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As nações das Américas precisam garantir o acesso universal às vacinas contra a Covid-19

Os governos das Américas precisam implementar as lições aprendidas com pandemias passadas e tomar medidas para evitar erros do passado.

Madeleine Penman
12 Dezembro 2020, 12.01
Frank Hoermann/SVEN SIMON/DPA/PA Images

Em promessa que ficaria famosa, o inventor da vacina contra a pólio, Jonas Salk, jurou que nunca limitaria o acesso às suas descobertas. “Não há patente”, ele disse. “Por acaso podemos patentear o sol?”

No momento em que o mundo se esforça para ter acesso a novas vacinas, tratamentos e testes de Covid-19, as perguntas que Salk colocou são tão relevantes quanto nunca. Pode a ciência ser usada de maneira que prioriza a saúde de alguns em detrimento à de outros? Pode o lucro ter precedência sobre a confiança mútua e a solidariedade?

Em regiões que foram especialmente atingidas pela pandemia, como as Américas, é vital que todos possam beneficiar-se dos avanços científicos que empresas farmacêuticas vêm fazendo. Hoje, quando comemoramos o Dia Internacional da Cobertura Universal de Saúde, os governos da região precisam implementar as lições aprendidas com pandemias passadas e tomar medidas para evitar erros do passado.

Com 1 bilhão de habitantes, as Américas têm um dos maiores números de casos de Covid-19 no mundo. É uma terra de contrastes brutais, com alguns dos bilionários mais ricos do planeta e milhões de pessoas que lutam diariamente para colocar comida na mesa.

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De acordo com a Organização Panamericana de Saúde, durante a pandemia de H1N1 de 2009, a chamada “gripe suína”, os países mais ricos da região adquiriram a vacina primeiro, obrigando os outros a disputar doses depois. A história atual está se configurando de modo muito semelhante. Países mais ricos como os EUA e o Canadá estão se posicionando na dianteira da fila e fazendo encomendas antecipadas de doses de vacinas junto às empresas farmacêuticas. Os países que possuem capacidade manufatureira doméstica e populações maiores, como é o caso da Argentina, do México e do Brail, também têm vantagens em relação às oportunidades de fazer pedidos antecipados de doses de vacina e preparar-se para a distribuição das mesmas. Com isso, os países menores, também criticamente atingidos pela Covid-19, veem reduzidas as possibilidades de acesso à vacina para suas populações.

Com 1 bilhão de habitantes, as Américas têm um dos maiores números de casos de Covid-19 no mundo

Muito poucos dos contratos que os governos assinam com empresas estão sendo publicados, apesar de as leis vigentes em muitos países das Américas preverem que os detalhes de aquisições públicas sejam levados a público. Em agosto os presidentes do México e da Argentina anunciaram a assinatura de um acordo com a gigante farmacêutica AstraZeneca para a produção conjunta de entre 150 milhões e 250 milhões de doses de uma vacina contra a Covid-19 a ser distribuída para países de toda a região. Quatro meses depois de esse negócio ser fechado, e com as vacinas quase na porta de hospitais e clínicas de toda a região, muito pouca informação foi divulgada sobre esse acordo e menos ainda sobre o plano de distribuição por trás dele. Ainda não sabemos, por exemplo, quantas doses de vacina foram compradas pelo México e a Argentina, a que preço e dentro de qual cronograma.

O México assinou acordos com várias empresas farmacêuticas para adquirir doses suficientes para vacinar toda sua população. Nenhum desses contratos foi levado a público, de modo que as informações sobre o preço pago por dose, o custo de desenvolvimento das vacinas e a tecnologia utilizada na produção continuam ocultas. A transparência é fundamental e essencial para que a vacina possa ser produzida a um custo baixo no México e no restante da região.

A instituto de saúde brasileiro Fiocruz deu um exemplo animador quando, em outubro, divulgou os termos de seu acordo com a AstraZeneca. Embora mais detalhes sobre propriedade intelectual e preços pudessem ter sido incluídos na versão pública do acordo, a divulgação já constituiu um importante primeiro passo na direção certa.

Em maio, Costa Rica e a OMS lançaram a C-TAP (união de acesso à tecnologia para a COVID-19) como plataforma de partilha voluntária para reunir todos os dados, o know-how, materiais biológicos e propriedade intelectual e então licenciar a produção e a transferência de tecnologia para outros potenciais produtores. Mecanismos como esses são vitais em uma região como as Américas, especialmente pelo fato de a capacidade manufatureira de muitos países ser extremamente limitada. A C-TAP de certa maneira encarna o espírito da célebre frase de Jonas Salk, assegurando que o conhecimento gerado pela ciência esteja disponível para todos e possa ser utilizado igualmente por grandes países manufatureiros e por produtores menores.

As Américas sofrem com a desigualdade não apenas de renda, mas também no acesso à saúde

Enquanto vários países das Américas têm sido fundamentais no apoio ao mecanismo C-TAP, diversos países ainda guardam silêncio, entre eles os EUA, Canadá, Colômbia, Venezuela, Cuba e Nicarágua. Fato mais importante ainda, nenhum país exigiu que as empresas aderissem ao mecanismo C-TAP como pré-condição para a assinatura de acordos de compra de doses de vacina. Em muitos casos os países estão se pautando pelas regras do comércio internacional e sua legislação nacional, que frequentemente exigem licenciamento exclusivo, ou regras de patenteamento, para preservar os segredos comerciais e o conhecimento científico das empresas.

Essas regras comerciais não precisam constituir uma camisa de força que conserva essa informação envolta em sigilo, inibindo a disponibilidade de vacinas, tratamentos e testes de baixo custo. O Conselho Geral da Organização Mundial de Saúde vai se reunir em 17 de dezembro para decidir sobre uma proposta apresentada em outubro pelos governos da Índia e África do Sul que permitiria que os países nem concedam nem apliquem patentes e outros direitos específicos de propriedade intelectual (como patentes e licenciamento) relacionados a produtos ligados à Covid-19, enquanto não for alcançada a imunidade de massa global. Alguns países das Américas, como o Brasil, Canadá e EUA, já se manifestaram abertamente contra essa proposta. Outros atores importantes como o México ainda estão em cima do muro.

As Américas sofrem com a desigualdade não apenas de renda, mas também no acesso à saúde. Povos indígenas, comunidades não brancas, migrantes e comunidades de refugiados, pessoas que vivem em assentamentos clandestinos, mulheres, todos estão entre os grupos cujo acesso à saúde é prejudicado por condições sociais preexistentes que os afetam de modo desproporcional. Se os países da região não derem um exemplo, cooperando e adquirindo conhecimento científico para o benefício de todos, essas populações marginalizadas, especialmente nos países mais pobres, vão continuar a arcar com o ônus maior desta pandemia penosa, que levou à adoção dos lockdowns mais longos do mundo neste hemisfério.

As nações das Américas precisam trabalhar em conjunto para garantir que ninguém seja deixado para trás no fornecimento de vacinas, tratamentos e testes de Covid-19 para todos. É hora de chamar as empresas para se engajarem com o mecanismo C-TAP e prometerem apoio à proposta de isentar produtos médicos das regras comerciais da OMC. A única maneira de deixarmos a Covid-19 para trás é assegurar que estamos todos juntos nesta empreitada, e isso significa garantir acesso justo a vacinas para todos.

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