
Desigualdade e exclusão: a verdadeira pandemia nos assentamentos informais na América Latina
A vida pós-pandemia deve considerar, sem exceção, as mudanças de padrões de comportamento e relacionamento que perpetuaram a desigualdade.

É evidente que a pandemia de Covid-19 teve um forte impacto em todos os habitantes do planeta, dado o nível inimaginável de interconexão que alcançamos como espécie, independentemente das medidas adotadas pelos governos para prevenir contágios hoje. Hoje, menos de 10 países, principalmente ilhas, não registram nenhum caso de coronavírus.
Essa realidade permitiu o posicionamento de uma mensagem astuta em termos de saúde pública que, com algumas diferenças, foi divulgada pelas autoridades competentes e pela maioria das vozes interessadas, com praticamente o mesmo significado: "o coronavírus afeta a todos". Embora esse mantra não seja apenas útil, mas também necessário para promover e fortalecer as medidas de segurança e os sacrifícios que isso significa para a população, vale a pena avaliar como esses efeitos alteram o cotidiano de diversos segmentos da população.
Essa visão diferencial nos permite afirmar um fato que não poderia ser mais evidente: a pandemia não afeta a todos por igual. Mas é mais interessante e menos evidente indagar sobre o motivo dos referidos efeitos diferenciados. Como se sabe, construímos uma sociedade eficientemente interconectada, graças a uma troca constante de bens e serviços, motivada por um consumo agressivo e uma multiplicação de lucros, o que significa que 82% da riqueza está concentrada em nas mãos de 1% da população (ONG OXFAM, 2018).
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Essa extrema desigualdade se traduz em um mundo habitado principalmente por pessoas que, estando ou não entre as 1,3 bilhão que vivem abaixo da linha da pobreza (PNUD, 2018), lutam constantemente pela sobrevivência dentro de um sistema exclusivo. Para essas pessoas, o acesso à saúde, educação, moradia e outros direitos nada mais são do que conceitos estrangeiros repetidos de forma insensível e implacável por agências e organizações de cooperação que dificilmente tentam apoiá-las no atendimento de suas necessidades básicas. A esse quadro brutal de desigualdade deve-se acrescentar agora a Covid-19.
Desse ponto de vista, fica claro que a pandemia de coronavírus, e em particular as medidas de isolamento e o impacto econômico delas, não são de modo algum a causa da grave situação em que se encontram as milhões de pessoas em condição de pobreza, mas são principalmente um efeito de "padrões de comportamento e relacionamento que perpetuaram a desigualdade" (NGO TECHO, 2020).
Esses padrões de comportamento são a razão de uma emergência constante e silenciosa à qual mais de 104 milhões de pessoas estão sujeitas apenas na América Latina: assentamentos informais. "Esses territórios são caracterizados pela ausência de lares salubres e de serviços básicos, além de acesso limitado e até inexistente a sistemas de saúde preventivos e emergenciais" (ONG TECHO, 2020).
Essa visão diferencial nos permite afirmar um fato que não poderia ser mais evidente: a pandemia não afeta a todos por igual
Embora a pandemia tenha afetado todos os setores da sociedade, dadas as condições anteriores de desigualdade, os habitantes dos assentamentos estão pagando o preço mais alto. Mesmo antes do surgimento da Covid-19, esses vastos setores se encontravam em estado de emergência. De maneira sistemática e perversa, lhes são negados o acesso mínimo à cidade, da qual fazem parte e, dessa forma, enfrentam barreiras sociais e físicas históricas ao acesso a seus direitos, situação que muitos relatam à ONG TECHO:
“Antes, já estávamos passando por uma situação difícil. Agora com o confinamento e a falta de trabalho, a situação é mais desesperadora a cada dia, principalmente nas últimas semanas. Não estamos ganhando a cesta básica da família e estamos aguardamos o fim da quarentena para poder sair a trabalhar, porque a saúde vem antes. Estamos com medo e desespero", (Viviana Tacuri, líder do assentamento Las delicias, Argentina)
“Famílias que moram de aluguel estão se amontoando nas casas de familiares para não ter que arcar com o aluguel. Mesmo na pior das hipóteses, quando não cabem porque são muitos, criam um quarto precário que não atende às condições básicas”, (Cristian Valverde, líder do assentamento Nilo Soruco, Bolívia)
"Para algumas famílias, a fome representa um risco maior do que o vírus", (Josney Marques de Oliveira, líder do assentamento de Vila Nova, Brasil).

Não se trata apenas dos aspectos mais óbvios. É claro que, sem moradia decente, todo o discurso das medidas de autocuidado vai por água abaixo. É, primeiramente, uma situação de desinteresse estrutural, já que essas populações geralmente nem sequer fazem parte da própria cidade ou de seus planos de planejamento e governo. Dessa forma, não estão sujeitas às políticas públicas dos governos locais e muito menos à ajuda humanitária e processos de contenção de transmissão do vírus.
“Além de ter o mesmo problema de falta de água, luz, ruas precárias, em que nem ambulâncias nem viaturas policiais entram, com a chegada do coronavírus estamos mais isolados ainda, com menos médicos, menos policiais, ninguém entra no bairro. Tudo está ainda mais abandonado. Você não tem ninguém a quem recorrer... ou eles não vão responder" (Elena Gonzaga, líder do assentamento de Luján, Argentina).

Essa situação explica o papel crítico que os líderes comunitários desempenham no cuidado e no sustento dos habitantes de assentamentos informais. Como reação imediata às medidas de isolamento, os líderes comunitários devem assumir quase todo o peso e responsabilidades dos estados ausentes, implementando diferentes “atividades relacionadas à disseminação de informações, desinfecção, limpeza, distribuição de mercadorias e suprimentos, procedimentos governamentais, entre outros ”(ONG TECHO, 2020).
Como consequência, resta apenas enfatizar a afirmação do relatório da ONG TECHO (2020) que afirma que “a recuperação deve ir além do ponto de partida” e das desigualdades indicadas, uma vez que o mundo pós-Covid continuará enfrentando uma pandemia mais séria e mais cara em termos de vida humana: a pobreza continuará a assombrar os habitantes de assentamentos informais e, em geral, as pessoas em situação de pobreza. Como aponta Gladys González, é necessário um novo olhar, uma abordagem diferenciada da situação dos assentamentos e a consolidação dos direitos de seus habitantes: “é preciso começar a mudar a forma de enxergar as pessoas mais carentes, enxergar como os organizam e acomodam e parar de nos ignorar. Eu gostaria que nos olhassem com olhos diferentes” (Gladys González, líder Rincón del Lago, Colômbia).
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