
Presidente da Venezuela. Nicolas Maduro. Xinhua SIPA USA/PA Images. Todos os direitos reservados.
Desde o início dos anos 90, as elites políticas as Américas acolheram com entusiasmo os valores e práticas democráticas. Ao nível internacional, este entusiasmo traduziu-se em compromissos coletivos para defender a democracia perante os seus inimigos através de instrumentos específicos, acrescentados ao marco legal das organizações regionais existentes. A tendência continuou com a mudança de século à medida que novas organizações – como a União das Nações Sul-Americanas (Unasur) e as Comunidade de Estados Latino-americanos e das Caraíbas (CELAC) – se foram comprometendo também a ajudar e, se necessário, sancionar, aqueles países nos que infrinja a democracia.
Os intelectuais e políticos liberais interpretaram rapidamente (talvez demasiado) estes desenvolvimentos regionais como provas da consolidação da democracia no hemisfério ocidental. Contudo, vale a pena pararmo-nos para examinar com atenção este fenómeno, especialmente numa fase como a atual, na que parece que as democracias antiliberais e os regimes autoritários vieram para ficar durante um tempo ao lado das democracias propriamente ditas, tanto nas Américas como na Europa.
Que democracia se deve proteger?
Não existe uma definição única e não discutida de democracia. Como mostrámos – com Closa e Pablo Castillo – num estudo publicado pela Fundação EU-LAC, o que se entende por democracia varia muito entre organizações regionais e dentro delas. Negociar entre 28 governos (na União Europeia) ou 35 (na Organização dos Estados Americanos), o significado da palavra democracia é, ou, que tipo de ações constituem uma “infração democrática”, pode ser uma tarefa hercúlea. A solução que encontraram a maioria das organizações regionais na América Latina, mas também na Europa, foi manter uma definição “imprecisa”, tornando desta forma o compromisso coletivo com a democracia num contrato incompleto.
Há, obviamente, diferentes graus de imprecisão, e há, também diferentes formas de ser imprecisos. Nas Américas, a Carta Democrática Interamericana da OEA, por exemplo, destaca por ser um instrumento relativamente preciso que define, em vários artigos, o que significa a democracia. Durante a redação da Carta produziu-se um conflito entre duas conceptualizações: enquanto a maioria das delegações defendiam o conceito de democracia representativa, a delegação venezuelana esforçou-se por introduzir a noção da democracia participativa. Prevaleceu a primeira, mas num sentido amplo, cobrindo elementos da segunda, como a participação política, assim como outros elementos socialmente progressista, como a igualdade de género.
Os instrumentos da Comunidade Andina (CAN), do Sistema de Integração Centro-americana (SICA) e da Comunidade das Caraíbas (CARICOM) são muito menos precisos. O Protocolo Adicional da CAN não define a democracia, ainda que isto não o impeça de estabelecer sanções contra os comportamentos não democráticos. O SICA e CARICOM sofrem também eles de imprecisão. Não por ser demasiado parcos (como a CAN), mas, pelo contrário, por ser demasiado ambicioso: estas organizações listam uma grande variedade de valores e princípios, sem ligá-los explicitamente nem a uma definição de democracia nem a procedimentos explícitos quando se violam esses princípios.
A imprecisão pode ser considerada como uma imperfeição institucional. De facto, é-o em vários sentidos. Contudo, também é funcional para aqueles que devem fazer cumprir esses instrumentos – concretamente, os governos. Recordemos que, ao contrário dos sistemas de proteção dos direitos humanos, nos que existem instituições judicias autónomas (por exemplo, a Corte Interamericana dos Direitos Humanos), as normas de proteção da democracia interpretam-nas e aplicam-nas os próprios governos. Os governos têm, em consequência, uma ampla margem de manobra e de discricionariedade quando as regras são imprecisas, e podem decidir quando e como aplicá-las. Além disso, a falta de regras precisas favorece que na mesa das negociações se apresentem considerações de poder e ideológicas, como quando os argentinos e brasileiros decidiram fazer cumprir as normas de proteção democrática e suspender o Paraguai do Mercosur, ao mesmo tempo que aprovavam a adesão da Venezuela, até então bloqueada pelo parlamento paraguaio.
