
Domínio público. Pixabay.
Desde há uns anos que assistimos ao aparecimento do poder relacional, da transversalidade, da participação. Este é o fundamento que dá sentido e protagonismo à tecnopolítica, base sobre a qual se conceitualiza e se adopta uma nova visão da democracia: mais aberta, mais directa, mais interactiva. Um marco que supera a arquitectura fechada sobre a qual se cimentaram as praxis da governança (fechadas, hierárquicas, unidireccionais) em quase todos os âmbitos. Esta serie sobre “O ecossistema da democracia aberta” pretende analisar os diferentes aspectos desta transformação em movimento.
Actualmente é difícil ouvir um discurso que não inclua o valor das pessoas e a participação da sociedade para obter um modelo de governo aberto. Depois de décadas em que a concentração de poder nas elites políticas se tornou mais evidente, o desgaste, a frustração e o abismo que se abriu entre a classe dominante e "o resto" tornou-se quase intransponível. O desafio é enorme e em vez de tentar colmatar estas lacunas, parece ser necessário criar ligações entre os velhos esquemas de poder e os novos espaços que se têm ido construindo e consolidando.
Para isso, é necessário identificar que temas impactaram como se construiu, modificou e exerceu a cidadania até aos dias de hoje:
- A história do conceito de cidadania e o seu papel como parte da ordem social, mas também como direito jurídico.
- O relato de como os modelos educativos mudaram as diferentes necessidades, e a influência que isso tem noutros âmbitos de interacção social.
- A sofisticação da noção de Participação Cidadã e como se articula de forma concreta.
- A consolidação da tecnologia como habilitadora do exercício cívico desde diferentes ópticas.
O objectivo é unir estes pontos e gerar desde aí uma noção de cidadania digital, participativa e plena para os nossos dias.
Já a expansão do Império Romano se adequou à maneira como se concebia e como se vivia a cidadania no seio duma comunidade. O crescimento imperial tornou necessário criar regras específicas para ordenar as relações entre as cidades. Os cidadãos, obrigados a participar de forma rotacional no exercício do governo, tornaram-se membros de uma comunidade que partilhava as mesmas leis.
Actualmente é difícil ouvir um discurso que não inclua o valor das pessoas e a participação da sociedade para obter um modelo de governo aberto.
A queda do Império trouxe com ela um longo período de escuridão institucional, antes que a consolidação dos Estados-nação reforçasse a noção que a cidadania é um direito adquirido, com deveres e responsabilidades, pelo simples facto de ter nascido num território específico. Tudo era paz e alegria (por assim dizer) até que nas colónias britânicas da América se começou a pôr em causa a ideia que o que deve prevalecer é a soberania popular e que pagar impostos sem representação é sustentável. Isso originou a Guerra da Independência dos Estados Unidos, que, por sua vez, levou a uma série de revoluções sob a bandeira da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão da Revolução Francesa, em que um elo fundamental foi estabelecido: o nascimento outorga a cidadania e a mesma vem acompanhada por um conjunto de direitos que são naturais, inalienáveis e sagrados.
Hoje, a batalha travada pelos cidadãos é contra as fronteiras e o reconhecimento dos direitos, mas o progresso que tem havido é enorme. Conforme a definição da União Europeia:
“A cidadania é o direito e a vontade de participar duma comunidade através da acção auto-regulada, inclusiva, pacífica e responsável, a fim de optimizar o bem-estar público.”
A realidade está a dar saltos rápidos e é preciso entender o conceito de cidadania como uma ideia dinâmica. Assim como as sociedades se tornaram mais complexas, dando lugar a novos significados do termo, há também instituições que na sua transformação estão a mudar a maneira como nos relacionamos e, portanto, como somos cidadãos. Uma delas é a educação. Como mudou o papel social da educação e qual é a sua influência nas nossas vidas como cidadãos? E como mudaram os modelos educativos como a chegada de novas ferramentas e necessidades?
A cidadania é o direito e a vontade de participar duma comunidade através da acção auto-regulada, inclusiva, pacífica e responsável, a fim de optimizar o bem-estar público.
