
Um aplicativo está ajudando mães na favelas do Brasil a sobreviver na pandemia
Uma frente de ativistas já distribuiu R$ 145 milhões em cestas básicas e renda extra para mais de 1,1 milhão de mulheres chefes de família em 5.000 favelas.

Enquanto o Brasil enfrenta um dos piores surtos de Covid-19 no mundo, um aplicativo de celular está ajudando moradores de favelas a sobreviver à ameaça do vírus em meio ao desemprego em massa.
Até agora, o país latino-americano registrou mais de 115 mil mortes causadas pelo coronavírus. A paralisação da atividade econômica fez 7,8 milhões de postos de trabalho desaparecerem, afetando principalmente trabalhadores informais e de baixa qualificação que formam a base da população das favelas. O auxílio emergencial distribuído pelo governo corresponde a 60% do salário mínimo, então muitas famílias estão com dificuldade para pagar as contas.
Muitos brasileiros culpam o presidente Jair Bolsonaro pela tragédia. Bolsonaro é um populista de extrema-direita que tem repetidamente defendido políticas sem comprovação científica na gestão da pandemia e se posicionado pelo fim das medidas de distanciamento social. Uma reabertura precoce da economia pode aumentar o risco de contágio e causar mais mortes.
Em uma tentativa de parar a catástrofe humanitária em andamento, uma frente de ativistas de favelas, com a ajuda de empresas parceiras, desenvolveu um aplicativo que está facilitando a distribuição de alimento e renda emergencial para milhares de famílias. O aplicativo possui uma ferramenta de reconhecimento facial que ajuda os voluntários a identificar e registrar beneficiários, e também previne fraudes no processo.
Help us uncover the truth about Covid-19
The Covid-19 public inquiry is a historic chance to find out what really happened.
Até agora, o projeto Mães de Favela distribuiu o equivalente a R$ 145 milhões em cestas básicas e renda extra para mais de 1,1 milhão de mulheres chefes de família em 5.000 favelas em todas as unidades da federação.


“As mulheres são o cerne da vida nas favelas”, diz Claudia Raphael de Oliveira, presidente nacional da Central Única das Favelas (CUFA), organização à frente do projeto Mães de Favela. “Muitas mulheres têm que sustentar não só a si próprias, mas também alimentar seus filhos e outros parentes, então quando a renda delas cai a família inteira é afetada.”
Oliveira diz que empresas e grupos da sociedade civil foram rápidos em procurar a CUFA para oferecer doações. Ela explica que as doações cumprem um papel duplo: além de promoverem alívio temporário para famílias necessitadas, também ajudam a achatar a curva de contágio ao garantir que mais pessoas tenham os recursos para ficar em casa durante a pandemia.

“A ajuda chegou na hora certa, às vezes minhas filhas estão com fome e eu não tenho nenhum alimento para dar para elas”, diz Luma, moradora da favela Parque Esperança no Rio de Janeiro, de acordo com um vídeo postado nas redes sociais da CUFA. Ela tem cinco filhos e seu marido está desempregado. “Fico feliz que as pessoas finalmente estejam olhando para a favela. Moro aqui faz três anos e esta é a primeira vez que vejo uma iniciativa tão bonita.”
Cumprir as orientações de distanciamento social é um desafio nas favelas. Esses bairros pobres se expandiram rapidamente nas periferias urbanas durante o século 20, abrigando famílias de trabalhadores expulsas de áreas centrais e pessoas de outras partes do país que migraram para a cidade grande.
Após décadas de descaso das autoridades, milhões de moradores de favelas seguem vivendo em espaços apertados, frequentemente em barracões improvisados com pouco ou nenhum acesso à água, ao saneamento básico e à saúde pública. Esses cidadãos são desproporcionalmente vulneráveis a surtos de doenças contagiosas como a Covid-19.

