
Fonte da imagem: Wikipedia. Mapa original de John Snow mostrando a aglomeração geográfica de casos de epidemia de cólera em Londres em 1854, elaborado e litografado por Charles Cheffins.
Desde há uns anos que assistimos ao aparecimento do poder relacional, da transversalidade, da participação. Este é o fundamento que dá sentido e protagonismo à tecnopolítica, base sobre a qual se conceitualiza e se adopta uma nova visão da democracia: mais aberta, mais directa, mais interactiva. Um marco que supera a arquitectura fechada sobre a qual se cimentaram as praxis da governança (fechadas, hierárquicas, unidireccionais) em quase todos os âmbitos. Esta serie sobre “O ecossistema da democracia aberta” pretende analisar os diferentes aspectos desta transformação em movimento.
Steven Johnson no livro The Ghost Map: The Story of London's Most Terrifying Epidemic and How It Changed Science, Cities, and the Modern World (Riverhead Books, Londres, 2007), sublinha como John Snow, médico do bairro Londrino do Soho, através dum mapa, mostra que a epidemia de cólera que afectava a cidade em 1854 provinha do abastecimento de agua e não do ar como acreditavam as autoridades. O mapa de Snow (imagem superior) supôs para ele algo muito evidente, mas que precisou duma imagem – visualizando a concentração de mortes à volta dos poços de água – para alterar a mentalidade daqueles responsáveis por tomar decisões.
O mapa: possibilidades e limites
Tudo começa no mapa. No mental e no cartográfico. Na cabeça e no papel. A representação é uma forma de compreender e de possuir.
Da mesma forma que os mapas são um recurso útil para o poder, para a toma de decisões, nem sempre são uteis quando há que inovar, uma vez que, aproveitando a força das zonas mentais de conforto, como bem explica o geógrafo Jacques Lévy, os mesmos podem criar estruturas de conhecimento rígidas que não permitem novas leituras:
“Não se enganar de presente: os investigadores, como toda a gente, temos tendência a ser preguiçosos e a analisar o presente através de modelos explicativos que funcionam mais ou menos bem no passado, mas que já não nos convêm”.
Este é também um dos riscos mais graves da política convencional. Ver o mundo – e as suas mudanças – com as velhas ideias subsidiárias da uma forma de entender a geografia e a geometria dos conceitos.
Tudo começa no mapa. No mental e no cartográfico. Na cabeça e no papel. A representação é uma forma de compreender e de possuir.
E mais quando as cidades inteligentes do século XXI já não são somente um território, um espaço delimitado, definido pelos seus limites administrativos. Por este motivo, já que não podemos governar unicamente com mapas – com o Doutor Snow – temos que analisar todas as capas da realidade se queremos transformá-la. As capas de relações, fluxos, dados, vínculos e causalidades que a actividade das pessoas – e a sua dinâmica composição organizativa – geram. As Administrações locais e metropolitanas já não podem limitar-se à sua actuação sobre a dimensão física, se desejam governar o bem comum e ampliar o espaço do público. Um mundo de regulações (do trânsito ou da terra, por exemplo) é imprescindível, ainda que não suficiente, para potenciar o desenvolvimento autónomo da actividade humana, que tende sempre à desordem que hipoteca o futuro ou divide o presente dos mais desfavorecidos. Precisamos duma concepção nova que entenda que as grandes oportunidades para gerar mais cidade (sustentável) passam por ampliar e promover mais cidadania. Uma cidade que não se pensa somente desde o seu código postal, mas sim desde o seu código digital. A cidade debaixo do chão. Falemos mais de cidades interligadas, de realidades urbanas complexas, de ferramentas que se adaptam a novas formas de participação (e não ao contrário), de cidadãos produtores e gestores do seu rasto digital, de propriedades partilhadas dos dados que geramos, do desafio do gap digital, de soberanias tecnológicas.
Precisamos duma concepção nova que entenda que as grandes oportunidades para gerar mais cidade (sustentável) passam por ampliar e promover mais cidadania.
