
Ivan Abreu
Please type and press enter
Txopai foi o primeiro Pataxó a aparecer na Terra. Hoje, os indígenas de Minas Gerais lutam para preservar sua origem
Ivan Abreu
"A prova do papel e caneta é muito importante”, diz a cacica Ãngohó Pataxó, ao receber das mãos de uma assistente parlamentar a cópia impressa da ata de reunião.
A cena acontece no final de 2022, em uma apertada sala de reuniões do gabinete da Deputada Estadual Beatriz Cerqueira, na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, em Belo Horizonte, na região sudeste do Brasil. Sentados entorno a uma mesa que ocupa boa parte da salinha, estão presentes, além da assistente parlamentar e da cacica Ãngohó, outros seis representantes dos povos Pataxó e Pataxó Hã-hã-hãe.
A cacica Ãngohó entrega acta a membro da aldeia Katurãma durante reunião no gabinete de deputado na Assembleia Legislativa de Minas Gerais
Ivan Abreu
Segundo Ãngohó, foi o cacique Mário Juruna*, desde os anos 80 sempre com um gravadorzinho a tiracolo, quem ensinou esta lição. “Por isto que tomaram tudo da gente”, afirma, colocando ênfase na palavra tudo.
E o “tudo” a que ela se refere são as terras, as matas e os rios abundantes em todo território americano que eram lar e sustento dos povos originários.
*Cacique Juruna, o exemplo citado por Ãngohó Pataxó, foi Deputado Federal pelo estado do Rio de Janeiro e uma das primeiras lideranças indígenas a entrarem para o legislativo no Brasil. Hoje, o movimento de luta dos povos originários vem ganhando um novo e necessário impulso a partir da atuação de ativistas como a Cacica Ãngohó.
Retrato da cacica Ãngohó em frente à sua tenda temporária feita de lona plástica na aldeia Katurãma
Ivan Abreu
Ãngohó, cujo nome de batismo é Célia, nasceu em São José do Jacurí, no interior de Minas Gerais, fora do território indígena. Filha de pai branco e mãe indígena, mas cujos tataravós, avós e a própria mãe, preservaram a cultura Pataxó dentro da família. “Minha mãe sempre nos ensinou, e não deixou morrer a ancestralidade da cultura do povo dela”, conta.
Em 2010, quando trabalhava no restaurante de um shopping de produtos chineses no centro da capital Belo Horizonte, ela conheceu o grupo Pataxó que viria a se tornar a sua nova família.
“Eles chegaram a Belo Horizonte para trabalhar e vender artesanato. Eu fiz um encontro ancestral novamente com meu povo”, relembra Ãngohó. Através desse contato com a família do seu futuro esposo, Hayó Pataxó, ela começou a fazer o seu próprio resgate, o da sua descendência e do seu povo.
Retrato de Hayó Pataxó nas matas da aldeia Katurãma. Hayó significa "sol" na língua Patxohã
Ivan Abreu
Há diversos grupos Pataxó espalhados pelo Brasil, a maior parte se encontra entre os estados de Minas Gerais e da Bahia, no leste do país. A diáspora ocorre há séculos, porém teve um dos capítulos mais sangrentos em 1951, no sul do território baiano. Durante uma brutal chacina que ficou conhecida como o “Fogo de 51”, policiais militares da região atacaram a aldeia de Barra Velha, sob a falsa alegação de que membros rebelados da tribo estavam cometendo crimes e furtando armazéns na região. Os Pataxó de Barra Velha tiveram suas casas incendiadas, foram espancados, chicoteados, torturados e mortos.
A chacina de Barra Velha marca o início de uma invasão continuada das terras Pataxó com métodos cada vez mais violentos. Nas décadas seguintes, muitos abandonariam posses e território para salvar suas vidas.
Uma tragédia, por certo, que marca a situação destas populações desde a invasão de seus territórios pelos europeus. A região da aldeia de Barra Velha, seu solo original, é exatamente onde se situa o Monte Pascoal, uma pequena montanha de 536 metros, que é tida como o primeiro pedaço de terra avistado pelas naus portuguesas no ano de 1500.
A cacica Ãngohó e outros membros da comunidade Pataxó na Praça da Liberdade durante um comício de campanha do então candidato presidencial do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, em Belo Horizonte, em 9 de outubro de 2022
Ivan Abreu
Cacica Ãngohó reflete sobre a trajetória dos Pataxó, percorrendo e rememorando este caminho cheio de brutalidades. E acrescenta outros eventos que a marcaram pessoalmente. Assassinatos de conhecidos por demarcação de terra, mortes de adolescentes, a terrível história de Galdino, primo de seu marido, morto queimado enquanto dormia em um ponto de ônibus em Brasilia no ano de 1997. Inclusive, ela própria e seus familiares sofreram diversas ameaças e foram vítimas de violência nos últimos anos. “Nós mesmos estamos dentro de um programa de proteção do Estado”, relata. “Eu e o meu esposo também. Estamos sendo ameaçados por sermos defensores de direitos humanos de uma comunidade, de um povo e de uma ancestralidade. Por continuar a história da (aldeia) Naô-Xohã”, completa.
