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Apenas outro dia nas favelas do Rio

“A violência te torna uma pessoa agressiva, te deixa psicologicamente ruim (…) Eu não tenho mais medo de morrer. Eu tenho medo de deixar de lutar”. Español English           

Andrew Purcell
20 Novembro 2017
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Buracos de bala podem ser vistos na frente de várias casas no Complexo do Alemão no Rio de Janeiro, Brasil, em 16 de julho de 2016. Foto: Peter Bauza / DPA / PA Images. Todos os direitos reservados.

Na sua página no Facebook, Coletivo Papo Reto mantém um registro dos tiroteios que acontecem no Complexo do Alemão, um conglomerado de dezesseis favelas no norte do Rio de Janeiro. Cada vez que se reportam tiros, o calendário correspondente a esse dia é marcado com um X. Até o dia 4 de outubro, a atualização mais recente, o calendário mostra que houve tiroteios em 202 dos 277 dias do ano, quase todos entre a polícia militar e o Comando Vermelho, a facção narcotraficante que controla a área.

Abril foi um mês particularmente sangrento. Uma operação policial para instalar uma torre de observação na favela de Nova Brasília foi recebida com resistência violenta e, em cinco dias consecutivos de tiroteio, quatro pessoas morreram: Gustavo Silva, de dezessete anos, foi morto a caminho de uma padaria, o soldado Bruno de Souza morreu em sua própria casa após ser atingido por uma bala perdida e Paulo Henriques, de 13 anos, morreu a caminho da casa de um amigo onde ia jogar videogame. 

Em 26 de abril, o cinegrafista do Coletivo Papo Reto, Carlos Coutinho, estava voltando para casa do trabalho quando viu uma manifestação improvisada na esquina da Avenida Itaóca e Estrada do Itararé. Paulo Henriques acabava de ser enterrado, e dezenas de pessoas fecharam as ruas e aguardaram o retorno dos amigos e familiares, que eram observados com suspeita pela polícia. Coutinho pegou o telefone, abriu o Facebook Live e começou a filmar. 

A principio a atmosfera é tensa, mas pacífica. Uma mulher jovem de legging e top esportivo bate e atira cartazes nos oficiais que patrulham a cena. A polícia joga uma bomba de fumaça, a multidão se dispersa aos sons dos tiros pap-pap-pap-pap, mas mesmo nessas circunstancias, a cena é surrealmente cotidiana. As pessoas passam correndo com a cabeça baixa, a música ressoa nas lojas, os policiais se cobrem atrás de uma folha de metal e uma mulher diz à câmera: "Isso é uma palhaçada. Não tem nada". Apenas outro dia no Alemão.

No próximo clipe, Coutinho está usando capacete de repórter de guerra, um colete à prova de balas e um crachá que o identifica como membro da imprensa. Ele explica que seu telefone ficou sem bateria, então teve que ir para casa para pegar o carregador. Nas próximas duas horas, ele transmite ao vivo.

Ele filma uma garota cobrindo o rosto para não respirar o gás lacrimogêneo, uma mãe chorando porque sua filha está em casa sozinha onde o tiroteio é mais intenso, cartuchos de rifles e pistolas espalhadas no chão. Mais tarde, Coutinho filma também um jovem sendo levado ao centro de saúde da comunidade com grave sangramento devido a ferimentos no peito e no pescoço. À medida que o grupo se aproxima da clínica, a polícia joga uma bomba de fumaça e dispara balas de borracha. O vídeo foi visualizado mais de 63.000 vezes. 

Felipe Farias, 16, não sobreviveu aos ferimentos. "A policia sempre disse que o tiro não parte da arma do policial", Coutinho me disse. "Eu não sei se chegaram a dizer que ele era traficante, porque ele tinha acabado de chegar da escola. Ele chegou da escola, foi em casa, trocou de roupa e saiu para a rua". Nenhuma arma ou bala foi encontrada no beco onde ele caiu ferido. 

Coletivo Papo Reto (CPR) foi fundado em 2013, inicialmente para ajudar os residentes a se recuperar após uma temporada de deslizamentos muito destrutivos no Alemão. Esse espírito comunitário ainda é evidente em sua página do Facebook, que promove uma visão positiva da favela, promovendo festas infantis e recitais de poesia nas lajes, embora o principal objetivo do grupo seja documentar a brutalidade policial. 

