
O primeiro-ministro interino de Espanha, Mariano Rajoy, observa como o líder de Podemos, Pablo Iglesias, passa à sua frente durante a segunda ronda do debate de investidura no Parlamento espanhol, Madrid. 2 de março de 2016. AP Photo / Francisco Seco.
A incerteza política paira em Espanha desde as inconsequentes eleições de dezembro, que implicaram a composição dum parlamento fragmentado sem uma maioria viável. O partido conservador no governo, o Partido Popular (PP), obteve 123 assentos no Parlamento dum total de 350 deputados; Ciudadanos (CS-Liberais), 40; o Partido Socialista Obrero Espanhol (PSOE), 90; Podemos y os seus aliados regionais na Catalunha, Valencia e na Galiza (esquerda radical), 69; “outros” (incluindo os conservadores nacionalistas vascos e os partidos catalães pró-independência), 28 assentos. Perante a impossibilidade dos principais partidos em chegar a um acordo – um pacto entre pelo menos três deles era necessário para estabelecer uma maioria estável -, o país encaminha-se para as urnas por segunda vez em seis meses.
Durante o período de negociações, abordaram-se diversas fórmulas: um governo tecnocrático dirigido por independentes; uma coligação conservadora (PP + Cs) com a abstenção dos socialistas, uma Grande Coligação (Grosse Koalition) entre o PP e o PSOE; uma coligação de centro-esquerda (PSOE + Cs) com a abstenção do PP ou de Podemos (a única fórmula que foi realmente discutida); ou uma coligação de esquerdas (POSE + Podemos) com a abstenção de Cs ou com o apoio dos nacionalistas bascos e catalães.
A última fórmula supõe uma reminiscência do que aconteceu em Portugal há seis meses, quando o atual primeiro-ministro, António Costa, conseguiu formar uma coligação de esquerda que removeu do poder os conservadores que, apesar de ganhar as eleições, não alcançaram uma maioria absoluta no parlamento (107 assentos dum total de 230). Ainda que tenham conseguido formar um governo minoritário, um voto de não confiança converteu o mesmo no governo mais curto da história de Portugal (que durou somente 12 dias).
Este resultado não passou desapercebido em Espanha. O líder do partido socialista espanhol, Pedro Sanchez, aproveitou a oportunidade e aterrou em Lisboa para reunir-se com António Costa. Rapidamente, o denominado “Pacto à Portuguesa” converteu-se numa possibilidade para afastar Mariano Rajoy, o líder do PP, do poder. Mas acabou por não ser mais que uma ilusão: basicamente porque os socialistas (90) e a esquerda radical (69) não alcançavam entre os dois uma maioria, pelo que a possibilidade de um pacto à portuguesa acabou por ser descartada. Contudo, ao começar de novo a campanha eleitoral, a possibilidade de uma coligação de esquerda à portuguesa volta a estar sobre a mesa.
Somando deputados
A situação política em Espanha partilha várias características com Portugal. Os conservadores ganharam as eleições em ambos países (uma coligação no caso de Portugal), mas não alcançaram a maioria absoluta. Ainda assim, de forma inesperada para alguns e previsível para outros, tanto a coligação PSD/CDS em Portugal como o seu homólogo em Espanha, o PP, não conseguiram capitalizar o facto de terem obtido um maior número de votos.
A segunda força mais votada em ambos países foram os socialistas. Em Portugal, o Partido Socialista (PS) obteve 32.4% dos votos, enquanto que em Espanha o PSOE obteve 22%, o seu pior resultado em décadas, mas suficiente para colocar-se como segunda força no parlamento. O PS obteve 86 deputados (de 230), enquanto que o PSOE obteve somente 90 deputados (de 350).
Obviamente, nem o PS nem o PSOE podiam formar governos por si mesmos. Contudo, em Portugal, uma coligação de esquerda precisava somente de três partidos: o Partido Socialista (86 deputados), a esquerda radical (Bloco de Esquerda, 19 deputados) e os comunistas (PCP, 17 deputados) – um claro partido sénior e dois juniores.
Pelo contrário, em Espanha, para que se formasse uma coligação de esquerda era necessária uma aliança entre pelo menos cinco forças políticas: dois sócios maioritários, o Partido Socialista (90 deputados), a esquerda radical (Podemos, 69 deputados), além de pelo menos três partidos minoritários: os ex-comunistas (IU, 2 deputados), dois partidos nacionalistas pro-independência catalães (Democratas da Catalunha, com 8 deputados, e a Esquerda Republicana, com 9 deputados), aos que poderíamos juntar, se necessário, o Partido Nacionalista Vasco (PNV, 6 deputados). Chegar a um acordo entre cinco partidos políticos diferentes é um pesadelo, mas se ainda por cima dois deles disputam a hegemonia da esquerda e outros dois são pro-independência, então a missão torna-se impossível.