A aldeia Naô-Xohã foi onde o seu grupo conseguiu, finalmente, se estabelecer em junho 2017, às margens do Rio Paraopeba, nas cercanias da cidade mineradora de Brumadinho, depois de um périplo por várias bairros urbanos de Belo Horizonte e cidades vizinhas, sempre acossados pelo preconceito. “A gente sofreu muito preconceito”, rememora. “A gente vestia os nossos trajes típicos para poder ir trabalhar na feira de artesanatos e eles não nos deixavam entrar no ônibus. Certa vez, colocaram a gente para fora, soltaram um grupo com mulheres e crianças no meio da estrada.”
Vista do rio Paraopeba, São Joaquim de Bicas, Minas Gerais
Ivan Abreu
Uma vez fora da cidade, instalados na aldeia Naô-Xohã, os Pataxó conseguiram construir um local para poder vivenciar sua cultura de maneira plena. Cacica Ãngohó conta que o grupo plantou uma horta que chegou a ter cerca de 35 espécies de plantas medicinais, além da edificação de um espaço de oficinas para fazer seus artesanatos e a criar animais.
“Nós começamos a não precisar ir para a cidade para sobreviver. A gente ainda tinha Txopai, né? O nosso Deus, onde a gente podia manter viva a nossa ancestralidade com o rio,” diz.
Muitas culturas indígenas entendem os rios, os vales e montes que os cercam como entidades vivas. Neste caso, o Rio Paraopeba era o elemento mais sagrado que os habitantes da aldeia Naô-Xohã tinham acesso. Porque a água é, de fato, a matéria mais importante para o povo Pataxó. Segundo sua mitologia, Txopai foi o primeiro Pataxó a aparecer na Terra, nascido de uma gota de chuva.
“A gente tinha 25 espécies de peixe catalogados. Ali a gente tinha uma geladeira natural naquele local, onde os meninos iam pescar de manhã,” conta Angoho enquanto descreve os nomes de vários peixes, tartarugas e plantas.
Indígenas dançam e cantam em cerimônia durante as comemorações do Dia dos Povos Indígenas, na Aldeia Katurãma, em São Joaquim de Bicas, Minas Gerais
Ivan Abreu
Cacica Ãngohó conta que os Pataxó também precisam do rio para poder fazer seus rituais a Txopai, o Deus da água. E que estes rituais se repetem a cada sábado. Ela enfatiza que é necessário ter água boa no lugar onde o seu povo se instala, além de uma terra preparada, cujo solo precisa estar sadio e com muitas árvores.
“Ali era o lugar certinho,” diz. “Se você for lá você vai ficar impressionado. A gente pôs o acampamento a 15 metros do Rio Paraopeba. Com um mês, começaram a chegar os outros parentes que a gente foi buscando (para viver na aldeia).”
Ela conta que deixaram a aldeia preparada para a vinda dos anciões, muitos vivendo longe da natureza, em bairros urbanos de baixa renda. Gente que peregrina desde a época do “Fogo de 51”.
No dia 25 de Janeiro de 2019, cacica Ãngohó Pataxó viu sua vida e a dos membros de sua antiga aldeia mudar violentamente. Uma represa de rejeitos de mineração da empresa Vale S.A. rompeu em Brumadinho, despejando sobre um vasto território uma lama tóxica, matando 270 pessoas. Mais de 60 mil moradores de 26 cidades e povoados foram atingidos. O rio Paraopeba, cujas águas eram vitais para a vida na aldeia Naô-Xohã, foi contaminado.
“Hoje, nem se a gente quiser, a gente vai conseguir pôr no Rio Paraopeba (alguma espécie de peixe) por causa da contaminação do metal que está ali dentro. Um crime ambiental muito grande com a fauna e a flora. A gente ficou com a fauna e a flora mortas e você não vê uma fala de reparação para essas espécies,” alerta.
Vista aérea do rio Paraopeba, atravessado pela linha férrea administrada pela mineradora Vale S.A., em São Joaquim de Bicas, Minas Gerais
Ivan Abreu
As consequências do rompimento da barragem de rejeitos de mineração em Brumadinho vão além das questões materiais, como explica Ãngohó. “O nosso Txopai, que era o nosso sagrado, ficou morto ali dentro daquele território. Aquela comunidade, a partir daquele dia, começou a ser uma comunidade adoecida. Tanto fisicamente, como espiritualmente.”