Educação e tecnologia
A educação mudou com a tecnologia. O que um determinado momento era objectivo e uma necessidade dos sistemas de educação universais, hoje já não é. Ken Robinson di-lo de forma muito clara na sua TED Talk. Entretanto, Cristóbal Cobo impulsor do estudo da tecnologia e da educação, no seu livro Aprendizagem Invisível enfatiza que:
"Com a chegada da economia industrial, aumentaram tantos os salários como a proporção de empresas que operavam com a contratação de trabalho assalariado. As crianças começaram a desempenhar cargos precários, muitas vezes até mesmo perigosos, até que a sociedade se começou a preocupar pelo seu bem-estar. Assim surgiu a industrialização da educação. As crianças foram deslocadas da produção primária e passaram a formar parte dum mecanismo institucional em que aprendiam dos adultos – e não ao contrário – até que, depois dum período de tempo, se tornavam em jovens adultos 'treinados' e prontos para ser empregados pela economia industrial ".
Depois de longas décadas nas que o sistema educativo cumpriu com as necessidades da industria, começaram a produzir-se pequenas rupturas ao serem precisos menos trabalhadores técnicos e mais pessoas vinculadas à economia do conhecimento. Foi nesse momento que as coisas deram uma volta. Diz Cobo:
"A aparição da sociedade do conhecimento chega com a percepção que tem lugar no século XX. A informação precisava de ser interpretada e requeria, portanto, a presença de trabalhadores do conhecimento… os seres humanos, entendidos como animais sociais, participam nas interacções sociais e compartilham o seu conhecimento pessoal em sistemas cada vez mais complexos. Este ecossistema de sentidos e valores construídos individualmente favoreceu durante a segunda metade do século XX, a criação do que hoje é conhecido como a gestão co conhecimento".
A questão torna-se interessante quando a necessidade de gerir o conhecimento transforma os esquemas nos que o conhecimento em si mesmo flui e é distribuído:
"A contínua globalização está a permitir que o conhecimento seja distribuído horizontalmente em áreas até então incomunicáveis, criando relações heterárquicas e proporcionando a possibilidade que o conhecimento seja aplicado em contextos inovadores. No domínio da aprendizagem, isto significa que todos nos tornamos em co-alunos e em co-educadores, como resultado da construção e aplicação colectiva de novos conhecimentos”.
A mudança tecnológica alterou os modelos educacionais e o conjunto de estruturas e relacionamentos - especialmente a hierarquia. A educação deixa de ser o lugar onde um aprende e o outro ensina, consolidando-se mecanismos de aprendizagem mais abertos, participativos, flexíveis, em constante feedback, e que proporciona aos alunos uma maior responsabilidade pelo conteúdo do que aprendem e as maneiras como aprendem.
Quando as estruturas educacionais estão definidas e abrem o caminho para distribuir e interagir com a informação, a influência desta transformação transcende para outras áreas. A governança é um deles. Se a escola está a começar a transformar a forma como nos relacionamos com o conhecimento, não é coincidência que os mesmos formatos também transformem a governança. E, tal como muitas instituições rígidas e tradicionais são hoje obsoletas e são superadas pelo fácil acesso à informação digital, no campo da governança acontece o mesmo. Para passar de discursos em que a participação é um valor a modelos de toma de decisões abertos, devemos estabelecer modelos concretos (vinculantes) de participação.
A contínua globalização está a permitir que o conhecimento seja distribuído horizontalmente em áreas até então incomunicáveis, criando relações heterárquicas e proporcionando a possibilidade que o conhecimento seja aplicado em contextos inovadores.
Participação cidadã
O valor dos esquemas participativos e a sua relação intrínseca com o exercício da cidadania está resguardado. O desafio está em passar do elemento discursivo aos mecanismos específicos: como se implementa? Como se avalia? Qual é o seu impacto? Como modifica a forma tradicional e fazer as coisas?
