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Cidadania e produção democrática

O cidadão produtor, por um lado, tira proveito do conhecimento em rede, e, por outro, beneficia-se dos espaços de produção. Esse novo paradigma exige novas habilidades. English Español

Valeria Righi Mara Balestrini
18 Abril 2017
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Cidadãos de Barcelona montam um Smart Citizen Kit para recolher dados abertos. Foto: Gui Seiz, todos os direitos reservados.

Desde há uns anos que assistimos ao aparecimento do poder relacional, da transversalidade, da participação. Este é o fundamento que dá sentido e protagonismo à tecnopolítica, base sobre a qual se conceitualiza e se adopta uma nova visão da democracia: mais aberta, mais directa, mais interactiva. Um marco que supera a arquitectura fechada sobre a qual se cimentaram as praxis da governança (fechadas, hierárquicas, unidireccionais) em quase todos os âmbitos. Esta serie sobre “O ecossistema da democracia aberta” pretende analisar os diferentes aspectos desta transformação em movimento.

Nas últimas décadas assistimos como o conceito de inovação mudou ao mesmo tempo que se amplia o ecossistema de agentes capazes de produzir inovação, assim como a forma de produzi-la. Por exemplo, o conceito de produtor-inovador, onde aqueles que inovam são as empresas de acordo com as suas ideias, foi superado pelo de utilizador-inovação, onde a inovação surge da observação das necessidades dos consumidores, e por último pelo de consumidor-inovação, onde os consumidores aumentados pelas novas tecnologias são capazes de criar os seus próprios produtos. Ao mesmo tempo, os modelos de negócios relacionados com a inovação mudaram. Por exemplo, agora fala-se não só de inovação protegida por patentes, mas também de open innovation e inclusive free innovation, onde os aspectos de partilha em aberto do conhecimento desempenham um papel chave. 

No campo da smart city, ou cidade inteligente, manifestou-se uma evolução similar. Enquanto os primeiros modelos de smart city priorizaram a tecnologia em mãos de especialistas como elementos chave para a resolução de problemas urbanos, iniciativas mais recentes como a Sharing City (Seoul), a Co-city (Bologna), ou a Fab City (Barcelona) colocam o ênfase na participação cidadã, na economia dos dados abertos e dos processos colaborativo-distributivos como catalisadores de soluções inovadoras para desafios urbanos. Ditas iniciativas poderiam catalisar uma nova onda no desenho de cidades mais inclusivas sustentáveis; desafiando as estruturas de poder existentes, ampliando a gama de soluções para problemas urbanos e, possivelmente, criando valor a uma escala maior.

Num contexto de austeridade econômica e urbanização massiva, as Administrações Públicas reconhecem a necessidade de procurar alternativas inovadoras às crescentes exigências urbanas. Entretanto, os cidadãos, se que apropriam do potencial das tecnologias – muitas delas acessíveis graças ao uso de licenças aberta –, põem em prática a sua capacidade criativa contribuindo para uma onda de inovação que poderia reinventar inclusive os setores mais estabelecidos.

Produção contributiva

Combinações virtuosas de participação e capacidades cidadã, tecnologias digitais, e estratégias abertas e colaborativas estão capitalizando a inovação em todos os âmbitos. Desde o trabalho até à casa, passando pela alimentação e pela saúde, nada é estranho à inovação cidadã. Por exemplo, o âmbito do trabalho vê-se potencialmente afetado pelos novos processos de fabricação pessoal e produção em escala individual: os cidadãos podemos agora produzir pequenos e grandes objetos (nova capacidade), graças aos que podemos aceder facilmente a novas tecnologias como as impressoras 3D (nova capacidade); podem também usufruir de novas licenças de propriedade intelectual adaptando inovações alheias e compartilhando as próprias livremente (nova regra) como resposta a uma ampla gama de necessidades.

Nessas linhas, entre 2015 e 2016, a cidade de Bristol catalisou um programa de inovação cidadã que procurava soluções para problemas vinculados com os estados das casas para alugar, chegando a uma solução através da participação cidadã e o uso de sensores e dados abertos. Foram os próprios cidadãos os quais, para combater o problema de umidade nas casas, desenharam e fabricaram sensores de temperaturas e umidade utilizando hardware aberto, impressores 3D e cortadoras laser. Distribuídos em casas, os sensores permitiram mapear a escala do problema, distinguir entre condensação e umidade, e assim entender se o problema se devia a problemas estruturais do edifício ou aos maus hábitos do inquilino. Graças ao processo de inclusão dos cidadãos afetados na resolução das seus problemas, a comunidade sentiu-se apoderada para procurar soluções juntamente com os proprietários e o município.

Um processo similar está sendo realizado em Amsterdã, Barcelona e Pristina, sob o âmbito do projeto Making Sense. Neste caso, comunidades de cidadãos afetadas por problemas meio-ambientais fabricaram os seus próprios sensores e dispositivos urbanos para coletar dados abertos sobre a cidade e organizar intervenções de conscientização e ação coletiva.

