Migrant Futures

Biovigilância, fronteiras invisíveis e os perigosos efeitos colaterais das medidas da era Covid-19

Muito após a pandemia, podemos continuar sendo afetados por seu resíduo de tecnologias ultra-sofisticadas de biovigilância.

Ayelet Shachar
17 Julho 2020, 12.01
A police surveillance drone flies in Kuala Lumpur on April 8, 2020
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Picture by Zahim Mohd/NurPhoto/PA Images. All rights reserved

Se eu pedir para você fechar os olhos e imaginar uma fronteira, que imagem vem à mente? A maioria de nós pensaria em cercas de arame farpado fincadas firmemente em locais fronteiriços. Desde o Grande Muro da China até o Muro de Berlim, as barreiras fortificadas servem como poderosos símbolos de controle soberano. Hoje, porém, surgiu uma nova tendência: o crescimento das fronteiras invisíveis. São fronteiras que se baseiam em sofisticadas técnicas legais para separar as funções de controle migratório de uma localização territorial fixa. O desaferramento do poder estatal de um marcador geográfico fixo criou um novo paradigma: a fronteira móvel.

Ao contrário de uma barreira física, a fronteira móvel não é fixa no tempo e no lugar; ela é composta de portais legais, ferramentas de vigilância e avaliações de risco alimentadas por inteligência artificial, em vez de muros de tijolo e cimento. As linhas negras que encontramos nos atlas não coincidem mais com o locus e foco do controle de migração. Em vez disso, os governos podem mudar a localização da fronteira tanto para fora como para dentro, ganhando uma tremenda capacidade de regular e rastrear indivíduos antes e depois de chegarem ao destino desejado. Os tentáculos flexíveis da fronteira móvel foram outrora utilizados principalmente para monitorar as pessoas em movimento, escapando da pobreza e da instabilidade. Hoje, todos, incluindo cidadãos de democracias ricas, estão potencialmente ao seu crescente alcance.

Mesmo antes da pandemia de Covid-19, os governos estavam abraçando entusiasticamente os passaportes biométricos. Estes parecem as livretas tradicionais de passaportes, mas contêm um chip eletrônico incorporado que codifica informações sobre o portador do passaporte. Tais informações incorporadas incluem uma foto digital que pode ser verificada contra vastos bancos de dados. Embora o chip utilizado nos passaportes biométricos seja "passivo" – não transmite ou rastreia nenhuma informação – é possível imaginar um futuro mais orwelliano em que dispositivos de rastreamento "ativos" estejam envolvidos. Além disso, o sistema de Global Entry, que já são populares entre viajantes de confiança na Ásia, Europa e América do Norte, confiam na verificação da identidade biométrica usando a inspeção facial, impressão digital ou reconhecimento da íris – mais do que a tradicional inspeção de fronteira. As autoridades governamentais prevêem um futuro no qual os passageiros que chegam e partem não precisarão de nenhum documento de viagem. Em vez disso, as fronteiras biométricas passarão a desempenhar um papel fundamental na política de gestão da mobilidade, transformando os corpos de migrantes e viajantes no local físico de regulamentação de movimento e de previsão de riscos.

Diante do desafio de derrotar um vírus invisível, um número crescente de países está adotando medidas de rastreamento futuristas

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The Covid-19 public inquiry is a historic chance to find out what really happened.

Além de se estender para fora, a fronteira também está se infiltrando para dentro. Diante do desafio de derrotar um vírus invisível, um número crescente de países está adotando medidas de rastreamento futuristas, implantando ferramentas de vigilância usadas antes para o antiterrorismo e a espionagem internacional contra suas próprias populações. Isso inclui medidas como a geolocalização dos telefones celulares daqueles que testaram positivo para o vírus (em alguns casos, sem buscar consentimento para esse rastreamento); a construção de “cercas geográficas” que demarcam recintos virtuais ao redor das zonas de quarentena; e ativação de câmeras térmicas com inteligência artificial que detectam alterações na temperatura do corpo de uma pessoa para identificar quem está com febre na multidão (como foi feito na Estação Ferroviária Qinghe, em Pequim).

Outra nova possibilidade é condicionar o movimento em QR codificado por cores ou escalas numéricas de "avaliações de risco" individualizadas com base em algoritmos controlados por big data que incorporam informações sobre a condição de saúde, o histórico de viagens e o rastreamento de contatos. Nos Estados Unidos, o Google e a Apple colaborarão para usar a tecnologia Bluetooth para criar uma nova plataforma interoperável que permitirá fazer “engenharia reversa” dos movimentos daqueles que testaram positivo para a Covid-19 – e daqueles com quem entraram em contato. Até os países europeus que aderem a regulamentações mais rígidas de privacidade de dados adotaram essas ideias.