“Como esse é um lugar de pessoas humildes, pretos e pobres, historicamente a imprensa só falou desse lugar a partir da violência… A forma como os nossos governantes dialogam conosco, se da nos observando a partir da mira do fuzil de um policial. É assim que nós somos vistos o tempo todo”. 

O nome Papo Reto é inspirado pelo trabalho exercido pelo coletivo, documentando as representações distorcidas da chamada "guerra contra as drogas" na principal mídia brasileira. "Nós decidimos que precisávamos filmar, precisávamos relatar o que estava acontecendo e nossos celulares eram nossa arma", disse Renata Trajano, outra fundadora do coletivo.

Santiago e Trajano dirigiram-se ao pessoal da sede da WITNESS em Nova York, uma ONG internacional que ensina ativistas a usar o video para defender os direitos humanos. Víctor Ribeiro, coordenador do programa desta organização no Brasil, com sede no Rio, está lá para ajudar a manter a segurança dos membros do CPR, melhorar a qualidade dos vídeos que eles atiraram e depois usá-los para chamar a atenção para abusos policiais e , às vezes, para processá-los. 

Santiago e Trajano se dirigem aos funcionários na sede de WITNESS em Nova Iorque, uma ONG internacional que ensinou os ativistas como usar vídeo para defender os direitos humanos. Víctor Ribeiro, coordenador do programa dessa organização no Brasil, com sede no Rio, ajuda a manter a segurança dos membros do CPR, a melhorar a qualidade dos vídeos que eles filmam para que os vídeos depois possam ser usados para chamar a atenção para os abusos policiais e, às vezes, até processá-los.

A colaboração deu seus primeiros frutos em abril de 2015, depois que um policial atirou à queima roupa em Eduardo de Jesús Ferreira, de 10 anos, enquanto ele pegava seu celular. Coutinho chegou em uma hora e filmou com um olhar de documentarista: o corpo de um jovem negro esticado no concreto, um pai em silêncio, atônito, uma mãe histérica e os cartuchos espalhados ao redor. Seu vídeo foi divulgado pela imprensa internacional, e o assassinato de Eduardo tornou-se uma causa célebre, emblemática da violência policial descontrolada no Brasil.

Coutinho e Santiago viveram toda a sua vida no Alemão. Na experiência dos dois, esta foi a primeira cena de crime cometida na comunidade que foi obrigatoriamente isolada com a fita e que recebeu um especialista forense para coletar provas. Normalmente, os corpos são deixados nas ruas para as famílias recolherem ou para a polícia arrastar para longe no fim do dia. Aí então a polícia conta esses corpos como mais um que morreu por "resistir à prisão" ou como vítima de uma "bala perdida". 

“A morte do pobre, ela é classificada como ‘bala perdida,‘ como se um disparo de fuzil tivesse circulando e acertado alguém… Como pode ser ‘bala perdida’ os disparos de fuzis que só acontecem no território da pobreza? As pessoas pobres não têm valores na nosso país“. 

Como eles não delatam os assassinatos e os abusos cometidos por traficantes de drogas, os críticos de direita geralmente descrevem o CPR como partidários que defendem criminosos. “O trafico não é o principal problema" disse Santiago ."Um fuzil AK-47 chega na favela através da corrupção da própria policia. É um ciclo de extermínio dos pobres”. 

Trajano disse que os membros do CPR são regularmente ameaçados por policiais. Durante a campanha da Praça do Samba, Santiago teve que sair às escondidas do Alemão por alguns dias por causa das ameaças de morte. Coutinho me disse que um oficial sênior da polícia atirou deliberadamente duas vezes nas suas pernas com balas de borracha.

Em novembro de 2010, o exército brasileiro invadiu o Alemão, supostamente para recuperá-lo das facções do narcotráfico. Foram instaladas Unidades de Polícia Pacificadora, ou UPP. Nos anos que antecederam à Copa do Mundo de 2014, quando a economia cresceu e a taxa de homicídio diminuiu, parecia que a cidade tinha encontrado uma solução duradoura para seu problema crônico de crimes violentos. 

