
Sim, existe uma dieta que promove a justiça social
É perfeitamente possível comer, tendo a igualdade e sustentabilidade como prioridades.

Bilhões de dólares são gastos para ensinar as pessoas a se alimentar de forma saudável. Mas mesmo se você seguir a dieta ecológica do EAT-Lancet e seu prato estiver cheio de comida nutrívora sem glúten, hortaliças, items ovo-pescetarianos (peixes selvagens!), ainda pode estar faltando alguma coisa. A produção de alimentos industrializados e as péssimas condições da saúde do planeta levantam a questão: como podemos adicionar clima e justiça social à nossa dieta?
Este ano, os membros do Comitê Consultivo de Diretrizes Dietéticas se reunirão para atualizar suas recomendações. Mas esse esforço para ajudar a guiar os americanos em direção a uma dieta “balanceada” também é produto do lobby das indústrias de laticínios, grãos e carne, que há muito são acusadas de buscar lucro em detrimento da saúde.
Considerando o impacto do racismo ambiental e o número de desertos alimentares nos Estados Unidos, está claro que a produção e o consumo de alimentos não são apenas decisões pessoais. É sobre política e sistemas que determinam quem tem opções de alimentos saudáveis disponíveis e quem não tem. As diretrizes existentes não apenas ignoram as questões climáticas e dependem de práticas intensivas de agricultura industrial, mas também atribuem a culpa pela saúde corporal precária e pela qualidade de vida com base em “escolhas” que, para muitas pessoas, simplesmente não existem.
Qual seria a sensação de poder comer tendo a justiça – social, racial, econômica e climática – em mente?
Honre os tratados tribais e os sistemas alimentares
Antes de falarmos sobre comida, temos que falar sobre a terra em que nossos alimentos são cultivados. Em contraste com a priorização colonial americana de extrair recursos do solo, rios e oceanos, os sistemas alimentares indígenas são construídos em uma relação com a terra. Mas quando os povos nativos foram forçados a deixar suas terras – junto com seus solos e experiência local – eles foram privados de dietas saudáveis que desenvolveram ao longo das gerações.
Genocídio, assimilação forçada, criação de reservas indígenas e a perpetuação de políticas anti-indígenas privaram os povos indígenas de dois tipos de riqueza: a capacidade de realmente autogovernar e administrar suas terras e a capacidade de construir capital, o que permitiria aos indivíduos fazer escolhas sobre como ter um estilo de vida saudável.
“O que percebemos, e o que pretendo fazer, é promover o enriquecimento das dietas por meio de nossos alimentos tradicionais, porque sabemos que comer uma refeição tradicional por semana, já muda o sangue”, diz Valerie Segrest, uma membro da tribo Muckleshoot e diretora do Native American Agriculture Fund (fundo agrícola nativo-americano). De acordo com um relatório da ONU de 2019, os povos indígenas administram 80% da biodiversidade mundial – espécies vegetais e animais essenciais para a saúde climática.
Mas o governo dos EUA tem um histórico péssimo de violação de tratados feitos com governos nativos. E ao substituir os sistemas alimentares nativos por versões industrializadas, Segrest diz que os EUA prejudicam a terra e a saúde pública simultaneamente. Líderes nativos, cientistas e funcionários de saúde pública dizem que doenças crônicas, incluindo diabetes, não existiam nas comunidades nativas até meados do século XX. Agora, os nativos têm a maior taxa de diabetes entre qualquer grupo racial e étnico nos EUA.
Segrest trabalhou com todas as tribos no estado de Washington para ensinar a importância dos ingredientes tradicionais e diz que os alimentos nativos são o remédio para esta crise de saúde: "O que é bom para um indígena é bom para todos."
Aumente o conhecimento e as práticas anti-racistas
Ayanna Jones é uma agricultora, educadora e organizadora comunitária negra em Pittsburgh, na Pensilvânia. Ela vive em uma comunidade de maioria negra, que enfrenta uma série de práticas racistas institucionalizadas. “A justiça alimentar é muito importante para nós”, diz Jones, detalhando como as opções alimentares de sua comunidade são limitadas aos supermercados locais que muitas vezes vendem produtos de baixa qualidade ou estragados.