Questões sobre o uso voluntário ou coagido de tais tecnologias – e suas arquiteturas – terão que ser debatidas. As respostas podem vir a servir como uma nova linha entre regimes democráticos e autoritários. Uma vez colocado em operação, no entanto, pode ser difícil fazer o gênio da biovigilância voltar à lâmpada, pois fornece aos governos olhos tecnológicos sem precedentes para monitorar e rastrear a mobilidade de todos em todos os lugares.

Mesmo antes da crise atual, a União Europeia financiou um projeto piloto, intitulado iBorderCtrl, desenvolvido para ajudar a proteger suas fronteiras. Esse sistema de monitoramento foi projetado para pré-selecionar os viajantes entrantes, que são obrigados a "realizar uma entrevista curta, automatizada e não invasiva com um avatar [e] passar por um detector de mentiras". Os dados são então vinculados a quaisquer dados de autoridade preexistentes e armazenados em grandes bancos de dados conectados com “unidades iBorderCtrl portáteis e sem fio que podem ser usadas dentro de ônibus, trens ou qualquer outro ponto [para] verificar a identidade de cada viajante… [E] calculam um fator de risco cumulativo para cada indivíduo”.

Uma vez colocado em operação, no entanto, pode ser difícil fazer o gênio da biovigilância voltar à lâmpada

O fator de risco calculado aparecerá em qualquer passagem futura pela fronteira e poderá levar a mais verificações ou até mesmo a uma negação de entrada. O avatar do iBorderCtrl é treinado para detectar mentira humana ao procurar por "micro-gestos" – sinais faciais e corporais não-verbais. Desenvolvimentos similares estão sendo realizados nos Estados Unidos, onde sistemas operados por inteligência artificial para detectar mudanças no fluxo sanguíneo ou tiques oculares sutis podem logo se tornar operacionais. Assim, a fronteira territorial, outrora fixada, não está apenas se estendendo para dentro e para fora, mas também se multiplicando e fraturando. Cada pessoa "carrega" a fronteira com ela quando se move através do espaço e do lugar.

Estas contrações e expansões espaciais e temporais têm implicações dramáticas para o alcance dos direitos e liberdades que cada um de nós pode esperar desfrutar, seja em casa ou no exterior. Tratar o corpo como o local de regulamentação não é mais uma competência exclusiva dos governos nacionais. As organizações internacionais também estão agora confiando na tecnologia, pois ela permite reimaginar a prestação de assistência humanitária. O ACNUR e o Programa Alimentar Mundial fizeram uma parceria com a IrisGuard – uma empresa comercial – para criar um sistema de registro biométrico mundial para refugiados, especialmente aqueles sem documentos governamentais oficiais, para adquirir uma identidade jurídica individualizada e digital. Pode ser interpretado como um "carimbo" que seguirá seu titular para onde quer que ele vá. Em uma cena adequada para um filme de ficção científica, os refugiados sírios na Jordânia agora recebem suas rações alimentares com um piscar de olhos.

Muito depois do fim da pandemia da Covid-19, podemos continuar a ser afetados por seus resíduos. Novas tecnologias ultra-sofisticadas de biovigilância irão rastrear pessoas em novas relações de poder em espaços políticos de (i)mobilidade. Nesta realidade em evolução, as fronteiras inconstantes são cada vez mais usadas para determinar quem merece passagem pelos portões de admissão. Se o corpo se tornar nosso bilhete para a mobilidade e a subsistência (ou, inversamente, um gatilho para sua negação), os riscos e oportunidades de uso e abuso são imensos.

Estes desenvolvimentos levantam dilemas éticos e legais significativos e, como a própria pandemia, correm o risco de exacerbar as desigualdades existentes. Se "conhecimento é poder", então "dados são controle". Quem controla os dados terá uma tremenda vantagem. Tecnologias que varrem, catalogam e escrutinam nossa impressão biométrica e nossa identidade levantam desafios profundos que permanecem difíceis de serem vistos, assim como a própria fronteira móvel.

À medida que a migração e o monitoramento populacional se tornam cada vez mais interligados, devemos estar vigilantes para garantir que, no mundo pós-crise, as ferramentas digitais e de biovigilância que hoje ajudam as autoridades a combater o vírus não serão usadas no futuro para proteger indiscriminadamente o corpo político contra ameaças reais, ou imaginárias.

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