Apesar da firmeza com que projeta suas palavras, Cacica Ãngohó fica visivelmente emocionada ao falar do rio contaminado. Uma cena que ela descreve como sendo a imagem de uma trilha banhada de sangue, um rastro vermelho, tingido pela contaminação da lama tóxica, e o sinal evidente de um Txopai adoecido. Um cenário de destruição que, segundo ela, nunca sairá de sua cabeça.
Além das águas do Rio Paraopeba, a contaminação do desastre da barragem de Brumadinho também atingiu os solos da região. Os Pataxós viram como plantas e animais começaram a sofrer com deformações e a adoecer. Segundo Ãngohó, uma espécie de ferrugem começou a surgir nas verduras e legumes de suas hortas, enquanto alguns filhotes passaram a nascer com malformação.
Seus próprios corpos sentiram o impacto da lama tóxica. “As crianças, os adultos, todo mundo começou a dar cada ferida horrorosa no corpo. Saiam caroços. Então a gente viu que não tinha como ficar com o nosso grupo ali,” relembra Ãngohó.
Como consequência, a comunidade de 60 famílias, aproximadamente 200 pessoas, viu-se obrigada a se dividir novamente. Mais uma vez, os Pataxó do grupo da Cacica Ãngohó sofreram com acosso e violência nos bairros urbanos onde tentaram se abrigar durante este período.
Sem nenhuma resposta ou apoio dos órgãos governamentais, empreenderam eles mesmos a busca por um novo terreno na região, com a idéia de pressionar as autoridades e a companhia mineradora Vale a apressar o processo de indenização.
Após terem alguns pedidos de territórios negados, os Pataxó se depararam com uma área de Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPM1) no município de São Joaquim de Bicas, Minas Gerais, a alguns quilômetros da antiga aldeia onde viviam perto do rio.
A comunidade Pataxó Aldeia Katurãma fica na divisa com um bairro da cidade
Ivan Abreu
O que chamou a atenção deles, no entanto, não foi a exuberância do verde da mata ou riachos de água corrente. Mas, um terreno sendo devastado, com vários focos de incêndio e sinais de corte ilegal de árvores. Ãngohó e seu marido, Hayó Pataxó, fizeram uma vídeo-denúncia, perguntando pelos responsáveis daquela RPPM e pelo por quê da falta de fiscalização das autoridades. Descobriram que a área de 36 hectares, coberta por vegetação nativa remanescente de Mata Atlântica, pertencia a um grupo de japoneses da Associação de Cultura Nipo-Brasileira e que estava sendo, na verdade, invadida por grileiros.
A denúncia ajudou a colocar luz sobre os crimes ambientais que estavam sendo cometidos, além de criar um canal de diálogo com os proprietários da reserva. Depois de uma série de reuniões e negociações entre os Pataxó e a associação, proprietária do terreno desde 1981, chegaram a um acordo onde 70% do valor do terreno seria doado aos Pataxó e o restante estaria condicionado ao recebimento da indenização da Vale.
Placa indicando as informações legais relacionadas à área da RPPN (Reserva Particular do Patrimônio Natural) onde está localizada a aldeia Katurãma, em São Joaquim de Bicas, Minas Gerais
Ivan Abreu
A escritura foi entregue pelos antigos donos do terreno aos Pataxó no dia 9 de junho de 2021. Somente em setembro do ano seguinte, foram emitidos os documentos que concediam a posse definitiva da terra à recém criada Associação Indígena do Povo Katurãma (AIKA).
A partir daquele momento, foi fundada a Aldeia Katurãma e os Pataxó e Pataxó Hã Hã Hãe, em teoria, passaram a contar com a proteção da Polícia Federal e da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
Porém, de acordo com Pablo Matos Camargo, historiador e indigenista da Funai, a aldeia não foi oficializada como ‘Terra Indígena’ ou ‘Reserva Indígena’. “É como se fosse uma terra particular com a presença dos indígenas,” explica. “Há conversas para que eles passem a terra para a União. Então, (a Aldeia Katurãma) se transformaria em uma ‘Terra Indígena’.”
Em termos técnicos, a demarcação do território oficialmente reconhecido, promulgada pela Constituição Federal de 1988, é uma segurança para que os povos originários brasileiros possam garantir a proteção do patrimônio histórico e cultural representado pela sua cultura e modo de vida.