Quem é a vitima, quem é o infrator
A democracia tem que ser defendida, mas, ante quem? E quem devemos proteger? Quem “encarna” a democracia? Estas são questões mais fáceis de resolver num sistema de proteção dos direitos humanos, uma vez que existe uma lista dos direitos que devem proteger-se e porque esses direitos estão encarnados em indivíduos que podem recorrer aos órgãos judicias com jurisdição sobre os direitos humanos, nacionais ou internacionais.
Tudo isto se torna bastante mais confuso quando o que se trata é de defender a democracia, não só porque a definição é imprecisa, senão também porque não está claro quem é a vitima duma violação da democracia e a quem deve recorrer a vitima, seja quem seja. Se analisarmos o desenho dos instrumentos para a proteção da democracia na América Latina e os casos em que se aplicam, dar-nos-emos conta de que existe uma forte inclinação a conceber como vitimas os governos em exercício. Isto explica-se em grande parte pelo facto de que os estados latino-americanos são, todos eles, regimes presidenciais e, também, pela larga história de golpes de estado na região. Sempre que os presidentes tenham sido eleitos democraticamente, qualquer tentativa de destitui-los através de meios inconstitucionais considera-se automaticamente uma violação democrática. Os chefes de estado e de governo (o poder executivo) são, pois, as vitimas naturais. Mas, e então que acontece com os outros ramos do Estado e as organizações da sociedade civil?
A inclinação a favor do governo em exercício faz com que a maioria das organizações regionais das Américas tendam a converter-se em “mecanismos de proteção governamental em vez de mecanismos de proteção da democracia”. Dito isto, a história recente da região mostra como esta inclinação pode revestir diversas formas, dependendo do contexto político. Podemos identificar três momentos diferentes desde princípios de 1990, quando se sancionaram os primeiros compromissos regionais para proteger a democracia: o liberal, os pós-liberal e o momento em que nos encontramos, ainda recente para ser batizado.
O momento liberal (1988-2001)
Neste primeiro período, a maioria dos países saiam de regimes militares (América do Sul) ou duma guerra civil (América Central). A transição democrática sustentou-se num amplo movimento internacional pró-democracia apoiado pelos Estados Unidos e pela União Europeia, ambos comprometidos em promover a democracia liberal e as economias de mercados nos seus respetivos jardins: a América Latina e a Europa de Leste. A democracia era “o espírito da época” e os Governos latino-americanos mostravam exultantes as suas credenciais democráticas em todos os fóruns possíveis, incluindo as organizações regionais, que se converteram em clubes das democracias.
No momento liberal, determinar quem era a vitima e quem era o infrator era uma tarefa relativamente fácil. Os governos latino-americanos acreditavam que as vitimas das recaídas autoritárias eram as novas democracias instáveis, como o Haiti, o Paraguai e a Bolívia. Os governos de democracias, também elas jovens, como a Argentina, o Brasil e o Chile consideravam que os seus países eram terras nas que a democracia era a “única alternativa” e apoiavam em consequência o compromisso coletivo de proteger a democracias nos seus países irmãos. Os infratores eram, obviamente, os militares ainda politicamente ativos nessas democracias instáveis e o instrumento coletivo para proteger os regimes democráticos adaptou como forma cláusulas desenhadas para dissuadir os generais sem escrúpulos de levar a cabo golpes de estado. O Protocolo de Washington (OEA), o Protocolo de Ushuaia (Mercosur) e o Tratado Marco de Segurança Democrática (SICA), estos últimos com um componente de segurança mais forte, são exemplos paradigmáticos de instrumentos liberais de proteção da democracia.
Podemos argumentar que o momento liberal terminou com a adoção da Carta Democrática Interamericana (OEA), aprovada à pressa naquele fatídico 11 de setembro de 2001. De facto, a Carta inspirava-se num tipo diferente de “infrator”, como Alberto Fujimori e o seu “autogolpe”, e representa por tanto uma evolução em relação às cláusulas democráticas anteriores.
