democraciaAbierta: Opinion

Como o governo Bolsonaro tenta legalizar destruição da Amazônia e extermínio indígena

O Brasil está prestes a votar pela legalização da destruição da floresta amazônica e do extermínio dos povos indígenas

Vanessa Andreotti
30 Agosto 2021, 12.01
Un grupo de jóvenes Huni Kui preparados para sumarse a la protesta en Brasilia
|
Elvis Huni Kui

O atual governo brasileiro organizou um ataque coordenado perversamente inteligente ao nosso futuro coletivo. Todos sofreremos as consequências da tragédia que está se desenrolando no Brasil, e de nossas ações e omissões. Esse ataque envolve um conjunto de projetos de lei e um caso de repercussão a ser votado no Supremo Tribunal Federal que visam remover proteções ambientais da Amazônia e outras áreas ecologicamente sensíveis e cancelar os direitos dos povos indígenas. O plano do governo é abrir a Amazônia e outras áreas protegidas a industrias predatórias de mineração, extração de madeira e agronegócio, para atender às demandas do mercado interno e internacional.

Você pode estar se perguntando "Por que devo me importar?". Esta é uma questão legítima em um mundo de crises concorrentes, mas esta questão deve ser uma prioridade se quisermos evitar nossa própria extinção.

Se você precisa respirar, comer, beber e tem entes queridos que precisam disso, agora e no futuro, o que está acontecendo tem tudo a ver com você, com todos nós. Se perdermos a floresta amazônica, perderemos nosso futuro. Costumamos nos referir à floresta amazônica como o pulmão do planeta, porém há muito mais em jogo. Talvez entender a Amazônia como os pulmões e os rins do planeta faça mais justiça às suas principais funções na filtragem de carbono e na regulação das correntes hidráulicas. Se estendermos essa imagem, podemos dizer que nossos pulmões e rins estão sendo atacados pelos patógenos da ganância, arrogância e indiferença (que agora estão em todos nós), com implicações para todos os outros órgãos vitais do metabolismo maior do planeta.

Como uma vasta área de territórios ecologicamente sensíveis no Brasil é protegida pelos povos indígenas, o governo planeja reverter demarcações e cancelar os direitos indígenas a fim de ter acesso irrestrito a esses territórios. O governo atual vai tentar convencer a população que tanto a Amazônia quanto os recursos naturais que estão em Terras Indígenas são de "todos os brasileiros". Porém, quem vai realmente se beneficiar desses ditos recursos e dos lucros gerados nessas iniciativas são empresas brasileiras e estrangeiras que não têm nenhum interesse no bem público ou no benefício social de suas atividades. O que vamos ganhar com isso é mais exploração e destruição ecológica e o genocídio da população Indígena.

Esse ataque jurídico já foi descrito como uma tentativa de “apagar os povos indígenas do mapa do Brasil”

O caso de repercussão, o chamado "Marco Temporal", que vai ser julgado nesta quarta-feira, 1 de setembro, no STF, também é parte do ataque coordenado ao meio-ambiente e aos direitos indígenas. Se o julgamento for favorável ao governo, as Terras Indígenas demarcadas ou em processos de demarcação que não estavam fisicamente ocupadas por povos indígenas no dia 5 de Outubro de 1988 vão ser retomadas pelo governo e muitas dessas terras vão ser redistribuídas àqueles que visam o lucro da exploração predatória.

Foi somente na constituição de 1988 que os povos Indígenas foram reconhecidos oficialmente como cidadãos de direito. Até então, a maioria dos povos indígenas estava enfrentando situações terríveis de desapropriação, destituição e até escravidão e genocídio. Isso representa uma injustiça muito profunda e uma ferida aberta no coração do que chamamos de Brasil. E a longo prazo, serão os nossos descendentes que vão pagar o preço dessa empreitada que rouba o futuro de todos.

Os povos indígenas vão pagar o preço a curto prazo – com suas vidas. As empresas brasileiras e estrangeiras e os grileiros vão poder roubar e assassinar e escapar impunes se o Marco Temporal e esses projetos de lei forem aprovados. Os povos indígenas se referem ao que está acontecendo como uma "legalização de seu extermínio" e como um "massacre civilizado". Aqueles que querem prejudicar os povos indígenas estão armados, prontos e esperando um sinal do governo.