Como antecipámos, os nossos conhecimentos estão fixados em imagens (visualizações) que nos condicionam e predeterminam a nossa visão do mundo e as nossas decisões. Por este motivo, desaprender é também libertarmo-nos das imagens preestabelecidas que nos impedem adquirir novas visões e adentrarmo-nos em novas geografias e geometrias. John Gray, no O Silêncio dos Animais, sobre o progresso e outros mitos modernos (Madrid, 2013), sublinha que:
“Um mapa pode representar as estruturas físicas das que uma cidade se compõe num momento dado, mas não uma cidade em si mesma, que continua a ser ignorada (…). A representação gráfica é uma abstracção que simplifica as experiências, que são incomparavelmente mais multicolores.”
Neste sentido, temos de tentar transcender a visão superficial fixada pela posição das ideias, das coisas, das pessoas, para captar o fundo constituído pelas relações que se estabelecem entre elas: posição versus relações, nodos versus fluxos -“ver o mundo como se este estive formado por coisas estáveis é uma forma de alucinação”, afirma John Gray.
Temos de tentar transcender a visão superficial fixada pela posição das ideias, das coisas, das pessoas, para captar o fundo constituído pelas relações que se estabelecem entre elas: posição versus relações, nodos versus fluxos.
Novas geografias, novas geometrias
Neste marco de complexidade, onde a cidade interligada requer novos olhares para compreender a sua complexidade, proponho o espaço holístico onde possamos:
- Transcender a escala fixa e imóvel da realidade para explorá-la com diversos focos e pontos de vista, aplicando o zoom que nos abra a diversidade que vai desde o micro ao macro: escala versus foco.
- Transcender a morfologia estática e monotemática da realidade, própria do topógrafo, como sublinha Simon Garfield em “No mapa, de como o mundo adquiriu o seu aspecto (Taurus, Madrid, 2013), para introduzir a complexidade plástica das diferentes formas que pode adquiri a realidade: morfologia versus plasticidade.
- Transcender as coordenadas fixas com as que delimitamos a realidade para poder captar a imensidão dos dados massivos que as novas tecnologias nos põem à disposição de uma imagem plana ou uma imagem 3D: coordenadas versus dados.
A cidade democrática valoriza-se, portanto, pela sua capacidade de gerar ópticas que permitam uma leitura do concreto ao global e pela sua plasticidade para interpretar, valorar e accionar os interesses da cidadania. Para isso, dispõe dum instrumento essencial, os dados massivos. Como argumentam Viktor Mayer-Schönberger e Kenneth Cukier em Big Data. A revolução dos dados massivos (Turner. Madrid, 2013), o big data proporciona um olhar prospectivo:
“Os dados massivos estão prestes a remodelar a nossa forma de viver, trabalhar e pensar. A mudança à que nos enfrentamos é, em determinados aspectos, inclusive maior que o derivado de outras inovações que marcaram épocas, e que ampliaram significativamente o alcance e a informação na sociedade. O chão que pisamos está-se a mexer. As certezas anteriores são postas em causa. Os dados massivos exigem uma nova discussão sobre a natureza da toma de decisões, o destino, a justiça. Uma visão do mundo que acreditávamos feita de pausas enfrenta-se agora à primazia das correlações. Possuir o conhecimento, que em tempos supos compreender o passado, está a tonar-se numa capacidade para predizer o futuro”.
A cidade democrática valoriza-se, portanto, pela sua capacidade de gerar ópticas que permitam uma leitura do concreto ao global e pela sua plasticidade para interpretar, valorar e accionar os interesses da cidadania.
Que gerará um desafio para a sua governança, já que as novas capas de informação requerem uma forma de pensar nova que:
“Suporá um desafio para as nossas instituições e inclusive para o nosso sentido de identidade. A única certeza radica em que a quantidade de dados continuará a crescer, tal como a capacidade para processá-los a todos. Mas, enquanto que a maioria das pessoas considera os dados massivos como um assunto tecnológico, nós acreditamos que temos que fixarmo-nos em vez disso no que acontece quando os dados falam”.
Em definitiva, devemos esquecermos da posição, da escala, da morfologia e das coordenadas para nos concentrarmos nas relações, no foco, na plasticidade e nos dados para compreender as novas geografias e as novas geometrias que exigirão as cidades no ecossistema da democracia aberta.
“Maneiras de ver, maneiras de pensar”, afirmava Aristóteles.Libertemos a nossa forma de ver a realidade, aprofundemos novos olhares e enfoques, e teremos novas ideias e perspectivas para os problemas de gestão do bem comum.Precisamos de novas visões se quisermos ter novas soluções. Maneiras de ver, maneiras de pensar
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