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Fila única: por que, no Brasil, não prevaleceu o interesse público?

A proposta foi sabotada pelo lobby de prestadores privados e planos de saúde, que uniu de corporações financeiras a instituições filantrópicas.

Lena Lavinas José Sestelo Leonardo Mattos
25 Junho 2020, 8.12
Uma visão geral da unidade de terapia intensiva do Hospital Municipal Campo Gilberto Novaes em Manaus, Brasil
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Lucas Silva/DPA/PA Images

O Brasil é país campeão das desigualdades. Unir o andar de cima e o andar de baixo jamais foi prioridade ou sequer preocupação verdadeira. Nem mesmo a ameaça de vermos ceifadas dezenas de milhares de vidas pela escassez na oferta de leitos e insumos essenciais ao enfrentamento da Covid-19 favoreceu a opção pela eficiência e pela razão, argumento que sempre justifica tantas reformas. Inclusive as mais insensatas, como o teto do gasto.

O escárnio com o interesse público, estampado nas denúncias de corrupção com a construção de hospitais de campanha e compra de respiradores, é a prova irrefutável de que no Brasil é mais fácil tolerar a prática endêmica de desvio do dinheiro público do que promover mecanismos de equalização de direitos e oportunidades. Mesmo que seja para evitar inúmeras mortes desnecessárias.

Vale assinalar que no dia 21 de junho, o Brasil registra oficialmente mais de 1 milhão de infectados pela Covid-19 e supera as 50 mil mortes. Como aumentou exponencialmente nesse período o número de mortes por SARG (Síndrome Respiratória Aguda Grave), “inespecífica”– por falta de testes não é possível identificar a causa mortis –, vários consórcios médicos e centros de pesquisa estimam que o número de óbitos possa ser superior em 21 mil, alcançando, portanto, 71 mil nessa data, estimativa para muitos ainda aquém da realidade. Depois dos Estados Unidos, o Brasil é o país com os piores indicadores no enfrentamento da Covid-19.

O fato de os leitos de UTI no Brasil estarem concentrados no setor privado, com oferta de quase cinco unidades para cada um no setor público, tem contribuído para esse quadro alarmante e dramático.

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Fracassou no Brasil a proposta de fila única, de gestão compartilhada da capacidade hospitalar de forma centralizada e sob controle da esfera público, de modo a equalizar o uso de leitos de UTI. Deu certo em muitos países, como na Espanha, Irlanda, Reino Unido. Por aqui, a alternativa foi sabotada pelo lobby de prestadores privados e planos de saúde, que uniu de corporações financeiras a instituições filantrópicas.

Apesar de décadas de subfinanciamento, privatização e abandono, o SUS resiste e acolhe, mitiga o sofrimento e cura 78% dos brasileiros que não podem recorrer à medicina privada

Preferiram blindar seus espaços mercantis onde oferta, preços, qualidade e padrões assistenciais são livremente definidos, pouco regulados e largamente subsidiados pelo Estado. Preferiram manter hospitais ociosos e demandar resgates de bancos públicos, sem contrapartidas com a resposta à pandemia. Vender ou ceder serviços ociosos para o SUS foi interpretado, inclusive pela burocracia da ANS, como ameaça aos negócios, à reserva de mercado dos clientes e às margens de retorno de empresas e investidores financeiros. Sem falar na renúncia fiscal de que se beneficia o setor privado, que somente no caso dos planos de saúde alcança, em 2018, R$ 18 bilhões e mais outros R$ 13 bilhões, em favor dos hospitais filantrópicos. Esse total corresponde a 90% do recurso extraordinário que o governo federal alocou ao Ministério da Saúde para combate à pandemia, mas que até agora não foi integralmente executado.

A fila única também foi barrada com a colaboração decisiva de governantes de todos os níveis do executivo, que, com raras exceções, ignoraram a possibilidade de requisição dos leitos privados, mesmo nas situações de colapso da rede pública e longas filas de espera por um leito de UTI.

Mais uma vez, buscaram-se soluções improvisadas, que evitaram enfrentar deficiências e gargalos históricos do SUS, em nome da preservação de um padrão segregado e de alto custo na provisão de serviços de saúde. Não fosse a possibilidade de dedução ilimitada das despesas de saúde no imposto de renda, as classes médias que suam a camisa para pagar planos de saúde, com coberturas restritas e indexação anual muito acima da inflação, entenderiam que saúde não é hotelaria ou privilégio.

A crise do novo coronavirus veio expor as chagas do SUS, que apesar de décadas de subfinanciamento, privatização e abandono, resiste e acolhe, mitiga o sofrimento e cura 78% dos brasileiros que não podem recorrer à medicina privada.

O pós-pandemia sinaliza desde já ser impossível um retorno aos arranjos que debilitaram o sistema de saúde brasileiro ao longo das últimas três décadas

Mas, é chegada a hora de reconhecer que a crise sanitária não foi suficiente para que o Brasil valorizasse e priorizasse políticas de saúde universais e inclusivas. O clamor pelo fortalecimento dos sistemas públicos de saúde não ecoou tão forte por aqui. Ao contrário, vemos o bolsonarismo avançar sobre o Ministério da Saúde, agora militarizado, empenhado em sabotar o isolamento social, destruir a governança federativa do SUS, promover pílulas mágicas e maquiar óbitos. Vemos estados e municípios na lógica do cada um por si e salve-se que puder. E o setor privado indiferente a mudanças em prol do bem-estar coletivo.

Poderíamos, neste momento, estar discutindo estratégias de expansão e qualificação da provisão pública desmercantilizada em todos os níveis de atenção. Reorganizando o fortalecimento da gestão pública, da produção de insumos estratégicos, de forma integrada ao desenvolvimento científico e tecnológico, e recuperando a capacidade das universidades públicas e hospitais universitários.

Poderíamos estar buscando meios de reverter a precarização e terceirização de longa data do SUS, que nos deixou um sistema fragmentado e insuficiente, em que profissionais de saúde desvalorizados possuem múltiplos vínculos e péssimas condições de trabalho.

Poderíamos estar refletindo como eliminar subsídios regressivos, revogar o teto de gastos e ampliar o gasto público em saúde, de imediato, a um piso mínimo de 6,5% do PIB, média atual da OCDE.

Deveríamos estar questionando o espaço dos planos de saúde e o papel dos prestadores privados. De início, buscando ampliar o controle público sobre preços, custos e padrões assistenciais, de modo que oferta e demanda sejam organizadas a partir das necessidades coletivas, sem discriminação por capacidade de pagamento ou vínculo empregatício.

Como avançar, no pós-pandemia, na direção de uma reforma estrutural que contemple as necessidades de saúde expostas pela crise sanitária, diante da perspectiva de uma recessão econômica sem precedentes? Será possível retomar o projeto de um sistema de saúde único e para todos, financiado por recursos públicos? Ou, a crise econômica virá selar a ideia que o direito à saúde permanecerá condicionado pela capacidade de pagamento individual, pela dinâmica e interesses do mercado e da banca global?

O pós-pandemia sinaliza desde já ser impossível um retorno aos arranjos que debilitaram o sistema de saúde brasileiro ao longo das últimas três décadas. A política nacional de saúde se encontra em uma encruzilhada. Ainda há tempo de reconstruir um pacto social inclusivo e democrático, que permita um SUS renovado, robusto, e, de fato, universal. Implementar imediatamente a fila única é um bom começo, porque a emergência continua e pede respostas já.

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