
O mundo está à beira do precipício. Estamos próximos a vários pontos de inflexão irreversíveis para o clima e a biodiversidade, que, se alcançados, aumentariam o número de crises enfrentadas e acelerariam a extinção da vida neste planeta. Apesar da pandemia e dos apelos que a acompanham por uma nova ordem social e econômica, a retórica política não corresponde à realidade.
Na Amazônia, o desmatamento aumentou 30% desde a eleição de Jair Bolsonaro em 2018 e mais 34% no ano passado, quando os incêndios aumentaram em razão da expansão agrícola.
A Rede Europeia de Ação Climática mostrou que a Europa é cúmplice do problema. A União Europeia é destino de um quinto das exportações de carne bovina e soja do Brasil, o que contribui para a destruição da Amazônia. Na verdade, a cada 3 minutos, a UE importa um campo de futebol desmatado. E o acordo comercial UE-Mercosul só vai piorar as coisas.
Após 20 anos de negociações, a Comissão Europeia concluiu recentemente o acordo que, se ratificado, removeria as barreiras fiscais e aumentaria as cotas de 90% dos bens comercializados entre a UE e o Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai). A Europa permitirá acesso a seu mercado de serviços financeiros, bebidas, automóveis e peças, empresas de energia, entre outros, e, por sua vez, ganhará acesso ao mercado dos países do Mercosul de produtos que incluem os principais motores do desmatamento: carne bovina, soja e etanol extraído da cana-de-açúcar para biocombustível.
A Amazônia é um armazém vital de carbono, diminuindo drasticamente o ritmo do aquecimento global. Mas o desmatamento está aproximando-se de um limiar perigoso, que encolheria a exuberante floresta tropical em uma savana árida, o que liberaria bilhões de toneladas de CO2 no processo. Isso causaria grandes mudanças no clima global. Destruir este habitat natural devastaria as chuvas e a agricultura da região, causaria a perda catastrófica da biodiversidade e tiraria o sustento daqueles que dela dependem, além de aumentar a probabilidade de futuras pandemias.
A UE é destino de um quinto das exportações de carne bovina e soja do Brasil. A cada 3 minutos, a UE importa um campo de futebol desmatado
O acordo comercial UE-Mercosul vai terceirizar ainda mais a demanda europeia de carne bovina para a América do Sul, colocando mais lenha em uma floresta tropical que já está em chamas. A produção agrícola intensiva para limpar a terra já foi responsável por 80% do desmatamento global. Não há capacidade para impor padrões de sustentabilidade no acordo, e a falta de mecanismos para rastrear a origem das commodities agravará o desmatamento. Um novo relatório alertou que o desmatamento aumentará em pelo menos 25% ao ano se o acordo for aprovado, o equivalente ao território da Holanda.
O resultado de pesquisas apresentadas ao governo francês destaca o fato de que o acordo deverá ter um impacto mínimo sobre a renda real dos cidadãos europeus. Os principais benefícios se limitarão a um lucro de curto prazo para algumas grandes corporações. Isso será compensado pelos danos sociais e ambientais com um acordo comercial que prejudica diretamente o New Green Deal Europeu e não cumpre o Acordo de Paris. O acordo vai exacerbar as emissões de carbono em um momento em que a economia precisa urgentemente de descarbonização. É totalmente contraditório que a Comissão se mantenha firme no apoio a este acordo, ao mesmo tempo que propõe um aumento da meta climática da UE para 2030 (de 40% abaixo dos níveis de 1990 para pelo menos 55%).
O acordo UE-Mercosul não só terá um impacto prejudicial para o clima, uma vez que também tolera e exacerba abusos de direitos humanos por parte do governo de Bolsonaro, incluindo a violência contra comunidades indígenas, minorias e a sociedade civil. O negócio não inclui proteção às comunidades locais e, de acordo com pesquisas, negligencia marcos internacionais, como a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (UNDRIP), na redação do acordo.
Um teste para democracias
Em uma era de crescente nacionalismo e populismo, há uma necessidade de democracias vibrantes para lidar com a crise climática. A União Europeia tem uma responsabilidade histórica no combate às alterações climáticas e deve estar na vanguarda da protecção do mundo vivo. Em vez disso, este acordo comercial mina a credibilidade da UE, estabelecendo uma precedência para outros países ignorarem as suas obrigações.
Três em cada quatro europeus se opõem ao acordo se ele contribuir para o desmatamento e danos ao meio ambiente, de acordo com uma pesquisa da YouGov publicada este mês. Se a UE continuar a avançar, não terá o apoio da maioria dos seus cidadãos.
Ainda há motivos para esperança, no entanto. Este ano provou que mudanças inesperadas e sísmicas podem ocorrer. Protestos recentes têm mostrado que a oposição pública é forte, plantando sementes de dúvida na mente de Angela Merkel. Depois de se reunir com ativistas em agosto, ela expressou preocupação significativa com o acordo. Áustria, Irlanda, França, Luxemburgo, Holanda e região belga da Valônia também indicaram que se opõem ao acordo em sua forma atual. Como o pacto precisa ser aprovado por todos os 27 estados membros da UE, sua ratificação não é de forma alguma certa. Uma investigação da UE está em andamento para avaliar por que a Comissão não finalizou uma avaliação atualizada do impacto da sustentabilidade antes da conclusão do acordo. As conclusões podem ser decisivas.
O acordo UE-Mercosul também tolera e exacerba os abusos dos direitos humanos por parte do governo de Bolsonaro, incluindo a violência contra comunidades indígenas, minorias e sociedade civil
Na situação atual, a UE e o mundo estão caminhando na direção errado no que diz respeito ao Acordo de Paris. De acordo com pesquisas lideradas por Laura Kehoe, entre um quarto e dois terços de todas as emissões de gases de efeito estufa e desmatamento resultam dos fluxos de comércio global. Os acordos comerciais podem alimentar abusos de direitos humanos, perda de biodiversidade, deslocamentos e mudanças climáticas. O acordo da UE com o Mercosul seguiria esta trajetória. Mas Kehoe argumenta que este não é o único caminho. Os acordos comerciais também poderiam proporcionar desenvolvimento sustentável como um objetivo subjacente, dependendo dos compromissos com os Acordos de Paris. Mecanismos e garantias poderiam ser reforçados para proteger os defensores dos direitos humanos e do meio ambiente, com maior transparência no processo de negociação e apoio de diferentes setores da sociedade.
O respeito ao meio ambiente e aos direitos humanos, incluindo o das comunidades indígenas, deveria ser a base dos acordos e não uma adição secundária. Como segundo maior parceiro comercial do Brasil, a UE tem a responsabilidade, bem como o poder de negociação, de lidar com essas injustiças. É hora de a Europa decidir se deseja incentivar a destruição do planeta ou, em vez disso, detê-la.
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