Em quase todos os cantos do país, é mais barato comprar um litro de refrigerante do que um brócolis
Os mercados que oferecem opções mais saudáveis e de maior qualidade estão intencionalmente localizados nas comunidades brancas ricas, onde os clientes são considerados mais interessados e capazes de pagar por elas. Aqueles que podem viajar para esses bairros para fazer compras acabam tirando dinheiro de suas próprias comunidades.
Com isso em mente, Jones diz que começou a pensar em como seria cultivar sua própria comida para se tornar autossuficiente. Ela queria encontrar uma maneira de mostrar aos jovens da comunidade que seus corpos eram dignos de uma comida que não está estragada nem carregada de açúcar e sal.
Em 2015, Jones começou a horta comunitária de Sankofa Village para fornecer educação contra o apartheid alimentar e programas comunitários, incluindo jardinagem para idosos e acampamentos de verão para jovens. Aqui, ela ensina os jovens a produzir sua própria comida e a perceber como seus corpos se sentem quando comem alimentos que são bons para eles.
“Eu também ofereço a eles alimento mental”, diz Jones. “Eles estão descobrindo os mitos que aprenderam sobre a alimentação e a justiça alimentar”. Mas mesmo quando se aprende que cereais com açúcar não sustentam uma criança durante o dia escolar, se os pais não recebem um salário que lhes permite comprar opções mais saudáveis, é difícil transformar conhecimento em ação. Ainda assim, Jones acredita que “informação é poder” – que saber é melhor do que não saber. “Estou crescendo para educar”, diz ela.
Mude a política alimentar comprando localmente
Em quase todos os cantos do país, é mais barato comprar um litro de refrigerante do que um brócolis; um estudo de 2013 mostrou que uma dieta “saudável” custa US$ 550 a mais por pessoa por ano do que uma “não saudável”. Para uma família de quatro pessoas, isso representa um gasto extra de US$ 2,2 mil a cada ano. "O sistema é criado para alimentar os pobres de forma mais pobre", diz Andy Dunham, um agricultor de quinta geração que dirige uma operação de vegetais orgânicos em Grinnell, em Iowa. “O único motivo pelo qual o refrigerante é tão barato [é porque] o governo dos Estados Unidos subsidia as safras de cana-de-açúcar e milho.” Bilhões de dólares federais são desembolsados anualmente para o cultivo de produtos Big-Ag, ou grande agricultura: milho, soja, trigo, algodão e arroz, e para indústrias como carne bovina e suína grande, em vez de pequenos agricultores familiares.
“Não acho que as pessoas tenham ideia de quanto gastamos em políticas que degradam o meio ambiente”, diz Dunham. Para combater a produção industrial de hoje, ele pede o estabelecimento de sistemas agrícolas ecologicamente diversos e um sistema de pastagem gerenciado que permita que o solo absorva carbono. E capacitando as pessoas para saber a diferença. Se os consumidores e eleitores entenderem as implicações ambientais do que estão comprando e quais empresas estão apoiando com seu consumo, a política alimentar a nível federal seria vista de forma diferente. “Ter uma sociedade alfabetizada em alimentos permite que as políticas sejam sensatas”, diz ele.
Em termos de como isso se traduz no prato, Dunham diz que comer de forma justa é ter uma dieta baseada na sua região. Isso nem sempre significa escolher plantas em vez de carne; significa levar em consideração onde sua comida foi cultivada e quais tipos de energia, produtos químicos e transporte foram usados nesse processo. Talvez seja necessário mudar a abordagem de planejamento de cardápio para refletir a estação, em vez de depender que alguém produza seu alimento do outro lado do mundo. Esta abordagem apoia os agricultores locais e mantém a pegada de carbono de seus alimentos relativamente baixa.
Apoie coletivos administrados pela comunidade
Todas as formas de desigualdades estruturais se tornam visíveis no sistema alimentar industrializado – da produção ao consumo, diz Victor Brazelton, um ativista comunitário e educador da Planting Justice, uma organização de base com sede em Oakland, na Califórnia, que trabalha para cultivar a soberania alimentar, a justiça econômica e cura da comunidade por meio do empoderamento individual e comunitário. A Planting Justice contrata organizadores, fazendeiros e ativistas que estiveram encarcerados. Parte de seu trabalho é combater a colonização atual e o deslocamento da comunidade, construindo acesso a alimentos orgânicos por meio de hortas comunitárias e educando as crianças sobre a aparência e o sabor dos alimentos saudáveis. “Comida é remédio”, diz Brazelton. As práticas agrícolas sustentáveis curam as pessoas e o planeta.