O momento pós-liberal (2002-2013)
Na década que se seguiu à adoção da Carta Democrática – podemos chamá-la “pós-neoliberal”, termo que devemos a José António Sanahuja – uma vez que se caracterizou por ter governos ideologicamente em desacordo com os dos anos noventa, chegaram ao poder governos de tendência esquerdistas com programas políticos orientados a reformar de forma mais ou menos radical as estruturas sociais e económicas estabelecidas, alimentando assim a oposição política. Enquanto que em alguns casos a oposição foi canalizada através de canais institucionais, noutros adotou a forma dos golpes tradicionais (por exemplo, na Venezuela em 2002, nas Honduras em 2009, no Equador em 2010). Noutros casos, contudo, a oposição política adotou um carácter híbrido, sem respeitar plenamente os canais institucionais nem cumprir o padrão do golpe de estado tradicional, para o qual se tinham desenhado as cláusulas democráticas (por exemplo, no Nicarágua em 2004, na Bolívia em 2005 e 2008, no Equador em 2005, no Paraguai em 2012).
Os governos de esquerda defenderam que se tinham convertido na nova vitima das ações antidemocráticas, especialmente duma nova e subtil ameaça: os chamados “golpes institucionais ou brandos” articulados pelas forças reacionárias opostas às mudanças sociais. E ditos governos podiam argumentá-lo facilmente, uma vez que tinham exemplos claríssimos. Exigiram e desenharam cláusulas democráticas mais adequadas e melhor adaptadas ao novo cenário. O Protocolo de Georgetown (Unasur, 2010) e o Protocolo de Montevideo-Ushuaia II (Mercosur, 2011) foram desenhados para dar resposta não só a golpes flagrantes, mas também à “ameaça de violação da ordem democrática” – categoria na que cabiam perfeitamente os “golpes institucionais”. O importante dessas novas cláusulas democráticas é que incluíam uma lista de sanções que incluíam não só a suspensão como membros da organização, mas também severas sanções económicas e diplomáticas contra aqueles estados nos que se produzisse um golpe de estado – duro ou brando.
O momento antiliberal (desde 2013)
A morte do presidente venezolano Hugo Chávez e a polémica eleição de Nicolas Maduro como seu sucessor abriram uma nova fase na curta história da proteção coletiva da democracia na América Latina. Como aconteceu a finais dos anos noventa com os governos neoliberais, a crise económica (e a má gestão) corroeram o apoio político aos lideres esquerdistas. Em consequência, estão a chegar ao poder governos de centro-direita, já seja a través de eleições (como Maurício Macri na Argentina) ou não (como Michel Temer, depois do impeachment de Dilma Rousseff no Brasil).
Por que este período é diferente dos anteriores? Não só pela discutível mudança de posição ideológica de vários governos chave na região, mas porque as perguntas de quem é a vitima e quem é o infrator da democracia se estão a responder de forma diferente. Obviamente, alguns governos esquerdistas ainda podem afirmar que estão a ser as vitimas de “golpes brandos” – como Nicolas Maduro, que o tem vindo a repetir durante o seu mandato. Contudo, a crise venezuelana evidenciou que a sociedade civil também pode ser vitima do comportamento não democrático dum governo eleito e recorrer a organizações regionais para reclamar proteção democrática.
Como argumentava de forma convincente Andrés Malamud, a lista de provas do ataque de autoritarismo de Nicolas Maduro é longa: encerramento de meios de comunicação, violação dos direitos civis e políticos, aprisionamento de adversários políticos, etc. Durante mais de dois anos depois da eleição de Maduro, as organizações regionais (especialmente a OEA e a Unasur) ficaram paralisadas pela sua incapacidade para determinar quem é a vitima: o governo eleito ameaçado pela orquestração dum golpe brando? Ou (parte da) sociedade civil, ameaçada por um governo cada vez mais autoritário? A OEA foi rejeitada rapidamente pelo próprio governo de Maduro, enquanto que a Unasur languidescia num esgotado processo de mediação no que muitos autores nacionais e internacionais a acusavam de ficar do lado dos governos. Esta acusação reflete a forte inclinação estrutural já mencionada das organizações regionais latino-americanas para proteger os governos em exercício.
