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'Continuamos conectados aos nossos antepassados': Karla, indígena wayuu de 11 anos, descreve sua história

As crianças wayuu aprendem com seus avós as realidades da sua terra. Karla Lucía Uriana González compartilha seus sentimentos e experiências na Colômbia e na Venezuela.

Luzbeidy Monterrosa
3 Agosto 2020, 7.56
Karla, de 11 anos, pertence ao povo Wayuu e vive em La Guajira, Colômbia, perto da fronteira venezuelana. Karla registra seu território com uma câmera
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Luzbeidy Monterrosa

As pegadas que deixo na areia com as waireñas (sapatos característicos) enquanto caminho fazem parte da memória que tenho do meu território, caracterizado pelas paisagens áridas, mulheres com mantas coloridas, homens pastoreando as cabras, meninos e meninas brincando com bonecos de barro, e as muitas cores da diversidade do deserto e da vegetação de Woumainkat (nosso território). La Guajira é uma mistura de magia cativante.

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La Guajira es un lugar caracterizado por las tierras áridas y gran parte del territorio es habitado por los Wayuu. | Pablo Albarenga

Nessa caminhada, através da comunidade de Alakat, localizada a 45 minutos da fronteira da Colômbia com a Venezuela, conheci Karla Lucía Uriana González, uma menina wayuuu de 11 anos. Ela me perguntou no que estávamos trabalhando, eu e Pablo, meu companheiro de viagem. Contei que estávamos coletando relatos e fotografias para algumas histórias e, em um momento da conversa, ela começou a falar sobre a Venezuela. Karla é uma menina que só poderia ter sido ela mesma. Com seu coração cheio de inocência e seu caráter nos transmitiu grandes ensinamentos. Compartilho esta história porque para nós, povos indígenas, as vozes das crianças são importantes porque contam com sinceridade, de seus olhos, o que acontece ao seu redor e porque elas são a continuidade de nossos povos.

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Mujer Wayuu artesana hila un chinchorro en su casa, ubicada en la comunidad de Alakat. | Karla Lucía Uriana

"Nasci na Venezuela. Meu nome lá é Karla Eugenia Farías Sierra, mas aqui meu nome é Karla Lucía Uriana González. Neste momento estamos na comunidade de Alakat, onde vivem nossos pais e toda a nossa família", disse ela.

Karla me recordou que muitos de nós, wayuu, temos dois nomes. Embora nossos anciãos nos tenham dito que não existem fronteiras, que somos binacionais, a realidade é que os Estados não respeitam esses direitos; portanto, existe uma dupla identidade entre o povo wayuu. Em nossas comunidades vivem pessoas que são profissionais em um país e sem treinamento educacional no outro; com seguro médico em um e sem oportunidade de entrar no sistema de saúde em outro.

Assim começou o diálogo com Karla, o que me levou a pensar em minha própria história que, ao fim e ao cabo, é a história dos mais de 380 mil wayuu na Colômbia e dos 415 mil na Venezuela, segundo os censos oficiais de 2018 e 2011, respectivamente.

'Você conhece a fronteira?'

"A primeira vez que conheci a fronteira foi de madrugada. Houve uma greve, não tínhamos passagens e minha mãe, meu irmão pequeno e eu fomos a pé (...). A fronteira dava medo, porque é perigosa, há guardas e pessoas más."

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As meninas da comunidade de Alakat disseram e escreveram que muitas delas não sabiam o que era a fronteira. Na foto também está a Karla e eu (Luzbeidy Monterrosa)
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Pablo Albarenga
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Sentada, Karla conta as histórias que seus avós sempre lhe contaram sobre o jagüei
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Pablo Albarenga

Karla diz que naquela época morava com sua família na cidade de Maracaibo, na Venezuela, que identifica como seu lugar de origem. Quando ela disso isso, pensei em nossos compatriotas, porque, como Karla, somos muitos os wayuu que nasceram e foram criados nessa cidade. Hoje muitos de nós a recordamos como nossa terra amada, a terra do sol, das gaitas, dos deliciosos patacones e do povo maracucho, gentílico para aqueles que são de Maracaibo. Nossos a'laülaayuu (avós) nos dizem que migraram de La Guajira, na Colômbia, para a Venezuela, em busca de oportunidades e novas possibilidades de continuar sendo indígenas nas grandes cidades.

O assunto da fronteira me lembra as histórias que minha mãe me contou sobre minha avó Lucinda Henríquez, que eu nunca pude conhecer. Ela foi a primeira da nossa família a migrar para o país vizinho. No meio da conversa, Karla me disse que também não pôde conhecer sua avó: "Lucía é o nome da minha avó que não está mais aqui". Entendo como é inevitável sentir saudade daquela cidade, Maracaibo, à qual não pertencemos, mas que representa um lugar que, em algum momento, nos proporcionou oportunidades de educação, economia e moradia – aquele "anaakua'ipaa" (viver bem ou buen vivir em espanhol), esse estilo de vida tão almejado. Um lugar onde desenvolvemos nossas vidas seguindo os sonhos e as pegadas de nossos avós. Lá, os wayuu que saíram do deserto do lado colombiano, trabalharam e ajudaram seus parentes que haviam ficado em La Guajira.