Excesso de otimismo
Ainda que Portugal tenha conseguido evitar o estancamento político que atravessa Espanha desde dezembro, o cenário está longe de ser idílico. Não existe um pacto global de governo, e não existe uma verdadeira coligação da esquerda da qual vangloriar-se. Na realidade, alcançaram-se uma série de acordos bilaterais entre o PS e os seus sócios minoritários – que não foram convidados a entrar no governo. Isto supõe uma frágil aliança, devido sobretudo às substanciais diferenças programáticas que existem entre os socialistas e os comunistas, que exigem – algo pouco realista – abandonar o Euro e a NATO, e entre os socialistas e o Bloco de Esquerda, que defende uma dificilmente assumível restruturação da dívida.
Os comunistas continuarão a apoiar o Governo de António Costa, sempre e quando obtenham medidas concretas que reforcem a sua base eleitoral e as suas relações com os sindicatos. Os objetivos do Bloco de Esquerda são algo mais difusos, mas precisa demonstrar à sua circunscrição através de resultados concretos que encarna a nova esquerda, capaz de obrigar os socialistas a prestar contas e demonstrar o seu compromisso para com as políticas sociais.
De facto, a coligação portuguesa oscila entre a moderação e o radicalismo. Existem divergências e contradições em quase todos os temas, incluindo os direitos humanos. Angola é um exemplo disto mesmo, uma vez que os comunistas se uniram aos conservadores para bloquear uma declaração apresentada pelo Bloco de Esquerda cujo objetivo era condenar as violações dos direitos humanos na antiga colónia portuguesa.
Apesar de unir a esquerda por primeira vez em 40 anos, e depois de seis meses no cargo, António Costa enfrentasse a uma instabilidade permanente. Chegou a um acordo com os seus sócios sobre uma programa anti-austeridade, mas os resultados continuam a ser parcos. Por um lado, o aumento do salário mínimo, o compromisso de reverter os cortes nas pensões e a congelação dos cortes nos serviços públicos são sem nenhuma dúvida vitorias contra a política de austeridade. Mas, por outra parte, o ciclo da austeridade está longe de terminar. E as divergências mantem-se em relação a tudo o resto. Apesar de que o caminho na direção do restabelecimento dos direitos civis e serviços sociais poder ter começado, a situação económica é frágil, e as ameaças de Bruxelas em relação ao déficit podem obrigar o governo a aplicar um aumento da carga fiscal, algo que, somado a uma taxa de desemprego por cima dos 10% poderia determinar o fim do governo. António Costa foi particularmente habilidoso chegada a hora de negociar apoios parlamentários, mas excessivamente otimista em relação ao resultado económico das suas políticas.

António Costa, primeiro-ministro de Portugal, fala com o Ministro das Finanças, Mário Centeno. Foto AP / Armando Franca.
Uma solução (im) possível?
A possibilidade de trasladar um “pacto à portuguesa” à realidade espanhola depois das eleições de junho é uma possibilidade remota. Em Espanha, Podemos e os socialistas estão a meio duma batalha para converter-se na principal alternativa aos conservadores. Podemos poderia ganhar a batalha, sobretudo depois de ter chegado a um acordo com os ex-comunistas espanhóis (Esquerda Unida, IU), para formar uma coligação eleitoral, denominada Unidos Podemos (UP). Esperasse que a coligação some os 923.000 votos da IU aos 5.19 milhões de votos de Podemos, alcançando desta forma uns potenciais 6.11 milhões de votos, muito por cima dos 5.53 milhões obtidos pelo PSOE em dezembro.
De acordo com todas as sondagens disponíveis no momento de publicação, o cálculo é correto e o mais provável é que Unidos Podemos termine à frente do PSOE. Mas longe de ser uma boa notícia para a possibilidade duma futura negociação, dito cenário aumenta as dificuldades da mesma: o PSOE tratará de defender a sua posição histórica como partido hegemónico de centro-esquerda em Espanha, e seguramente recusará converter-se num comparsa de Podemos. Somente no improvável caso de que os socialistas terminassem à frente de UP, e que os dois partidos somassem uma maioria absoluta sem necessidade de apoio de qualquer dos partidos independentistas, seria então possível falar de uma coligação de esquerda.
As sondagens a dia de hoje confirmam que Unidos Podemos alcançará o seu objetivo estratégico e superará o PSOE, mas que ficará longe da maioria absoluta. Em tal cenário, é difícil imaginar que o PSOE aceite desempenhar um papel menor numa coligação com UP, especialmente por três motivos: a ideologia, a economia e o modelo territorial.