Um dos projetos de lei, o PL2633/2020, foi aprovado pela Câmara dos Deputados do Congresso brasileiro no início de agosto. Na prática, esse projeto de lei concede anistia aos grileiros que invadem territórios indígenas. O projeto contou com votos a favor de 296 legisladores e 136 contra. Diante desses números, a probabilidade é alta de que o projeto de lei será aprovado pelo Senado e depois sancionado pelo presidente, Jair Bolsonaro, cuja campanha eleitoral foi realizada nesta mesma plataforma. Outro projeto de lei muito perigoso é o PL490/2007, que teve seu texto aprovado em julho, mas que ainda está em tramitação na Câmara dos Deputados. Esse projeto de lei também se baseia na tese do Marco Temporal, cancela o direito dos povos indígenas à consulta prévia sobre o que acontece em seus territórios e o direito dos grupos indígenas de escolher o isolamento em casos de “utilidade pública”. Esse ataque coordenado aos direitos dos povos indígenas vai contra a própria constituição do Brasil e a Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas das Nações Unidas.

Os povos indígenas representam apenas 4% da população mundial, mas protegem 80% da biodiversidade mundial

Esse ataque já foi descrito como uma tentativa de “apagar os povos indígenas do mapa do Brasil” e como um “estouro de legislação que ameaça acelerar a destruição da Amazônia”. Infelizmente, esses não são exageros. A assessora especial das Nações Unidas para a Prevenção do Genocídio, Alice Wairimu Nderitu, também expressou preocupação com o que está acontecendo no Brasil. Se os povos indígenas perderem seus direitos à terra e à consulta, veremos um futuro muito sombrio se desdobrar diante de nossos olhos, especialmente na região amazônica, com consequências de alcance global.

Mais desmatamento empurrará a floresta amazônica além de um ponto crítico, após o qual ela pode se transformar de uma floresta em uma savana. A Amazônia deixará de ser um filtro de carbono vital que nos ajuda a desacelerar a mudança climática e se transformará em uma fonte de carbono perigosa que acelerará a mudança climática. Isso já está acontecendo em algumas partes da floresta.

Se o desmatamento da Amazônia continuar, veremos temperaturas extremas atípicas e incêndios florestais selvagens como os que estão acontecendo atualmente no Brasil, no Canadá, na Sibéria e no oeste dos Estados Unidos, mais inundações como as da Turquia, China e Alemanha, mais secas levando a escassez de alimentos e água como o que está acontecendo em Madagascar e na Etiópia, eventos climáticos severos mais imprevisíveis, mais espécies em extinção, mais desigualdades, mais polarização, conflitos mais violentos, mais pessoas deslocadas pela mudança climática – em todos os lugares. Isso será inevitável. Também assistiremos novamente a outra onda de genocídio de povos indígenas.

Os povos indígenas representam apenas 4% da população mundial, mas protegem 80% da biodiversidade mundial. A luta contra a crise climática – a luta contra a nossa própria extinção – depende da sobrevivência das terras sob responsabilidade dos povos indígenas e da defesa de seus direitos de se relacionar, existir e cuidar dessas terras. Sem as demarcações, sem seus direitos, eles não podem defender a terra, ou sua biodiversidade. A matemática é simples: se os povos indígenas perderem seus direitos, perderemos grande parte da biodiversidade do planeta. Se a floresta amazônica desaparecer, isso levará a um aquecimento muito mais rápido do clima e à perda de biodiversidade ainda mais severa. E se o Brasil votar nessa direção, abrirá um precedente extremamente perigoso a ser seguido por outros países. O projeto de lei HR1374 nos Estados Unidos, que criminaliza o ativismo social legítimo e sanciona o uso de força letal contra protetores de terra e água, já segue a mesma tendência.

Em julho, Bolsonaro incentivou publicamente os agricultores a usarem violência armada contra os povos indígenas e quilombolas. Um áudio que vazou e foi divulgado na mesma época mostra um coordenador da FUNAI dizendo às pessoas para abrirem fogo contra grupos indígenas isolados na Amazônia. Bolsonaro também está recrutando alguns indivíduos e grupos indígenas para defender sua causa pelo avanço econômico indígena e pela “civilização”, usando, dentre outras táticas, a conversão evangélica. Aqueles que usam esse argumento, como o próprio Bolsonaro, comparam os povos indígenas que escolhem seus caminhos tradicionais e ancestrais a animais não inteligentes que bloqueiam o “progresso” civilizacional do Brasil como nação. Muitos partidários do Bolsonaro defendem a desacreditada Doutrina da Descoberta e a tese de terra nullius, ambas usadas historicamente para justificar o genocídio.

Bolsonaro disse publicamente que era uma pena que a cavalaria brasileira não tenha sido tão eficiente quanto a dos americanos, que exterminaram seus índios. Ele está tentando terminar essa missão de extermínio de forma legal e judicial. É importante lembrar que o Bolsonaro não está sozinho, pois existem poderosas bancadas no Congresso e interesses internacionais que apoiam essa vertente desastrosa de politicas publicas. Este ataque foi planejado anos antes do mandato de Bolsonaro e poderá sobreviver à sua queda.