Esta inclinação foi posta em dúvida, contudo, quando em junho de 2016 o secretário-geral da OEA, Luís Almagro, ex-ministro de Relações Exteriores do Uruguai, deu inicio aos procedimentos para ativar a cláusula democrática da organização contra o governo venezuelano. Almagro começou a sua intervenção com um chamamento extraordinário aos representantes nacionais: “a OEA deve saber hoje se a sua Carta Democrática é um instrumento forte para defender os princípios da democracia, ou se se deve dar por terminada e arquivada. Vocês têm a palavra”. Ainda que a cláusula, de momento, não se tenha aplicado na Venezuela, esta intervenção tem um significado especial uma vez que, sem lesar a sua inclinação pró-governo, pelo menos revelou as intenções que o rodeiam.
Proteger a democracia em “tempos antiliberais”
Qual será no futuro o papel das organizações regionais como defensoras da democracia na América Latina? Podem-se sugerir cenários. Pode dizer-se que os governos latino-americanos não estão atados a nenhuma trajetória preestabelecida na direção da consolidação democrática, como alguns estudiosos liberais sugeriram há décadas. O compromisso coletivo com a democracia adotou a forma de um contrato sumamente incompleto que deixou amplo espaço aos governos para acomodar futuras incertezas políticas. Hoje em dia, a incerteza vem não só da região, mas também – e talvez sobretudo – de fora. Enquanto que no “momento liberal” a democracia parecia ser o “espírito da época” que se difundia desde os Estados Unidos e da Europa ao resto do mundo, o discurso político atual tanto nos Estados Unidos como na Europa está dominado por discussões sobre a desigualdade dos cidadãos, a exclusão das minorias e o retorno dos racismos e do nativismo como discursos legítimos na esfera pública.
O cenário otimista supõe um processo de cumprimento progressivo do contrato democrático através de instrumentos que definam com precisão e ampliem o conceito democrático aceitando, por exemplo, que não só os governos em exercício, mas também os demos podem ser vitimas de violações da democracia cometidas por governos democraticamente eleitos. Este cenário otimista implicaria, entre outras coisas atribuir um papel mais relevante aos órgãos supre estatais da organização chegada a hora de decidir quando e como aplicar esses mecanismos. Durante os momentos liberal e pós-liberal, os governos elaboraram um consenso básico sobre o compromisso democrático. Este consenso será difícil de manter nos próximos anos, ao tornar-se mais heterógeno o espetro ideológico dos governos da região e ao estarem, pelo que tudo indica, os Estados Unidos menos interessados em respeitar os valores liberais. No cenário otimista. Contudo, esta falta de consenso básico poderia dar pé a adotar um plano mais preciso – por exemplo, maior precisão nas definições e nas regras e talvez também mais delegação de competências dos governos na direção de entidades mais independentes. Obviamente, isto só é possível se houver uma liderança regional disposta a colmatar a laguna que, como mínimo durante as ultimas administrações (incluindo a atual), os Estados Unidos não parecem dispostos a exercer.
O cenário pessimista parte das mesmas premissas, mas extrai conclusões diferentes. A falta de consenso e a aparição de casos de alteração política que não podem classificar-se facilmente como golpes de estados, restringindo o uso das organizações regionais e os seus instrumentos de proteção da democracia por parte dos governos. O facto de que, por primeira vez desde que a OEA adotou um compromisso democrático, um governo dos Estados Unidos possa adotar políticas contrárias à própria definição de democracia da organização, revela os níveis de incerteza aos que têm que fazer frente os governos da região e organizações regionais. E a incerteza, juntamente com a falta de liderança alternativa por parte dum México demasiado atado no Norte e dum Brasil com demasiados conflitos internos, provavelmente gerará paralisia – em cujo caso a advertência do Secretário-Geral Almagro poderia tornar-se realidade: as cláusulas democráticas arquivar-se-ão… ao menos durante um tempo.
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