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A falsa ingenuidade das teorias conspiratórias

Histórias de conspiração proliferam durante a pandemia de Covid-19. Narrativas conspiratórias tem justificado políticas públicas negligentes em relação a problemas sérios. É urgente diminuir a distância entre a ciência e a sociedade comum. Español

Abraão Luiz
Abraão Luiz
18 Maio 2020, 5.41
Ilustración de una Tierra plana basada en la de un cosmógrafo asiático del siglo XII
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Wikimedia Commons. Dominio Público

Em meados de 1903, era publicado na Rússia um documento que iria inspirar a grande maioria das teorias conspiratórias modernas. Os Protocolos dos Sábios de Sião, que se propõe a ser um documento autêntico (embora não seja), descreve um plano detalhado de como judeus e maçons buscam dominar o mundo através de ações estrategicamente pensadas na economia, religião, cultura, valores morais, mídia, ciência, movimentos sociais, entre outros meios. A publicação do texto na Rússia também marca o início dos pogroms anti-judaicos, momento em que milhares de judeus foram mortos ou fugiram do país.

O texto foi traduzido em diversas línguas e divulgado internacionalmente. Antes da ascensão de Hitler na Alemanha, os nazistas já distribuíam cópias dos Protocolos, além de o usarem como fonte para o desenvolvimento de sua teoria política. Na Alemanha Nazista, o documento era ensinado nas escolas, citado em discursos políticos, utilizado na propaganda e, finalmente, usado como justificativa para o extermínio da população judaica.

No Brasil, o texto foi publicado pela primeira vez por Gustavo Barroso, escritor abertamente antissemita e membro da Ação Integralista Brasileira, grupo de extrema-direita e de orientação fascista. Nos Estados Unidos, Henry Ford financiou a impressão de 50.0000 cópias, que foram distribuídas na década de 1920. Inspirador de milhares de ataques antissemitas em todo o mundo, os Protocolos ainda hoje são amplamente divulgado em teorias conspiratórias, estando disponível de forma camuflada na internet, apesar de ser facilmente encontrado.

Crise epistemológica e o papel da ciência

É consenso, nas ciências humanas, que estamos atravessando uma profunda e ampla crise epistemológica. A excessiva desregulamentação dos mercados financeiros, desmonte do Estado Social (Welfare State), frequentes escândalos nos governos e instituições religiosas, geraram uma desconfiança na população em relação às suas instituições. As crises institucionais, observáveis em grande parte dos países, é sobretudo uma crise de representatividade: desencantadas com as instituições democráticas, com a mídia e com os governos, as pessoas tendem a se refugiar em novas narrativas. Até mesmos fatos e consensos científicos devem ser abandonados ou encarados como objeto de desconfiança. Esta nova forma de irracionalismo pós-moderno deixou um vazio, facilmente preenchido por teorias conspiratórias, marcando a renovação de mitos antigos, bem como a criação de outros novos.

As teorias conspiratórias ganham um novo espaço e popularidade, principalmente por não necessitarem de métodos científicos para sua validação, nem por exigirem que sua narrativa seja construída sobre a realidade factual. Nessa nova era, o que é “real” tem menos importância do que aquilo que “parece verdade”, desde que a divulgação deste cause maior impacto nas redes sociais e na mídia, ou atinja os objetivos por trás de uma ampla divulgação. Os fatos objetivos perderam sua relevância diante dos discursos que “apelam às emoções” ou que equivalem às suas crenças pessoais. A simples observação do mundo sensível é capaz de contestar consensos científicos sem o rigor de sua metodologia. O ambiente proposto pela internet acaba popularizando questões que, sem chegar a serem consideradas na esfera científica devido às suas inconsistências, acabam por moldar a opinião pública e inclusive, políticas de estado.

Por outro lado, teme-se que as ciências estejam dando pouca importância para este fenômeno. Apesar do conteúdo destas teorias ser irrelevante para o debate científico, os mecanismos que possibilitam a popularização da narrativa conspiratória, bem como suas consequências, não deveriam ser deixados de lado. É preciso recuperar o papel da verdade do pensamento científico e das ciências humanas na modelagem da opinião e das políticas públicas, tornando relevante o papel da ciência para a população, afim de diminuir o distanciamento entre ela e a ciência (bem como as instituições que a representam).