Temos que fazer o trabalho árduo de passar de um modelo transacional, colonial e capitalista de alimentação para um modelo relacional de alimentação e cuidados com o outro
"A comunidade começa onde quer que você esteja", acrescenta Brazelton, o que inclui o reconhecimento e a colaboração com as pessoas que originalmente administraram a terra. Na Califórnia, o governo estadual forçou as tribos de Ohlone a abandonar suas terras através da violência, mas apesar disso, elas ainda vivem e praticam a cultura Ohlone hoje no que agora é chamado de Oakland. A Planting Justice desenvolveu uma parceria com o Sogorea Te' Land Trust, que trabalha para recuperar as terras roubadas dos Ohlone. A Planting Justice está atualmente trabalhando para pagar uma parcela de terra de 2 acres, e quando o fizer, ela entregará a escritura ao Land Trust.
"O que é realmente importante é que as pessoas tenham agência sobre seus alimentos", diz Molly Scalise da FRESHFARM, uma organização de justiça alimentar com sede em D.C. FRESHFARM traz alimentos saudáveis diretamente às comunidades através de feiras livres, programas nas escolas e programas de coleta, que distribuem os produtos não vendidos a abrigos. A organização também administra um farm-share (programa de compartilhamento de fazenda) através de escolas locais, onde os pais podem comprar produtos a uma taxa subsidiada usando auxílio-alimentação. Scalise diz que este é necessariamente um esforço de colaboração com os residentes de D.C. para garantir que não seja "invasivo ou intrusivo". Ela diz que as soluções surgem do trabalho com vizinhos e comunidades.
O objetivo é tornar as opções mais acessíveis aos consumidores, a fim de impactar a saúde da comunidade e garantir que as fazendas locais permaneçam lucrativas.
Desenvolver sistemas alimentares orientados para o relacionamento
Como podemos começar a falar de justiça quando aqueles mais impactados têm menos acesso a ferramentas e sistemas de tomada de decisão? Essa questão está no cerne do trabalho de Jamie Harvie. Harvie é o diretor executivo do Institute for a Sustainable Future (instituto para um futuro sustentável), que trabalha para construir soluções para a saúde ecológica através de advocacy e pesquisa. Uma dieta alimentar justa, diz ele, deve mitigar o impacto climático, reduzir a pobreza e garantir que os processos de tomada de decisão incluam os mais impactados.
Em última instância, diz Harvie, o que é bom para o clima também será bom para as pessoas. Mas os sistemas brancos, ocidentais e coloniais nos condicionaram a acreditar que os sistemas alimentares e a saúde comunitária são sistemas separados.
A justiça alimentar deve devolver os sistemas às comunidades, explica Harvie. Organizações como a Oregon Rural Action (ação rural do Oregon) enfrentam a injustiça alimentar a partir de uma perspectiva agrícola e política, trabalhando para mudar as leis estaduais que permitem aos agricultores vender diretamente aos consumidores, bem como colaborando com o Departamento de Energia do Estado para fornecer empréstimos a juros baixos às escolas, atualizar seus sistemas de energia e construir acesso aos mercados locais de agricultores. Os sistemas alimentares locais que são de propriedade e operação comunitária permitem a criação de riqueza comunitária. Isso significa que os alimentos não são apenas consumidos na mesma região onde são produzidos, mas os benefícios financeiros e de saúde pública também elevam a comunidade.
Vincular comida e justiça climática não é um exercício intelectual, observa Harvie. O trabalho de justiça, sob qualquer forma, é criar e manter relações entre si, incluindo as relações com a Terra e nossos sistemas alimentares. Temos que fazer o trabalho árduo de passar de um modelo transacional, colonial e capitalista de alimentação para um modelo relacional de alimentação e cuidados com o outro.
Este artigo foi originalmente publicado na YES! Magazine. Leia o original aqui.
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