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As cinco pobrezas da iniquidade

Apesar dos milhares de milhões gastos em combater a pobreza, não diminui o número de pobres no mundo. E a América Latina continua a ser a região mais desigual do mundo. English Español

Carlos March
21 Março 2017
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Pobreza em Medellín, Colômbia. Luis Pérez/Wikimedia Commons. Some rights reserved.

A iniquidade é a pior pobreza porque é a sua causa. Medir a pobreza e destinar um orçamento sem implementar políticas públicas contra a iniquidade equivale a fazer um torniquete por debaixo da ferida. De acordo com a OCDE, em 2013 investiram-se 134 mil milhões de dólares em ajuda oficial para combater a pobreza. Contudo, os pobres no mundo não diminuíram.

A pobreza dum individuo implica a carência daquilo que é preciso para viver. Pelo contrário, a iniquidade numa sociedade é a condição de carência estrutural que gera pobreza e que se deve a cinco causas:

  1. Inexistência de bens públicos de qualidade
  2. Ausência de institucionalidade pública
  3. Falta dum tecido social
  4. Incapacidade de organização colectiva
  5. Negação de acesso a oportunidades

Quando em contextos de iniquidade – a América Latina é a região mais inequitativa do mundo – os programas do governo limitam-se a implementar planos de assistência e não se estruturam políticas públicas para abordar os cincos êxitos descritos, então o resultado reduz-se a administrar a pobreza para perpetuá-la em vez de terminar com a iniquidade que gera. 

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O primeiro factor da iniquidade produz-se quando um sector da população convive com a inexistência de bens públicos de qualidade, porque uma sociedade que carece de aqueles bens e serviços que devem estar à disposição de todos em igual quantidade ou qualidade, nega a instrução social em escala. Um hospital é um bem público não porque o administre o Estado, mas sim porque a pessoa com mais recursos e a pessoas com mais necessidade duma comunidade recebem a mesma quantidade e qualidade de serviço, mais além de quem o administre. Se o sistema de saúde proporcionar uma atenção deficiente aos segmentos vulneráveis e derive a atenção de qualidade para o sistema privado do pré-pago, então somente os sectores mais afortunados poderão pagá-la, deixando a saúde de ser um bem público, uma vez que já não garante que toda a população usufrui dos mesmos estândares de qualidade de vida. Por tanto, a primeira política dum governo deve ser articular-se com a sociedade civil e o sector empresarial para produzir, administrar, distribuir e custodiar bens públicos de qualidade: o Estado proporciona escala, o sector empresarial qualidade e as organizações sociais especificidade.

A ausência de institucionalidade pública é outro aspecto determinante da iniquidade, uma vez que aqueles que mais sofrem essa carência são os sectores que vivem na pobreza, aqueles que não tem forma de impedir que os impactos da discricionariedade na administração dos fundos públicos, da concentração de poder, do abuso institucional, do assistencialismo (mistura de assistência com cinismo), do clientelismo, da corrupção estrutural e do delito organizacional deteriorem as suas condições de vida. Não há pobreza sem corrupção e discricionariedade zero. Para nos opormos à fraqueza institucional devem implementar-se as ferramentas da democracia participativa e formar cidadãos capazes de reclamar a plena vigência do estado de direito. Assim mesmo, o empresariado deve assumir um role activo de cidadão empresário.

Outra característica da iniquidade social é a inexistência dum tecido social. Os sectores pobres têm vínculos limitados num ambiente reduzido, relações numa posição socioeconomicamente isolada e com limitados ou nulos contactos com aqueles que facilitam o acesso à possibilidade de escalonamento social. A falta de vínculos de qualidade atenta contra a consolidação da mobilidade social ascendente, expõe as pessoas à falta de espaços de contenção e não as protege perante a intempérie do abuso de poder, tanto das instituições públicas como dos poderes fácticos.  O Estado deve gerar as condições para que os espaços públicos e os bens e serviços públicos sejam os âmbitos de construção de vínculos transversais no social e no económico, como outrora foi o sistema de educação pública na Argentina, que por exemplo forjou a classe média argentina.

A incapacidade que têm os sectores vulneráveis para se organizarem colectivamente é outra das causas que gera uma iniquidade que os submete à pobreza. Populações fragmentadas, vitimas do clientelismo político, incapazes de criar as condições de organização social para defender os seus direitos, controlar a discricionariedade dos governantes e incindir na qualidade de vida colectiva, estão condenadas a ser objecto de assistência de dirigentes que fracturam o tecido social. O Estado deve promover a formação cívica que proporcione à comunidade as capacidades para se organizarem colectivamente desde um role social de sujeitos de mudança, capazes de definir a própria qualidade de vida, incidir na qualidade de vida colectiva e limitar o poder discricional dos dirigentes. Além disso, o Estado tem que facilitar a formação das organizações sociais, modificando os actuais regimes legais, fiscais e laborai que mantêm 90% das entidades na informalidade, impedindo o acesso à personalidade jurídica e aos requisitos formais necessárias para receber doações.

O quinto aspecto da iniquidade refere-se à negação de acesso a oportunidades. As políticas públicas devem facilitar os meios para que os habitantes duma comunidade acedam de forma equitativa às capacidades que garantam estândares elevados de dignidade humana, garantindo os direitos humanos e uns serviços públicos de qualidade. Restabelecer a qualidade do sistema de educação pública estatal é imprescindível uma vez que a educação é a fonte primária de acesso equitativo a oportunidades.

A situação descrita requer que se luta contra a pobreza desarmando o sistema de iniquidade, isto é, gerando bens públicos de qualidade, estabelecendo uma institucionalidade democrática, promovendo a construção do tecido social, garantindo a capacidade de organização colectiva e garantindo o acesso a oportunidades.

Em 1965 a população mundial era de 3.330 milhões de habitantes. Hoje, ascende a 7.300 milhões com uma população que vive debaixo da linha de pobreza perto dos 4.000 milhões. Isto quer dizer que o número de pobres no mundo equivale ao aumento populacional dos últimos cinquenta anos, número que indica que pese aos milhões de dólares investidos em combater a pobreza, não se conseguiu aumentar o número de pessoas que disfruta de estândares de qualidade de vida. Portanto, só estaremos a combater a pobreza quando os governos a deixarem de encarar como um problema dos pobres, para passar a definir as políticas públicas desde a perspectiva da iniquidade, que requer abordá-la como um problema dos estados. 

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