Aqui estão algumas pautas elaboradas pelo Conselho de Participação Cidadã no Chile:
Níveis e alcance da participação do cidadão
Os níveis de participação dos cidadãos referem-se a diferentes graus e maneiras em que indivíduos e grupos estão envolvidos ou podem estar envolvidos na governação. Outra maneira de defini-los é argumentando que "se referem aos diferentes graus de obrigação com as decisões da sociedade civil como parte de um processo participativo."
Informação e consulta: para alguns, estes níveis não podem ser considerados processos participativos reais e os chamam-lhe "simbolismo participativo"; para os outros, apesar das suas limitações, reconheceram-nos como processos participativos que podem ser suficientes em si mesmos.
Participação Consultiva-Propositiva: destina-se a receber opiniões e posições sobre um tema através de dúvidas, sugestões e ideias expostas numa relação de mão dupla entre o autor do pedido e aquele que responde. A sociedade civil também pode apresentar propostas para os diferentes níveis de governo e a resposta pode ser obrigatório ou não.
Decisório-Impugnatório: no nível de informação e consulta, Arnstein identifica a colaboração e o poder delegado. O primeiro, definido como o momento em que a energia é redistribuído a partir de uma negociação entre os cidadãos e as autoridades e as regras estabelecidas não podem ser alteradas unilateralmente.
Co-participativo: O objectivo deste nível é dar aos cidadãos parte na execução e/ou gestão de programas ou serviços públicos através de um processo de negociação. Podemos distinguir dois tipos de parceria: a co-administração e a aliança estratégica.
Participação incidente e empoderamento: em geral, os níveis de participação devem ser avaliados em relação à sua habilidade e capacidade para produzir uma participação incidente na acção de políticas públicas, ao mesmo tempo que capacitam a sociedade civil no seu papel de co-builder da acção pública.
É preciso reconhecer mecanismos diferentes, com diferentes níveis de complexidade e impacto, e identificar a diferente gama de actores e actividades que podem ser adoptadas e adaptadas.
Participar – na teoria — é fácil. Conseguir que participação seja transformadora é mais complicado. E, embora na maioria dos lugares, os esquemas de participação se fiquem pela aparência, cada vez são mais os cidadãos que utilizam todos os meios possíveis para gerar uma massa critica forte, constante e capaz de influenciar como se tomam as decisões num país.
Os desafios da cidadania tornaram-se cada vez mais complexos e tecnologia tem sido a chave para actualizar o potencial participativo. Assim nasceu a chamada Tecnologia Cívica.
Tecnologia cívica
Para alguns, pode ser definida como a ponte entre a missão do Estado e o potencial da tecnologia. Isso permite que o envolvimento ou participação alcancem um desenvolvimento mais forte, uma comunicação mais eficiente e uma melhor utilização da infra-estrutura pública. Um estudo realizado pela Fundação Knight caracteriza os actores que trabalham no mundo dos grupos de tecnologia cívica e agrupa-os tematicamente.
A nível ilustrativo, destacamos: DemocracyOS (discussão de leis); Nossas (processos organizativos); Vota Inteligente (processos eleitorais); Donde Van Mis Impuestos (seguimento de recursos públicos); A tu Servicio (avaliação serviços públicos); Chequeado o Del Dicho al Hecho (avaliação de promessas); Codeando Mexico o Socialab (necessidades e alternativas).
Resumindo, para entender e defender nossos cidadãos é importante reconhecer de onde vimos em matéria de organização social e de reconhecimento de direitos. Incluindo o direito a participar. Assim, podemos rever a forma como aprendemos e como aprendemos a aprender. Assim, podemos esclarecer como mudámos a nossa forma de interagir com o nosso meio ambiente, com as nossas autoridades e com o conhecimento que temos disponível. Por fim, identificar que ferramentas estão disponíveis e que nos ajudam a tomar decisões em função do bem-estar público: aquelas que têm sido úteis há milhares de anos e aquelas que se expressam hoje digitalmente e se renovam segundo a segundo. Ferramentas que nos permitem olhar, ser olhados e abrir novos canais de comunicação e decisão.
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