
As amargas lições do assassinato de Olof Palme
Existe uma mórbida ligação entre o ódio dos dias do primeiro-ministro da Suécia e a atual propaganda viciosa e notícias falsas multiplicadas por milhões na internet.

Não demorou muitas horas após o assassinato do primeiro-ministro para que um tsunami de mensagens começasse a fluir de nossas embaixadas para o Ministério de Relações Exteriores de Estocolmo. Ninguém assumiu a responsabilidade pela morte de Olof Palme, mas muitos tinham informações "extremamente secretas" de "extrema importância" para compartilhar conosco.
Eu era vice-ministro das Relações Exteriores na época e logo tínhamos uma longa lista de alegações ultrajantes, puras fantasias, possíveis informações lançadas para desviar a atenção e teorias nacionais e internacionais de conspiração críveis/menos críveis. Mas havia também “itens” que precisavam de atenção urgente. Depois de completar nossa própria análise, entregamos um memorando ao chefe da unidade especial de investigação, Hans Holmér, chefe de polícia do condado de Estocolmo.
Devido à busca obstinada de um grupo militante curdo chamado PKK, Holmér ignorou nossa lista. Com isso, toda a investigação desmoronou, e só se recuperaria 30 anos depois.
Ativos locais
Parte do material tinha ligações com Washington envolvendo um certo Michael Townley, um agente americano da polícia secreta do Chile durante o regime de Augusto Pinochet. Em 1978, Townley se declarou culpado pelos assassinatos, em 1976, de Orlando Letelier, embaixador do Presidente Salvador Allende nos Estados Unidos, e seu associado americano Ronni Karpen Moffitt. Townley confessou que havia contratado cinco exilados cubanos anti-castristas para prender o carro de Letelier. Townley costumava usar esses "ativos locais" para realizar seu trabalho sujo.
Townley foi condenado a dez anos de prisão. Ele vive sob o Programa Federal de Proteção a Testemunhas dos Estados Unidos desde que foi libertado da prisão em 1983.
Com base nesse material, decidimos abordar o FBI. Nosso vice-chefe de missão em Washington, o ministro Ulf Hjertonsson, estabeleceu contato com o funcionário designado, Robert Scherrer.
O agente confirmou que Townley de fato havia se preparado para matar Palme, em uma reunião da Socialist International em Madri em 1976, mas teve que abandonar o projeto por causa da forte segurança espanhola.
Scherrer também se ofereceu para vir a Estocolmo para fornecer mais informações.
Não deu em nada. Holmér disse que não precisava do FBI: "eles só querem crédito para resolver o caso".
Recebendo a resposta negativa, Scherrer ofereceu um conselho elementar para seus colegas de Estocolmo:
"Volte para a cena do crime".
Provas razoáveis
Foi também o que o novo grupo Palme, criado em 2017 e liderado pelo promotor Krister Petersson, fez.
Mas primeiro eles olharam profundamente para o grande volume de documentos reunido durante mais de 30 anos por seus predecessores. Posso testemunhar pessoalmente a seriedade e o profissionalismo da nova equipe. Encontrei-me com eles mais de uma vez e por várias horas. Eles também estavam abertos a receber material adicional que eu considerava importante, incluindo mais informações sobre o Chile e a África do Sul. A forma como fizeram as perguntas e responderam às minhas me levou a concluir que a nomeação do suposto assassino, Stig Engström, sobre "provas razoáveis", devia ser levada muito a sério.

O promotor, entretanto, não descartou a possibilidade de que Engström tivesse agido como parte de uma conspiração maior, como o The New York Times observou em 10 de junho. "Era de direita e nada simpatizante de Palme" era uma descrição comum do suspeito. Tendo trabalhado de perto com Olof Palme por duas décadas posso testemunhar o ódio extremo que ele e sua família tiveram que suportar.
Uma característica comum dessa campanha era um alvo coberto com uma foto de Olof Palme. Os buracos causados pelos dardos quase sempre se concentravam nos olhos da Palme. Em vários círculos da direita, sua morte foi recebida com alegria.
Um amigo de Palme, Harry Schein, notou alguns dias após o assassinato que muitos agora choravam lágrimas de crocodilo. "Mas para onde foram todas as imagens de ódio de Olof Palme, com a expressão diabólica, os rostos feios contorcidos, o nariz grotescamente realçado?" Alguns dos políticos atuais desse tipo dizem que isso foi apenas um excesso de juventude.