A APIB, a maior organização que representa os povos indígenas no Brasil, denunciou Bolsonaro ao Tribunal Penal Internacional em Haia por ecocídio e genocídio

Como os argumentos morais e humanitários parecem irrelevantes no contexto atual, em 5 de maio de 2021, uma carta aberta assinada por 40 blocos de empresas da Europa alertou o governo brasileiro sobre a possibilidade de um boicote internacional. A carta incluía cadeias de supermercados multinacionais como Tesco, Sainsbury, Asda, Aldi e Metro da Alemanha, e também empresas de investimentos. A carta solicitou aos legisladores brasileiros a reconsiderar o projeto de lei PL2633/2020 (projeto que foi aprovado na Câmara em agosto) ou enfrentar a interrupção do uso de produtos agrícolas brasileiros, como carne e soja, em suas cadeias produtivas. Um boicote internacional pode prejudicar as empresas exportadoras erradas – aquelas que cumprem as leis e regulamentos internacionais existentes. Um boicote internacional também pode causar uma reação negativa e aumentar a base de apoio de Bolsonaro para cumprir sua agenda. Por outro lado, também pode ser a única estratégia internacional que pode ser efetiva se o ecocídio e o genocídio vierem a acontecer.

Movimentos internacionais para “salvar a Amazônia” também são um assunto polêmico na América Latina. Através dos anos, todos os governos brasileiros têm rejeitado veementemente a interferência de governos estrangeiros e da sociedade civil internacional neste assunto. Bolsonaro usa o argumento contra o neocolonialismo como arma para mobilizar apoio patriótico em defesa da soberania nacional do Brasil. Ele usa a narrativa de que a Amazônia está sob ameaça de uma aquisição ou ocupação estrangeira e que é a função de “salvar a Amazônia” é dele mesmo: abrindo-a para empreendimentos econômicos que possam beneficiar os brasileiros. Este é um movimento político astuto e enganoso que, infelizmente, é relativamente eficaz para muitas pessoas no atual contexto político e econômico precário do Brasil. Por isso, é de suma importância centrar as vozes da grande maioria dos povos originários do Brasil que são diretamente prejudicados por essas politicas catastróficas.

A APIB, a maior organização que representa os povos indígenas no Brasil, denunciou Bolsonaro ao Tribunal Penal Internacional em Haia no dia 9 de agosto por ecocídio e genocídio, após duas outras denúncias semelhantes. A APIB organizou um protesto enorme em Brasília para o dia 25 de agosto com mais de 6 mil povos indígenas. A Federação do Povo Indígena Huni Kui do Acre, na Amazônia brasileira, que é parte da APIB, também fez um apelo para que o mundo testemunhe os desdobramentos do ecocídio e do genocídio por meio da campanha educacional Último Aviso. O povo Huni Kui e outros guardiões da Amazônia estão colocando suas vidas em risco para defender a maior floresta tropical do mundo e nossa chance de ter um futuro. Eles estão arriscando suas vidas por todos nós. Tanto a APIB quanto a Federação Huni Kui enfatizam que se a comunidade internacional quer ajudar a proteger a Amazônia, ela precisa defender os direitos e a vida dos povos indígenas que são sua última linha de defesa.

A federação Huni Kui do Acre afirma que para enfrentarmos nossas responsabilidades planetárias, precisaremos interromper nossa indiferença coletiva. Essa interrupção acontece quando sentimos a dor coletiva e a dor da terra, e quando criamos condições de enxergar e navegar as complexidades do que está se desenrolando no Brasil. Precisamos testemunhar o que os ideais violentos e insustentáveis ​​dominantes de “progresso e prosperidade”, baseados no hiperindividualismo e no consumo excessivo, fizeram a nós mesmos, aos outros seres e ao planeta.

A Federação Huni Kui destaca que pode ser a nossa última chance, a última chance da humanidade, de se levantar pela vida e dar apoio aos povos indígenas no Brasil e no mundo, antes de perdermos nosso futuro, antes de perdermos a Amazônia, antes de perdermos nossa chance de deter uma catástrofe climática letal. O povo Huni Kui soa um alarme para que possamos acordar para o que temos feito ao planeta, às outras espécies e uns aos outros. Se o pior acontecer, este pode, literalmente, ser seu último aviso.

We’ve got a newsletter for everyone

Whatever you’re interested in, there’s a free openDemocracy newsletter for you.

Assine nossa newsletter Acesse análises de qualidade sobre democracia, direitos humanos e inovação política na América Latina através do nosso boletim semanal Inscreva-me na newsletter

Comentários

Aceitamos comentários, por favor consulte ás orientações para comentários de openDemocracy
Audio available Bookmark Check Language Close Comments Download Facebook Link Email Newsletter Newsletter Play Print Share Twitter Youtube Search Instagram WhatsApp yourData