
O crescente abuso das autoridades venezuelanas nos postos de controle
Manuel Gómez, diretor-geral da Acción Campesina, faz um balanço de 2020 para o setor agrícola do país e das principais ameaças à atividade produtiva nacional.

Um uniforme verde oliva ou camuflado azul escuro, bege e cinza no meio de uma estrada na Venezuela não é um sinal de segurança. Pelo contrário. É nos postos de controle militar e policial que eles garantem o matraqueo, como é chamado coloquialmente – uma espécie de imposto ou pedágio ilegal.
O número desses postos de "controle" distribuídos nas extensas e abandonadas estradas da Venezuela cresceu desde março de 2020 com o estado de alarme decretado pelo presidente Nicolás Maduro devido ao coronavírus, que impôs quarentena e aplicou restrições à mobilização entre estados.
“Nestes meses de pandemia, houve uma multiplicação desses controles e todo o país está repleto de histórias de como eles extorquem dinheiro”, diz Manuel Gómez, diretor-geral da Acción Campesina (Ação Camponesa), organização fundada em 1976 que presta serviços a organizações e instituições do setor rural e, principalmente, aos pequeno produtores. “E o governo de Nicolás Maduro, por omissão, permite o matraqueo”.
A aliança TalCual-Provea conversou com Gómez, que explica quais são os elementos estruturais que impactam negativamente a produção na Venezuela. Ele afirma que são muitos, mas pode citar os mais importantes: o acesso a sementes e agroquímicos, a queda no consumo e o processo de desinstitucionalização, cuja manifestação inclui o crescente abuso das autoridades nos postos de controle.
TalCual-Provea: A questão do matraqueo não é nova, mas como os produtores estão denunciando cada vez mais com mais força, parece que neste ano piorou.
Miguel Gómez: Agora com a pandemia, a prática aumentou. Me surpreende que, nas rodovias que vão de Caracas a Barquisimeto ou a Guárico, a distância entre o posto da polícia estadual e posto da Guarda Nacional seja de apenas 200 metros, e acredito que a multiplicação dos postos durante a pandemia esteja associada à necessidade de os funcionários extorquirem e tirarem dinheiro do povo.
Alguns comandantes dizem a seus subordinados para "sair e ver o que conseguem". Quando você dá carona para um guarda nacional ou um policial, eles dizem "nossa vida também é difícil e ganhamos uma mixaria".
TC-P: Aproximadamente, quanta mercadoria é deixada nos postos, desde a saída do estado até chegar ao centro de consumo?
MG: As pessoas têm que pagar esse "imposto" muitas vezes para poder passar. Alguns produtores afirmam deixar nos postos 30% da carga que trazem para Caracas. Todo mundo sabe que eles roubam nas postos, mas há uma espécie de permissibilidade por omissão e o governo nada faz. Faz parte de um processo de desinstitucionalização que vem acontecendo no país nos últimos 20 anos.
TC-P: Quais são as consequências desse processo de desinstitucionalização hoje?
MG: Pequenos, médios e grandes produtores não encontram como resolver questões como insegurança, dificuldades na obtenção de autorizações para o transporte de mercadorias, principalmente no setor pecuário; e não existe uma política pública que favoreça a pesquisa agropecuária. Não há assistência técnica aos produtores.
Toda aquela institucionalidade que estava a serviço das atividades produtivas foi desmantelada pelo chavismo e hoje estamos em uma situação de total abandono do Estado. É uma precariedade da institucionalidade, que vai sendo substituída por uma espécie de institucionalidade paralela e parainstitucional, que se vai formando a partir das vontades de algumas pessoas, como prefeitos e governadores, que determinam que nada pode sair de um município ou estado ou forçam os produtores a vender parte de sua produção com prejuízo.