“Esta pandemia está revelando o que tem sido a realidade nas favelas por muitos anos”, diz Marcivan Barreto, presidente da CUFA no Estado de São Paulo. Desde o início da pandemia, ele vem trabalhando sete dias por semana para coordenar as doações do projeto Mães de Favela na região. “As favelas enfrentam muitos desafios, mas elas estão cheias de pessoas que querem fazer o bem”, ele diz. “Há um senso enorme de união e solidariedade.”
Barreto é morador de Heliópolis, a maior favela em São Paulo com mais de 200 mil habitantes. É uma das áreas mais atingidas pelo vírus na cidade, com mais de 100 mortes registradas até agora apesar dos esforços dos moradores para controlar o surto. “Infelizmente, algumas pessoas só se dão conta da gravidade desta crise depois que perdem um ente querido”, ele lamenta.
A distribuição de doações é frequentemente interrompida pela polícia. Barreto diz que agentes de segurança regularmente param e às vezes até confiscam os veículos da CUFA. Em maio, voluntários da favela Cidade de Deus, no Rio, tiveram que parar uma entrega de cestas básicas devido a tiroteio durante operação policial que terminou com um jovem morto. “A repressão piorou na pandemia porque os policiais estão usando a violência para impor as medidas de confinamento, mas a verdade é que as forças de segurança vêm interrompendo a vida das pessoas nas favelas há muito tempo”, diz Barreto.

De acordo com Danielle Klintowitz, arquiteta urbanista e coordenadora do centro de pesquisa Instituto Pólis, “idade avançada e condições de saúde não são os únicos fatores colocando as pessoas sob risco de morrer de Covid-19; fatores sociais e econômicos também cumprem um papel”. Ela diz que o vírus está afetando desproporcionalmente negros e moradores de favelas, refletindo desigualdades crônicas no país.
Os primeiros casos de Covid-19 no Brasil foram registrados no final de fevereiro entre membros da elite branca que voltavam de viagens de férias na Europa e nos Estados Unidos. Quando as autoridades implementaram medidas de distanciamento social em meados de março, os surtos de coronavírus ainda não haviam chegado às áreas pobres, mas medidas desequilibradas de confinamento aos poucos mudaram este cenário.
Klintowitz explica que “brasileiros ricos e de classe média só conseguem ficar em casa na pandemia porque trabalhadores de classes mais baixas são rotineiramente expostos ao coronavírus em serviços essenciais”. Essas atividades incluem serviços como entrega de comida, coleta de lixo e atendimento de saúde. Assim, trabalhadores essenciais têm se contaminado, carregando o vírus até seus bairros – favelas agora registram alguns dos piores surtos de Covid-19 no país.
Iniciativas de mobilização comunitária como o projeto Mães de Favela podem fazer uma grande diferença. Paraisópolis, favela com mais de 100 mil habitantes em São Paulo, implementou uma estratégia complexa de controle do vírus que se provou um sucesso.

Além de entregar doações, voluntários treinados estão monitorando moradores com sintomas da doença de casa em casa em Paraisópolis – aqueles que não têm condições de praticar o distanciamento social adequadamente em casa são transferidos para centros de isolamento montados em escolas inoperantes na região. Eles também contrataram profissionais de saúde e alugaram ambulâncias para compensar a ausência de serviços públicos na região.
Como resultado, a taxa de contágio pelo coronavírus em Paraisópolis é quase três vezes mais baixa que a média da cidade de São Paulo, segundo estudo recente do Instituto Pólis. “Paraisópolis alcançou resultados excepcionais na luta contra a Covid-19 graças à mobilização comunitária e a redes de solidariedade de longa data”, diz Klintowitz. “Infelizmente, essa não é a realidade na maioria das favelas, mas em todo o país podemos ver as pessoas tomando iniciativas para salvar vidas na pandemia.”

Com a piora da situação econômica no país devido à crise do coronavírus, ativistas nas favelas estão vendo as doações de empresas e indivíduos minguarem. Barreto, da CUFA-São Paulo, diz esperar que o governo e a sociedade civil prestem mais atenção às demandas das favelas. “Precisamos de apoio para continuar distribuindo ajuda durante a pandemia e mesmo depois que a ameaça do vírus tiver passado”, ele diz. “O sofrimento das pessoas nas favelas vai continuar; muita gente vai ter que reconstruir suas vidas do zero.”
Gabriela Onofre, diretora de marketing da startup de tecnologia Acesso Digital, diz que as empresas têm muito a ganhar ao ajudar aqueles que precisam – a empresa dela desenvolveu o software de reconhecimento facial usado no aplicativo do projeto Mães de Favela. “Saber que o nosso serviço está ajudando a melhorar a vida de milhares de pessoas em tempos tão críticos imprimiu uma nova dinâmica à nossa equipe e nos deu novas ideias de inovação”, ela diz. “Espero que esse sentimento de solidariedade continue daqui pra frente.”
Leia mais!
Receba o nosso e-mail semanal
Comentários
Aceitamos comentários, por favor consulte ás orientações para comentários de openDemocracy