Descompromisso com a verdade, desprezo pela ciência

É sabido, desde 1921, que Os Protocolos dos Sábios de Sião são uma fraude grotesca de “Diálogo no Inferno entre Maquiavel e Montesquieu”, escrito por Maurice Joly, como demonstrado numa série de artigos do The New York Times. O escrito original não trata sobre raça ou religião, bem como não menciona a questão judaica. A fraude é tão explícita que Os Protocolos copiam 80% da mesma estrutura e sequência de conteúdos dos Diálogos.

1934_Protocols_Patriotic_Pub.jpg
Wikimedia Commons. Public Domain

O fato dos documentos serem falsos não é um problema para as teorias da conspiração e seus divulgadores. Julius Evola, escritor fascista e inspirador de movimentos neofascistas do século XXI, conclui que mesmo sendo Os Protocolos um documento falso, eles são reais, devido ao “cumprimento dos conteúdos” dos mesmos. Para ele, existem duas questões que não estão necessariamente ligadas: “que é autenticidade e veracidade, a segunda delas é mais importante na realidade”. O grande problema desta visão é que a conclusão do suposto cumprimento dos “planos judaicos”, advém de uma interpretação desleal e enviesada da história, que não corresponde a verdade e não provém de uma sincera análise da sucessão dos fatos. Mesmo Evola reconhecendo as questões que expõe as fraudes do texto, baseou nele toda sua teoria racial.

A ausência de dados factuais ou a existência de contradições com a história não enfraquecem as teorias conspiratórias. Pelo contrário, elas se alimentam do negacionismo e do revisionismo histórico, ousando concorrer com a ciência sem qualquer respaldo científico. Em alguns cenários (como crises econômicas, crises sanitárias e pandemias), tais tendências podem ter consequências desastrosas.

A necessidade de se identificar inimigos internos ou externos, elemento essencial para as narrativas conspiratórias, preenche a necessidade do respaldo científico. Para Umberto Eco, é irracional um livro com tantas evidências de ser uma fraude, ainda assim resistir a todas elas, sendo lido e pregado por milhares de pessoas que desenvolverão inúmeras teorias conspiratórias com base nele. A conclusão é de que não são Os Protocolos que geram o antissemitismo, mas sim a profunda necessidade de se isolar um inimigo. Essa necessidade é o que faz com que muitas pessoas creiam nos Protocolos.

Essa irracionalidade também é percebida em outras teorias conspiratórias mais ou menos relacionadas aos Protocolos, na medida em que grande maioria delas afirmam que grupos tais como judeus, maçons, os Illuminati e “reptilianos” seriam seres sub-humanos, que escondem verdades fundamentais de toda a população e que cujo objetivo principal seria destruir a civilização ocidental e a raça branca e exterminar parte da população ou escravizá-la. O movimento terraplanista, por exemplo, acredita que os grupos acima escondem o verdadeiro formato da Terra (que seria plana) de toda a população, mesmo que haja milhares de evidências científicas documentadas que provam que seu formato é esférico. Segundo este movimento, a ideia de uma terra “Terra Esférica” seria um plano para que as pessoas deixassem de acreditar em Deus.

A ciência como instrumento de democratização

Pesquisas sugerem que as crenças conspiratórias são psicologicamente prejudiciais e patológicas e que estão altamente relacionadas a projeção psicológica, paranoia e maquiavelismo. Ao longo da história, as teorias conspiratórias tem sido instrumento de alienação, sofrimento, perseguição e justificativa para extermínios como o holocausto nazista e pogroms ao redor do mundo. No Brasil, e em outros países do mundo, as narrativas conspiratórias tem justificado políticas públicas negligentes em relação a problemas sérios, enfraquecendo laços diplomáticos, combatendo a solidariedade global, enfraquecendo a amizade entre os povos e inspirado crimes de ódio. Recentemente, chineses, comunistas e judeus têm sido apontados como os criadores e manipuladores do SARS-CoV-2, mesmo que pesquisas científicas já tenham comprovado que o vírus tem origem natural.

É mais do que necessário um trabalho de intensa divulgação científica e de conscientização sobre o avanço das pseudociências e teorias conspiratórias. O produto científico e as pesquisas devem ser orientadas para o uso popular, afim de que haja compreendimento da maior parte da população. É necessária a discussão destes novos fenômenos, bem como a urgente diminuição da distância entre as instituições científicas e a sociedade comum. A ciência deve ser instrumento de democratização da educação e do conhecimento cientifico, recuperando seu papel na modelagem da opinião e das políticas públicas.

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