Schein observou que, mesmo que o assassino fosse um louco solitário, o assassinato de um primeiro-ministro é sempre um assassinato político. Nesse sentido, não devemos tratar a tragédia daquela noite de inverno de 34 anos atrás como um caso arquivado.
Não é difícil ver a ligação mórbida entre os efeitos do ódio extremo nos dias de Palme e a atual propaganda viciosa e notícias falsas multiplicadas por milhões na internet. Anders Breivik, o extremista norueguês de direita, que buscou inspiração na internet e executou 77 jovens social-democratas em um acampamento de verão na ilha de Utöya em 2011, é apenas um dos muitos resultados trágicos de deixar a mentira, o preconceito e o incitamento ao assassinato em massa penetrarem a mídia social. O racismo também é um vírus mortal.
Segurança comum
Olof Palme tinha muitos inimigos. Mas ele tinha muitos, muitos mais amigos e apoiadores e foi um dos líderes partidários e primeiros-ministros mais populares que a Suécia teve.
Para a esmagadora maioria, na Suécia e no mundo, seu nome está associado a um político ocidental que deu voz aos oprimidos. Não tinha medo de criticar tanto as superpotências quanto suas guerras ilegais no Afeganistão e Vietnã. Ele e seu partido deram não apenas palavras, mas também apoio concreto aos democratas da Europa Oriental governada pelos comunistas e aos anti-fascistas em Portugal e Espanha. Defendeu o direito de Israel de existir e viu os palestinos como um povo, e condenou o apartheid e os Pinochets deste mundo.
Juntamente com Willy Brandt, o líder social-democrata alemão, apresentou uma alternativa à corrida armamentista nuclear e ao confronto entre Oriente e Ocidente durante a Guerra Fria, e a chamaram de segurança comum: "você deve buscar a paz sustentável sentando-se com seu inimigo para encontrar formas de sobrevivência comum em vez de ameaças de destruição mútua assegurada". Um conceito que foi retomado por Michail Gorbachev e Ronald Reagan em Genebra em 1985, quando os dois declararam que uma guerra nuclear não pode ser vencida e nunca deve ser combatida.
Para a esmagadora maioria, na Suécia e no mundo, seu nome está associado a um político ocidental que deu voz aos oprimidos
Depois de suas primeiras viagens e estudos nos EUA, Palme virou um verdadeiro um pró-americano. Frequentemente citava em seus discursos o longo poema de Carl Sandburg, The People, Yes (1936). Hoje, tenho certeza que ele não se absteria de citar seguinte verso do mesmo poema:
"O presidente é como um rei, quatro anos assinando projetos de lei
na Casa Branca e conhecendo pessoas. Ele pode fazer
o que ele quiser, a menos que ele seja detido".
O último discurso de Palme nas Nações Unidas, em 1985, foi um apelo à adoção de uma resolução vinculativa para banir as armas nucleares.
O princípio básico de sua política era contribuir para "tornar a vida o mais decente possível para as pessoas", como ele disse a David Frost em uma entrevista à BBC em 1969.
Nestes dias de xenofobia crescente e fechamento de fronteiras, seu discurso no dia de Natal de 1965 vale a pena ser lido, tanto no parlamento sueco como em outros parlamentos europeus. Palme declarou que ver imigrantes e refugiados como seres humanos individuais era crucial para sua integração bem sucedida na sociedade.
"Nossa louvável solidariedade com os pobres e oprimidos deste mundo deve ser acompanhada pelo internacionalismo na vida cotidiana. É assim que podemos provar que nossos ideais são uma realidade viva".
Essa era a segurança comum em nossa vida cotidiana.
Palme foi uma pessoa excepcional, confortável no papel de cérebro por trás de uma série de reformas que tornaram a Suécia mais justa e mais consciente dos direitos das mulheres, dos trabalhadores e das crianças. Ele agiu também como cidadão, não como primeiro-ministro, quando devolveu uma carta burocrática do município de Estocolmo a respeito das regras para as pré-escolas recém-introduzidas (que ele mesmo havia promovido) com a nota: "Tendo lido, mas não compreendido".
Portanto, hoje, quando recordamos sua morte, é importante que não esqueçamos sua vida, o que ele defendeu e conseguiu. Ao receber o prêmio anual Olof Palme em Estocolmo em janeiro passado, John Le Carré compartilhou o fato de que em meio à Guerra Fria, quando as armas nucleares e a propaganda crescente ameaçavam a paz mundial, "até nós, nos círculos de espionagem ocidentais, sentimos que faltava uma voz. Essa voz era a de Olof Palme".
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