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A indústria do conhecimento que alimenta o mito Jair Bolsonaro

A indústria de ideias que apoia a cruzada de Bolsonaro contra a esquerda pode explicar ele ser favorito para 2022.

Beatriz Buarque
8 Março 2021, 9.00
Partidários de Jair Bolsonaro foram às ruas em junho de 2020 em apoio ao governo federal
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Szucinski/Alamy Stock Photo

Diferentes pesquisas recentes indicam que o presidente Jair Bolsonaro é o favorito na corrida presidencial de 2022. O presidente que, em vez de dizer aos cidadãos para evitarem aglomeração de modo a reduzir o contágio pelo coronavírus, nadou em meio a uma multidão no primeiro dia do ano. O presidente que, em meio a uma pandemia global, anunciou um conjunto de decretos para facilitar o acesso às armas – afinal os brasileiros têm direito à legítima defesa. A negação da gravidade da pandemia e a lei das armas podem ter arranhado a imagem de Bolsonaro entre alguns de seus eleitores, mas não tanto quanto muitos pensavam. Qual é, então, a explicação para isso?

Uma das possíveis explicações parece vir da pulsante indústria do conhecimento que surgiu em apoio à cruzada de Bolsonaro contra a esquerda. Semelhante a outros indivíduos comprometidos com uma agenda populista de direita radical, o presidente brasileiro semeia a descrença nos materiais educativos disponíveis nas universidades e escolas públicas. Segundo ele, ideias marxistas se tornaram dominantes no sistema educacional brasileiro, formando cidadãos que acreditam na igualdade de direitos, independentemente de gênero, raça e orientação sexual. Sendo ele cristão, essas ideias significam a destruição da família tradicional. Sendo ele um político de direita radical, essas ideias significam a degeneração da sociedade. Nesse sentido, o que Bolsonaro diz ou faz é justificado como um ato de patriotismo. Na verdade, é muito revelador que muitas pessoas se refiram a ele como “o mito”, colocando-o na posição de salvador, quase uma figura divina que é capaz de limpar o país de seus problemas mais urgentes, que segundo ele, estão diretamente associados às ideias progressistas disseminadas pela esquerda.

Portanto, não é surpresa que muitos outros brasileiros decidiram embarcar nesta missão patriótica para mostrar ao público que a esquerda é responsável pela corrupção, pelos altos índices de criminalidade e pela destruição da tradicional família brasileira. Nessa construção da esquerda como inimiga, uma teoria da conspiração tornou-se instrumental não só no Brasil, mas também internacionalmente. Ela é mais conhecida como marxismo cultural.

A ameaça representada pela esquerda: o marxismo cultural

Muitos pesquisadores da direita radical já estão familiarizados com esse termo na medida em que ele é frequentemente usado para culpar a esquerda pelo pensamento progressista e pela defesa dos direitos das minorias, equiparando-o à criminalidade, destruição da família tradicional e, em alguns países, à redução da população branca. O termo marxismo cultural é bem conhecido nos Estados Unidos e Europa, mas ele também ganhou espaço na América Latina e, particularmente no Brasil, a luta contra “marxistas” vem sendo legitimada por Bolsonaro.

No Brasil, em vez de começar de modo informal para depois atingir o centro de poder, o movimento da direita radical para deslegitimar anos de estudos sobre raça, igualdade e gênero veio de cima

O marxismo cultural ou a teoria da conspiração da Escola de Frankfurt já circula nos Estados Unidos há algum tempo e fez sua estreia na política brasileira no início de 2019, quando o então ministro da Educação de Bolsonaro, Abraham Weintraub, anunciou seu compromisso de remover o marxismo cultural das universidades. Se nos Estados Unidos intelectuais de esquerda que fugiram de uma Alemanha nazista foram culpados por terem introduzido no país ideias progressistas sobre raça, gênero e igualdade, no Brasil essa culpa foi em grande parte direcionada aos movimentos de esquerda que se infiltraram nas universidades. A personificação do inimigo pode ser um pouco diferente, mas, no fim das contas, ele continua o mesma: a esquerda.

Curiosamente, teorias da conspiração como o marxismo cultural tornaram-se peças-chave de fenômenos da direita populista radical contemporânea, como, por exemplo, a direita alternativa (ou alt-right). Nesse contexto, o marxismo cultural é usado para justificar a necessidade de uma nova agenda educacional – uma que seja livre da ilusão de que os indivíduos têm direitos iguais. Veja, por exemplo, como uma vívida indústria do conhecimento surgiu ao lado da direita alternative para disseminar teorias da conspiração e educar o público para questionar a educação oferecida por estabelecimentos oficiais de ensino (como universidades). No Brasil, a situação é um pouco diferente porque, em vez de começar de modo informal para depois atingir o centro de poder, o movimento da direita radical para deslegitimar anos de estudos sobre raça, igualdade e gênero com base em teorias conspiratórias veio de cima. Não é à toa que o próprio filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, fundou recentemente o Instituto Liberal-Conservador com o objetivo de defender a preservação da família, da fé, do direito à legítima defesa e soberania, entre outros valores.

A indústria do conhecimento de extrema direita em torno de Jair Bolsonaro

O Instituto Liberal-Conservador é uma das muitas instituições que surgiram no Brasil com a intenção de apoiar a missão de Bolsonaro de tomar o país da esquerda pervertida. Elas podem até não estar diretamente associadas ao presidente, uma vez que não necessariamente tenham recebido apoio financeiro ou promocional. No entanto, sua agenda está claramente alinhada com as ideias que chegaram ao poder no Brasil e agora estão sendo semeadas por meio de cursos online e instituições autônomas. Em outras palavras, essas instituições estão reproduzindo teorias da conspiração como se fossem verdades científicas.