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O FrogBox, um sensor de temperatura e humidade criado por cidadãos de Bristol. Foto: KWMC, todos os direitos reservados

Trabalho cidadão

Na ultima década assistimos ao aparecimento de novas formas de microprodução através da expansão dos chamados laboratórios de fabricação cidadã, fabricas para a fabricação digital pessoal, equipado com uma serie de ferramentas controladas pelo computado e materiais que permitem fabricar “quase qualquer coisa”. Fab Labs, maker e hacker spaces surgiram na maioria das cidades convertendo-se em espaços de co-criação para a inovação social digital, aprendizagem de habilidades para o século XXI e empreendedorismo cidadão.

Destes laboratórios surgiram inovações como a impressora 3D de código aberto Ultimaker, ou uma startup que cria jogos e artefatos electrônicos a partir de desenhos no Togo. Muitas vezes ditas inovações são co-financiadas por cidadãos através de plataformas de micro-patronagem como o Kickstarter (exemplo: o sensor meio-ambiental Smart Citizen) ou comercializadas através de plataformas p2p como Etsy. Desta forma, os cidadãos participam do tecido produtivo da cidade, ao mesmo tempo que aprendem nova habilidades e criam oportunidades de trabalho para si mesmos e para outros.

Além disso, estes espaços de desenho e produção possibilitam a aquisição de conhecimento para a fabricação digital, a criatividade e a colaboração, habilidades que foram destacadas como necessárias para o desempenho dos trabalhos do futuro. 

Saúde cidadã

A inovação social digital também está gerando um rompimento no âmbito da saúde. Existem diferentes manifestações de diferentes projetos. Primeiro, plataformas como DataDonors ou PatientsLikeMe demonstram uma crescente participação dos cidadãos na investigação em biomedicina a partir da doação dos seus próprios dados de saúde.

Segundo, criações como o pâncreas artificial e código livre, produto de colaborações entre cientistas e aficionados, ou projetos como a Open Hand Project, que utilizam impressoras 3D para criar braços prostéticos para pessoas com baixos recursos, demonstram que a combinação entre as novas tecnologias, o código livre e as capacidades cidadãs podem melhorar a qualidade de vida das pessoas a um custo e a uma escala antes inimaginável.

Em último lugar, projetos como a OpenCare em Milão e aplicações moveis como Good Sam demonstram como os cidadãos se podem organizara para proporcionar serviços médicos que seriam mitos caros ou a uma escala e granularidade a que o sector público dificilmente poderia responder.

Alimentação cidadã

Alimentar-se é uma das atividades humanas mais importantes e generalizada. Contudo, a produção industrial de alimentos tem um provado impacto negativo no meio-ambiente, e, muitas vezes, na saúde das pessoas. Um número crescente de iniciativas de inovação social digital nesta área está fomentando o aparecimento de um sistema de alimentos que pode melhorar a vida das pessoas e contribuir para a sustentabilidade do meio-ambiente, assim como a criação de novos ecossistemas de produção na cidade.

Existem diferentes manifestações de ditos processos que permitem discernir como a inovação cidadã em rede poder ter um impacto na forma como produzimos e consumimos alimentos. Por um lado, iniciativas como A Colmeia que Diz Sim, uma plataforma de consumo local que utiliza tecnologias digitais para ligar consumidores e produtores demonstram que há vontade por parte dos cidadãos de motivar a produção e consumos locais e que se pode fazer a um baixo custo, ligando elementos já existentes no ecossistema.

Por outro lado, projetos como Aquapioneers ou Spirulina Lab, mostram como a fabricação digital personalizada e as ferramentas de código aberto permitiram que as pessoas produzam seus próprios alimentos com o objetivo de alcançar a auto-suficiência alimentaria e reduzir o impacto negativo no meio-ambiente. Finalmente, as crescentes iniciativas de hortas urbanas ou projetos como Connected Seeds ou o observatório Grow ilustram um cenário onde comunidades de vizinhos se organizam para reapropriar espaços existentes, utilizam sensores para monitorizar fatores meio-ambientais e plataformas digitais para compartilhar conhecimento com o objetivo de produzir alimentos a nível local mas a maior escala, e de forma colaborativa.

Conclusão

Os processos de produção deste tipo de produtos e serviços obrigam a pensar nas implicações políticas e no papel das instituições públicas, colocando em questão as regras de participação e contribuição no marco da cidade. Nos tempos atuais de turbulência sociopolítica e planos de austeridade existe uma necessidade de desenhar e provar novas perspectivas de participação, produção e gestão cívica que possam fortalecer a democracia, aportar valor e ter em conta as aspirações, a inteligência emocional e agencia dos indivíduos e das comunidades.

Para que a nova onda de produção cidadã gere capital social, inovação inclusiva e bem-estar, é preciso garantir que todos os cidadãos, e em particular os das comunidades menos representada, estejam facultados para contribuir e participar no desenho da cidade para todos. Portanto, é fundamental desenvolver programas para aumentar o acesso às novas tecnologias e às habilidades que são precisas para utilizá-las e transformá-las.

Igualmente, é preciso estabelecer princípios de colaboração entre a cidade e os cidadãos de forma que o direito do cidadão a contribuir para o co-desenho do âmbito físico e digital da cidade não seja só reconhecido, mas também adequadamente valorizado (através de incentivos e recompensas), para que a sua contribuição seja motivada e não explorada com fins diferentes aos previstos. Para tal fim, será fundamental estabelecer um código de ética e regras de compromisso que se convertam na coluna vertebral da inovação cidadã aberta e fomentem um novo modelo contributivo para as cidades. 

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