A cacica Ãngohó Pataxó dança rodeada de outros membros do povo Pataxó durante as comemorações do Dia dos Povos Indígenas, na aldeia Katurãma, São Joaquim de Bicas, Minas Gerais
Ivan Abreu
Mas os problemas deixados pelos invasores do terreno onde hoje se encontra a aldeia persistem. Estudos pedidos pelos indígenas indicam que a nascente de água está parcialmente contaminada e imprópria para o consumo. “É a proximidade com as fossas residenciais, cisternas e o lixo trazido pelas enxurradas,” conta Hayó. O ativista exerce junto com sua companheira Ãngohó o papel de liderança Pataxó na região. Durante uma visita ao local da nascente de água, ele descreve orgulhoso as espécies de plantas que os membros da aldeia plantaram nos últimos meses para proteger a nascente. “Aqui temos bambu amarelo, palmeiras, angico, jatobás, emboaba,” enumera.
Mostra também restos de cabanas abandonadas pelos poceiros e grilheiros dentro da mata da reserva. Ainda há visíveis marcas de fogo na base de algumas árvores. Hayó explica que os poceiros tentaram incendiar a mata, o que teria colocado em risco a legalização da demarcação do território como reserva legal indígena, que precisa contar com preservação total.
Placa às margens do rio Paraopeba com mensagens proibindo pescar, nadar, beber ou usar a água para agricultura, em São Joaquim de Bicas, Minas Gerais, Brasil
Ivan Abreu
Além disso, segundo um laudo do Ministério Público Federal de Minas Gerais (MPF MG), de abril deste ano, seguem ocorrendo tentativas de invasões e acosso aos Pataxó por parte de grileiros.
"Os invasores ainda estão lá, dentro da área (pertencente à Aldeia Katurãma). Uma pequena parte saiu, mas outros novos surgiram. Inclusive, é possível que a quantidade de invasões tenha aumentado", afirma Beatriz Accioly, antropóloga do MPF de Minas Gerais.
A tensão atinge o cotidiano dos habitantes da Aldeia Katurãma. A área da reserva está rodeada por construções que parecem estrangular o verde das árvores. Os bairros mais afastados do centro da cidade avançam sem qualquer planejamento urbano sobre o verde, com casas cinzentas e ruas sem pavimento ou organização.
“Temos que colocar energia, água, melhorar tudo para termos condição boa na reserva,” diz Hayó alçando o olhar para o alto, em direção às copas das árvores.
Água, terra, a proteção a suas culturas e modos de vida. Esta é a luta dos Pataxó e de todo e cada um dos povos originários do território brasileiro desde sempre.
Hayó Pataxó monitora a área onde a comunidade tenta preservar a única fonte de água dentro do perímetro de sua reserva. A fonte de água está sendo contaminada por esgoto dos bairros vizinhos
Ivan Abreu
A cacica Ãngohó faz questão de lembrar a importância de manter estes temas vivos em cada conversa. “Nós não temos o nosso direito de fala respeitado. Muitos parentes hoje vivem em contextos urbanos e têm negado o seu direito de ser indígena. Quando você nasce indígena está no sangue. Está na sua característica de luta, de reconhecimento de uma comunidade de um povo.”, reforça.
Segundo a cacica, é esse o argumento que dá a ela forças para lutar para que as crianças e os jovens de sua comunidade não vivam os mesmos dramas que ela e os seus antepassados atravessaram.
As últimas eleições brasileiras, em outubro de 2022, parecem confirmar a renovação desta luta. Um número recorde de políticos de origem indígena, embora os números ainda sejam pequenos, foram eleitos para diversos postos, em câmaras legislativas federais e estaduais. Foram ao todo nove políticos indígenas eleitos, sendo cinco deputados federais, dois estaduais e dois senadores. Além disso, houve um aumento de 900% na quantidade de candidatos que se autodeclaram como indígenas eleitos para cargos legislativos.
Ãngohó é uma líder orgulhosa de sua missão. Fala com altivez e com um discurso afiado e direto, como quando esteve na Assembleia legislativa de Minas Gerais, na capital do estado, em dezembro, pleiteando melhores condições para a sua comunidade.
Ela tem a profunda consciência de que a sobrevivência da cultura dos povos indígenas passa pelas experiências acumuladas e transmitidas pelos seus antepassados, mas também pela necessidade de se conectar com o momento histórico em que vivemos e com as causas da atualidade. O que faz de Ãngohó Pataxó uma liderança feminina, indígena e ligada umbilicalmente à causa ambiental. A luta que ela representa, portanto, é uma das mais importantes para o futuro, não só de seu povo, mas de uma idéia de Brasil e de mundo.
Detalhes de pés, cocar e instrumentos musicais sobre a grama, antes de evento esportivo durante as comemorações do Dia dos Povos Indígenas, na Aldeia Katurãma, em São Joaquim de Bicas, Minas Gerais
Ivan Abreu
Receba o nosso e-mail semanal
Comentários
Aceitamos comentários, por favor consulte ás orientações para comentários de openDemocracy