses líderes comunitários são apoiadores de base do partido no poder, a Frelimo; eles mobilizam apoiadores para a Frelimo, coletam dinheiro da comunidade para a Frelimo, fazem campanha para a Frelimo”, explica Borges Nhamirre, pesquisador sobre o conflito em Moçambique do Instituto de Estudos de Segurança.
Nhamirre acrescentou que não espera que os acusados sejam levados à justiça, “porque desde que os abusos começaram, ninguém nunca foi condenado. Acho que esse caso nunca será resolvido”.
Já tivemos que suspender a distribuição de alimentos porque os dez primeiros nomes da lista eram o do chefe e de seus familiares
Para além das alegações de abuso sexual, a falta de conhecimentos especializados dos líderes comunitários também inclui o nível de cuidados que podem oferecer aos refugiados.
Segundo um relatório do Centro de Integridade Pública de Maputo, capital de Moçambique, os dirigentes “não têm a formação profissional que lhes permita gerir processos tão complexos e sensíveis como o registo de milhares de pessoas deslocadas por conflitos”.
Além disso, são corruptos e roubam para si alimentos destinados aos deslocados internos. O diretor de programas da Caritas, Manuel Nota, confirmou casos em que isso aconteceu em Cabo Delgado.
“Já tivemos que suspender a distribuição de alimentos porque os dez primeiros nomes da lista eram o do chefe e de seus familiares”, disse ao openDemocracy. “Os beneficiários pretendidos [os deslocados internos] se sentem impotentes para denunciar os casos, geralmente por medo de serem vitimados.”
Sexo em troca de ajuda
Ao lado da tenda de plástico improvisada de Macia, Asumuta, de 34 anos, natural de Pemba, capital da província, diz que levou nove meses para que seu nome aparecesse no registro oficial de beneficiários de ajuda. Esse registro deve incluir chefes de família, independentemente de gênero, e em alguns casos é dada prioridade para pessoas vulneráveis, que pode se dar devido a idade, gravidez ou estado de saúde.
“Meu nome não constava na lista desde [que cheguei ao acampamento em] junho de 2021”, afirma. “Tenho dois filhos e uma irmã mais nova para alimentar. Não sei onde meu marido está. Fomos separados quando a guerra começou em nossa cidade”, conta.
Asumata diz que foi forçada a dormir com vários homens – todos chefes da comunidade responsáveis pela distribuição de alimentos. “O abuso só parou quando finalmente registrei meu nome em março de 2022, também depois de dormir com um líder comunitário,” relata.
“Minha irmã mais nova tem apenas 15 anos e também sucumbiu às exigências desses homens sem coração para conseguir mais comida para a família”, acrescenta.
Seis outras mulheres do mesmo acampamento também relataram terem sido estupradas ou coagidas a ter relações sexuais para obter ajuda.
Dizem que eu não tenho nada para oferecer em troca de comida. Dizem que sou muito velha para pagar com sexo
Outras pessoas deslocadas no mesmo acampamento, incluindo quatro mulheres e seis homens que falaram com o openDemocracy, foram obrigados a pagar pela ajuda – ou a ajuda lhes foi recusada totalmente.
Oswar disse que seu nome era constantemente omitido da lista e que, por isso, ele tinha que "percorrer as comunidades vizinhas fazendo bicos para conseguir dinheiro para pagar a comida aos trabalhadores humanitários".
Aricie, de 78 anos, disse que chegou ao acampamento em dezembro de 2020, mas ainda tem dificuldade para conseguir comida. “Os responsáveis dizem que eu não tenho nada para oferecer em troca de comida. Dizem que sou muito velha para pagar com sexo”, afirma, acrescentando que recebe ajuda de um casal da sua aldeia que também está no acampamento.
Os sonhos de Macia de se tornar advogada foram destruídos pela guerra. “Muito em breve, serei mãe de dois filhos aos 16 anos, com filhos que nunca planejei ter. Eu queria me tornar advogada e me casar com um homem rico”, disse ao openDemocracy.
*Os nomes foram alterados
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