Em retrospectiva, esse otimismo parece ter sido uma ilusão. Quando entrevistei o professor Ricardo Henriques, o arquiteto da UPP Social, em 2012, ele me assegurou que a polícia assumiria o controle da favela e que, em pouco tempo, o estado forneceria serviços – água potável, esgoto, coleta de lixo, educação e saúde – em áreas da cidade que tinham sido abandonadas por muito tempo. 

Embora algumas melhorias estéticas tenham sido feitas, esses serviços nunca chegaram e, enquanto a violência aumenta em toda a cidade – mais de 5.000 pessoas foram assassinadas no Rio no ano passado, 20% a mais do que em 2015 – está mais claro do que nunca que aumentar o número de policias nas comunidades nunca foi a solução. Coutinho explicou esse sentimento de maneira simples: "Antigamente tinha só um grupo armado no Alemão: os traficantes de drogas. Agora têm dois grupos armados no Alemão: a polícia e os traficantes, que se confrontam sempre”.

Em agosto, as forças armadas apoiaram uma operação da polícia militar que durou uma semana no Jacarezinho, uma favela na zona norte, que terminou com pelo menos sete mortos e vários outros feridos. Entre os mortos, estava o policial Bruno Guimarães Buhler, um entre mais de uma centena de policiais mortos no Rio este ano. Em uma mensagem dirigida ao Comando Vermelho, mas ouvida por toda a comunidade, o comandante Marcus Vinicius Amim Fernandes deixou claro o objetivo da missão: “Nós vamos incansavelmente caçar vocês. Essa palavra, não tenho medo de usar. Não tenho medo de direitos humanos”. 

Quando os policiais entram na favela à força, geralmente trazem um "mandato de busca coletiva" que lhes dá o suposto direito de derrubar a porta que quiserem. Durante a operação para assumir o controle da Praça do Samba no Alemão, a polícia foi mais longe, ocupando casas, bloqueando portas e janelas com móveis e instalando postos de atiradores. 

Com a ajuda da WITNESS, o CPR entrevistou pessoas cujas casas estavam ocupadas, como por exemplo um homem idoso em uma cadeira de rodas e uma avó que vive com catorze parentes mais novos. O vídeo, que mostra casas saqueadas que haviam sido convertidas em bases militares improvisadas, foi apresentado ao Ministério Público do Rio, e em uma rara exceção na cultura da impunidade policial, dois comandantes de alto escalão foram acusados de ordenar ilegalmente as ocupações. 

"O Coletivo Papo Reto teve um grande impacto", disse Theresa Williamson, do grupo de pressão Rio On Watch, descrevendo o coletivo como a vanguarda de um movimento de jornalismo cidadão que desafia a propriedade corporativa da narrativa da mídia. "Nas favelas do Rio, existem fotógrafos comunitários, jornalistas e produtores de vídeo que documentam o que está acontecendo". 

Santiago contribui regularmente para a rede Globo, e Thainã Medeiros, membro do CPR, publicou artigos na BBC, no New York Times e no Americas Quarterly. "Elas são pessoas da favela. Há dez anos, ninguém na situação deles teria credibilidade", disse Williamson. "Mas agora, por causa das redes sociais, por causa de seu trabalho ... o público os vê como os especialistas que são, e agora eles podem sentar à mesa como iguais, em uma sociedade tão cronicamente desigual".

No evento da WITNESS, Santiago colocou o logo do BOPE, a unidade das forças especiais da polícia militar do Rio, no telão, e eu o vi com novos olhos: um crânio sorridente com uma faca enfiada no queixo, na frente de duas pistolas cruzadas. Um veículo blindado que carrega essa bandeira traz guerra, não segurança.

Em 23 de outubro, a polícia militar da Rocinha disparou em uma turista espanhola, María Esperanza Ruiz Jiménez, quando o veículo em que viajava não parou em uma blitz da PM, chamando atenção internacional para os perigos enfrentados por pessoas que vivem nas favelas supostamente "pacificadas" do Rio. "A violência é muito dolorida. Eu penso em desistir, porque a violência te torna uma pessoa agressiva, te deixa psicologicamente ruim", disse Trajano. "Mas tornou-se uma parte tão importante da minha rotina que perdi o medo. Eu não tenho mais medo de morrer. Eu tenho medo de deixar de lutar".

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