Uma busca rápida pelo termo “marxismo cultural” no CrowdTangle no último ano resultou em 2.153 postagens em páginas públicas com mais de 100 mil curtidas

Uma busca rápida pelo termo “marxismo cultural”, escrito em português, no CrowdTangle (ferramenta desenvolvida pelo Facebook para permitir análises de conteúdo disponível na plataforma) no último ano (de 17/02/2020 a 17/02/2021 ) resultou em 2.153 postagens em páginas públicas com mais de 100 mil curtidas. Muitas delas pertencem a páginas de figuras públicas, políticos, partidos políticos e veículos de mídia alternativa não só do Brasil, mas também de Portugal, Espanha e alguns países da América Latina. Pelo menos 61 postagens foram feitas por 24 instituições e 2 grupos de estudos com um propósito claramente definido como educativo de direita radical. Tomando essas postagens como base para análise, foi possível identificar 12 instituições e 2 grupos de estudos sediados no Brasil comprometidos com uma agenda de direita radical com potencial para atingir mais de 1 milhão de pessoas. As outras 12 instituições identificadas na mesma linha educativa ideológica estão localizadas na Argentina, Colômbia, Bolívia, Venezuela, Espanha e Estados Unidos (as organizações americanas tinham um site e uma página no Facebook em espanhol com o objetivo de atrair o público latino).

Foi interessante notar que, entre as instituições latino-americanas, a luta contra o marxismo cultural adquire fortes tons religiosos pela associação do marxismo ao aborto e ao feminismo. O marxismo cultural foi frequentemente descrito como uma “seita destrutiva”, que acaba resultando no assassinato de inocentes (bebês em gestação). No Brasil, essa tendência também foi identificada em três organizações religiosas que produziram material educativo sobre a ameaça representada pelo marxismo cultural como uma tentativa de engajar os cristãos com a política a fim de defender os valores católicos, como o papel esperado de homens e mulheres em uma família.

Dentre as 24 instituições de ensino encontradas na pesquisa, duas (uma no Brasil e uma na Espanha) expressam claramente seu objetivo de conscientizar sobre a importância de comprar armas e usá-las para a prática de esportes ou defesa. O marxismo cultural nas postagens de ambas as instituições é descrito como uma estratégia disseminada pela esquerda para manipular as pessoas, para fazê-las acreditar que armar os cidadãos irá aumentar o número de assassinatos. Na postagem da instituição espanhola, a imagem de uma criança chorando porque seus pais não permitiram que ela comprasse uma arma de brinquedo é usada para ilustrar o quão perversa é a ilusão disseminada pela esquerda.

Pode até ser possível deletar contas nas redes sociais para silenciar alguns indivíduos e / ou grupos, mas, quando se trata de ideias, uma vez verbalizadas, não há como voltar atrás

Entre as organizações brasileiras identificadas durante essa breve pesquisa, foi encontrada uma ampla gama de materiais educacionais: de podcasts a artigos, livros, cursos e até eventos. O objetivo de educar o maior número de pessoas possível é especialmente evidente através da acessibilidade encontrada nos sites das instituições: muitos livros estão disponíveis para compra e download gratuito. Alguns dos temas encontrados são: marxismo cultural, educação progressista, crítica ao desarmamento, comunismo, socialismo e civilização ocidental.

A troca de ideias que é uma das marcas dos movimentos transnacionais de direita radical também foi verificada em uma das instituições brasileiras. Semelhante às organizações americanas que passaram a traduzir textos de intelectuais associados à Nova Direita francesa (Nouvelle Droite), pelo menos uma instituição brasileira foi fundada com o objetivo principal de traduzir para o português textos internacionais que oferecem uma pesperctiva radical de direita sobre eventos atuais.

Um último ponto de convergência entre muitas instituições e grupos de estudos brasileiros é a utilização de citações do autor Olavo de Carvalho, que se apresenta como um filósofo e é reconhecido como o intelectual por trás de Bolsonaro. O fenômeno Olavo de Carvalho pode ser interpretado como um sintoma da direita populista radical contemporânea. Apesar da falta de um título acadêmico que lhe conferisse o título de filósofo (que simboliza anos de dedicação a uma certa pesquisa), ele passou a ser reconhecido como um intelectual no Brasil principalmente devido a um curso online de Filosofia por ele ministrado para mostrar ao povo quem é o verdadeiro culpado pela degeneração do país: a esquerda e suas ideias marxistas. Ele é apenas um exemplo de pessoa que se beneficiou das redes sociais para divulgar ideias políticas sob a veste de conhecimento científico sem nenhum credenciamento para isso. Agora o “conhecimento científico” produzido por Olavo de Carvalho vem sendo reproduzido por dezenas de instituições em um efeito cascata que pode, em última instância, pode sim influenciar as eleições.

Pode até ser possível deletar contas nas redes sociais para silenciar alguns indivíduos e / ou grupos, mas, quando se trata de ideias, uma vez verbalizadas, não há como voltar atrás. O maior desafio apresentado pela direita populista radical hoje é justamente o fato de ela ter aprendido a disseminar ideias, principalmente se beneficiando das redes sociais. Isso pode ajudar a explicar porque, apesar de todas as críticas, o presidente Bolsonaro ainda está liderando pesquisas presidenciais. Sem muito esforço, sua cruzada ganhou adeptos. Uma potente indústria do conhecimento se formou e seu principal produto são as ideias. Ideias radicais que se opõem à igualdade de direitos e que vêm sendo reproduzidas como legítimo conhecimento.

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