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Karla nos contaba historias y al tiempo fotografiaba el paisaje y las plantas del territorio | Pablo Albarenga

Enquanto uma brisa fresca soprava através do cuji (árvores) e da vegetação diversa que cresce mais facilmente no baixo Guajira onde o solo é um pouco mais fértil, Karla nos levou ao seu mundo de menina wayuu através da câmera que ela emprestou para tirar fotos de sua comunidade. Ela nos falou sobre o uso das plantas que encontramos em nosso caminho, tais como rülipi, aipia e jeechua, que segundo Karla são plantas medicinais de acordo com os ensinamentos de seus anciãos. Depois nos sentamos e começamos a falar sobre o significado do território.

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Karla nos señaló lugares importantes de su territorio y compartió los aprendizajes y enseñanzas de su abuelo. | Luzbeidy Monterrosa

- "Desde que cheguei aqui, meu avô foi quem nos ensinou sobre este território".

- "O que é o território?"

- "Território é comunidade, lugar, casa, cidade, departamento, é permanecer nesse lugar".

- "Qual é o seu território, Karla?"

- Meu território é na Venezuela. Lá era um bom lugar. Quando estava o outro presidente que morreu, Chávez, estávamos bem. Minha mãe trabalhava, ela nos alimentava todos os dias, mas agora não há como comprar um Cheetos, nem mesmo um doce. Na Venezuela agora há fome."

A fronteira é um lugar que nós, wayuu, não reconhecemos. Desde a infância conhecemos a fronteira, que é um ponto de controle migratório que divide a Colômbia e a Venezuela e está localizada em Paraguachón (Maicao, Colômbia). As pessoas passam por lá o tempo todo. Os governos de ambos os países fizeram questão de impor a fronteira e nos ensinaram, através dela, que eles podem desenhar barreiras entre os seres humanos para nos fazer acreditar que não somos todos iguais porque somos de um lugar ou de outro, por causa da cor da nossa pele, das crenças, do pensamento, da vestimenta, do status econômico, da culinária. Tudo pode se tornar uma barreira e, uma vez incorporada, muitas vezes nós mesmos nos encarregamos de mantê-la viva.

A história e a vida nos forçaram a crescer em outro lugar e a sentir saudades do nosso ser. Nos comunicamos com nosso território ancestral remotamente através do lapü (o sonho), que espero nunca perder porque é a única maneira de nos mantermos conectados com nossa cultura e nossas crenças.

Então, paramos perto de um jargüei, um reservatório natural de água. Com a câmera, Karla se concentra no reservatório e explica que "a água se acumula ali em tempos de chuva. Nós, wayuu, buscamos a água que é usada nas casas, para tomar banho e onde os animais bebem”.

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Jagüey (reservorio artesanal de agua) de la comunidad de Alakat. Este se encuentra en la parte baja de La Guajira, cerca del municipio de Maicao. El jagüey se caracteriza por su poca vegetación en tiempos de lluvia. | Karla Lucía Uriana

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Los pies de Karla y la tierra árida de su natal La Guajira. | Karla Lucía Uriana

Ficamos neste lugar por um tempo, tirando fotos com ela. Em um momento, outra menina se aproximou e Karla a chamou para brincar, mas a menina estava com pressa e apenas puderam se cumprimentar, o que fizeram em wayuunaiki, nossa língua. Ela partiu, mas prometeu voltar. Continuamos caminhando e ouvindo as histórias que Karla nos contava sobre este lugar e por que eles estavam lá agora.

"Viemos para cá para estudar, para ajudar minha mãe, meus pais, meus irmãos e irmãs", disse ela, acrescentando que gostaria de ser médica "para salvar a vida da minha família, de pessoas que precisam curar doenças, que não têm como se tratar. Eu quero ajudar pessoas pobres como eu".

No entanto, como disse Karla, "as pessoas são egoístas, não pensam nos outros apenas em si mesmas". Esta é uma afirmação muito verdadeira em um contexto em que as pessoas enxergam La Guajira apenas para saqueá-la, em que a humanidade perdeu o interesse pelo outro e pelo seu entorno. Mas mesmo assim, os wayuu continuam sendo, continuam dando o melhor de si. As crianças wayuu são a esperança de um povo que existe há milhares de anos e que resistem ao longo da história.

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Meninas wayuu em uma cozinha na comunidade de Alakat. A construção é feita com uma espécie de árvore conhecida na região como trupillo
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Karla Lucía Uriana

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Karla toma fotos acompañada de su hermano y su madre, María Eugenia Uriana. Los senderos áridos bordeados de plantas bajas y de un color verde brillante caracterizan a esta comunidad que se encuentra a 45 minutos de la frontera entre Colombia y Venezuela. | Luzbeidy Monterrosa

Os wayuu sonham com um futuro cheio de possibilidades. Desta vez falo por Karla, uma menina que, como tantas outras em nossa comunidade, merece ter acesso a uma educação de qualidade para que ela possa desenvolver aquele potencial intelectual que eu senti suas palavras. Os seres humanos com melhor educação têm outras oportunidades.


Nota. Esta história é parte da série intercultural "Ome, Pütchi, Poraû | Mulher, Palavra, Resistência" realizada pelo coletivo jornalístico Agenda Propia.

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