Uma vez que governar exige, inevitavelmente, um exercício de realismo e moderação, um executivo liderado por Unidos Podemos viraria ao centro e ocuparia a centralidade da esquerda, que é o espaço político “natural” dos socialistas. A linguagem socialdemocrata recentemente usada pelos líderes de Podemos sustem-se em que os socialistas abandonaram as suas políticas socialdemocratas e cederam à perspectiva neoliberal das políticas de austeridade, tidas como a única forma de superar a crise tanto pelo establishment económico espanhol como por Bruxelas. A nova esquerda, argumentam, é verdadeiramente socialdemocrata, ao contrário dos velhos socialdemocratas do PSOE, que traíram os seus valores. Perder a batalha pela sua identificação socialdemocrata seria letal para o objetivo do PSOE de manter a sua hegemonia no espaço de centro-esquerda em Espanha.
Outro fator a ter em conta é a economia. Sem qualquer tipo de duvida, UP e o PSOE poderiam chegar a um acordo sobre a necessidade de um maior investimento em educação, saúde, proteção social e inovação tecnológica. Mas isto supõe, inevitavelmente, um aumento do gasto público, e, de acordo com a normativa europeia, o limite do défice situa-se em 3%. Os cálculos de UP baseiam-se nos rendimentos adicionais provenientes da “luta contra a fraude fiscal” e do aumento dos impostos sobre os rendimentos mais elevados. O programa de UP prediz que déficit público chegará a 4.3% em 2016, se, como os mesmos propõe, se aumenta o gasto público em 60.000 milhões até 2019, alcançando o limite de 3% somente no final de 2019. Mas, como assistimos no caso da Grécia, a renegociação dos limites do déficit com as autoridades da União Europeia exige não só argumento sólidos, apoiados numa forte maioria política, mas também a melhor das sortes britânica.
Unidos Podemos supõe que os efeitos expansivos das suas políticas (sem ter em conta o controlo do déficit como uma prioridade com o objetivo de melhorar as políticas sociais e aumentar o investimento público) implicaria um crescimento anual do PIB de 3.5% até 2019 (o atual 2.5% mais 1% devido aos efeitos expansivos das suas políticas).
Mas supor que Espanha crescerá a um ritmo de 3.5% quando as previsões do FMI preveem um crescimento de 2.6% em 2016 e de 2.3% em 2017 (a Comissão Europeia prevê, de forma mais otimista, um 2.6% em 2016 e de 2.5% em 2017, como também o faz o OCDE) pode não passar duma ilusão. Sobretudo se tivermos em conta que a Comissão Europeia exige a Espanha uma redução do déficit público por debaixo do 3% do seu PIB através de novos cortes orçamentais e ajustes adicionais, no valor de 8.000 milhões de euros durante os próximos dois anos. Compatibilizar um corte orçamental de 8000 milhões nos próximos dois anos com um aumento de 60.000 milhões em investimento público não será fácil. Os socialistas moderados (e responsáveis) dificilmente aceitariam tal cenário.
Se um acordo entre UP e o PSOE é já de por si complicado tendo em conta o programa económico de ambos, a situação piora chegada a hora de debater como fazer frente às tensões territoriais atuais, especialmente em relação a um governo catalão e o seu desejo de alcançar a independência quanto antes. A decisão de Podemos de converter um referendo não vinculante sobre a independência da Catalunha numa condição sine qua non para estabelecer uma coligação com os socialistas foi um dos principais obstáculos durante as últimas negociações, diminuindo as possibilidades de alcançar qualquer tipo de “pacto à portuguesa” durante uma nova ronda de negociações. O PSOE defende uma reforma constitucional num sentido federal, e entende como um suicídio permitir que qualquer comunidade autônoma realize um referendo de secessão (eufemisticamente denominado como “direito a decidir), como propõe o programa de Podemos.
Em resumo, perder a centralidade do espaço de centro-esquerda, enfrentar-se a Bruxelas em relação ao aumento do déficit e aceitar um potencial colapso do estado espanhol é certamente um preço que o PSOE não quererá pagar. Um “pacto à portuguesa” só será possível se o partido minoritário da coligação for Unidos Podemos, se se alcançar um acordo em relação às políticas económicas ortodoxas e se não forem necessários os votos dos partidos a favor da independência para formar uma maioria – um cenário pouco provável a dia de hoje.
Leia mais!
Receba o nosso e-mail semanal
Comentários
Aceitamos comentários, por favor consulte ás orientações para comentários de openDemocracy