TC-P: Que outros exemplos você pode nos dar sobre essa precariedade das instituições?
MG: Por exemplo, na região alta do estado de Lara, os compradores de café têm que, como dizem, descer da mula e vender o equivalente a 20% da mercadoria ao estado de Lara pelo preço que ele fixa, por ordem de um militar sênior que coordena o item naquela entidade.
Por exemplo, há dois anos o estado de Miranda monopolizou a compra do cacau dos produtores de Barlovento, que não são grandes, são agricultores. Esta compra compulsiva e monopolizada por uma instância do governo de Miranda (nas mãos do chavismo) representa a liquidação e expropriação do trabalho do povo. Queriam primeiro comprar o cacau pelo preço que determinavam e não de acordo com o valor do mercado. Depois diziam que os produtores tinham que vender para algumas prefeituras, como uma espécie de imposto para que o cacau saísse do município.
Diante desse quadro institucional difuso, surgiram gestores de cotas de poder para tirar proveito dos produtores. Em Barlovento, os municípios, o Corpo de Investigações Científicas, Criminais e Criminalísticas da Venezuela (CICPC) e até a Força de Ações Especiais (FAES) estão forçando os produtores a vender cacau pelo preço determinado pelas autoridades para fazer negócios.
TC-P: E Barlovento é uma área praticamente controlada por gangues organizadas...
MG: Em Barlovento parece que o acordo é que eles entreguem 30% da colheita ao pran – um tipo de líder de organização criminosa –, que supostamente protege.
O governo sabe da questão do pagamento de propina aos pranes e gangues organizadas que obrigam os produtores a pagar uma espécie de imposto de segurança, para que não os roubem. Às vezes é feito em espécie e outras vezes em dinheiro, mas é algo que se generalizou no país.
Antes os grandes produtores pagavam, agora todos, até os pequenos. Até uma senhora dona de quiosque de doces em uma cidade de Guárico é obrigada a pagar propina.
Todos esses elementos se combinam e reduzem a atividade produtiva de forma considerável.
É evidente que há uma queda muito importante da atividade produtiva neste ano, ainda mais com a Covid-19.
TC-P: Mas o que foi pior em 2020: a pandemia ou a falta de combustível?
MG: A falta de combustível foi muito mais séria do que a pandemia. As pessoas não têm ideia de quantos problemas são afetados pela falta de combustível, não só a questão dos veículos, mas também a questão dos tratores, bombas de irrigação que muitas vezes são movidas a gasolina e a locomoção interna dos trabalhadores. Existem vários elementos colaterais causados pela falta de combustível. As pessoas podem se locomover no meio de uma pandemia, mas se não tiverem meios de fazê-lo, fica complicado.
Eu cheguei a pagar US$ 4 por litro no mercado paralelo, nas áreas de Barquisimeto. Apesar de a maior parte da mercadoria ser movida a diesel e até agora ter havido abastecimento, muitas pessoas ainda usam gasolina. Em Sanare, Lara, um agricultor pode passar três semanas estacionado na fila de um posto de gasolina esperando o caminhão chegar e ter que rezar para que haja suficiente até chegar sua vez.
TC-P: Então não é verdade o que Maduro garante que os produtores, por serem de um setor que ele chama de essencial, tenham prioridade no abastecimento de combustível.
MG: Não acredito que os produtores concordem com a afirmação de Maduro. A crise dos combustíveis é tão profunda que acredito que os que têm prioridade são aqueles que de alguma forma traficam gasolina no país.

TC-P: Que outros elementos contribuem para a redução da atividade produtiva?
MG: Além do processo de desinstitucionalização, existem dois outros elementos estruturais importantes que impactam negativamente a produção na Venezuela. Um deles é o acesso a sementes, fertilizantes e agroquímicos para controle de pragas e doenças.
A falta de insumos não começou há dois dias, mas há vários anos. As pessoas precisam inventar formas de resolver a questão do acesso a sementes, fertilizantes e agroquímicos. É uma questão estrutural. O que muitas pessoas fazem é importar sementes e insumos praticamente por contrabando por estradas clandestinas.
A outra questão estrutural que também impacta a produção, obviamente, é a diminuição do consumo, associada ao baixo poder aquisitivo das pessoas para comprar alimentos e aos preços altíssimos dos alimentos no mercado.
Mas isso não é responsabilidade dos produtores, porque se você tiver que comprar insumos em mercados paralelos com dólar hiperinflacionário, taxas de câmbio exorbitantes, as pessoas têm que fazer alguma coisa para continuar produzindo e lutando.
TC-P: E toda vez que o governo fala em preço, culpa o produtor
MG: Há muito tempo, as políticas públicas na Venezuela tendem a favorecer o consumidor em detrimento do produtor, inclusive às custas do produtor, e quando uma política pública é concebida apenas com o consumidor em mente, ela acaba afetando o próprio consumidor em níveis insuspeitos. Se você não cria incentivos para que haja produção e o que você faz é aumentar impostos e controlar preços, obviamente a produção vai diminuir.
TC-P: E você acha que este ano o governo realmente se preocupou com o consumidor?
MG: Percebe-se que o Estado, aqueles que governam o país, é profunda e enormemente insensível ao sofrimento do povo. Sem dúvida, existe um conjunto de medidas econômicas e de política pública que poderiam ser pensadas para favorecer a melhoria das condições de vida das pessoas, mas essas decisões não são tomadas. Por que a questão do uso do dólar não se tornou transparente de forma clara, uma vez que ele está instalado na economia? Sente-se que existe um tema de enorme insensibilidade ao sofrimento das pessoas.
Este artigo foi originalmente publicado em espanhol em TalCual e traduzido pelo democraciaAbierta. Leia o original aqui.
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