democraciaAbierta: Opinion

Bolsonaro, armas de fogo e a ideologia do salve-se quem puder

Quando os governantes transferem a responsabilidade de proteger ao indivíduo, ele se vê obrigado a querer fazê-lo, e o resultado são as catástrofes evitáveis.

Manuella Libardi
19 Fevereiro 2021, 3.41
Loja de armas no centro de São Paulo, Brasil, em 21 de janeiro de 2019, depois de o presidente Jair Bolsonaro assinar os primeiros decretos que flexibilizam as regras de porte de armas.
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NurPhoto/NurPhoto/PA Images

O caos desencadeado no Texas durante a recente nevasca e a desgraça política causada no Brasil pela decisão de Jair Bolsonaro de flexibilizar o acesso a armas de fogo compartilham uma ideologia mortal: a de que cada um está por si e de que o governo não tem obrigação para com a população.

Morei no Texas por mais de uma década e minha família ainda está lá. Preocupado com a situação deles, fiquei obcecando a semana toda com a notícia de que cerca de 3 milhões de pessoas estavam sem energia e outras 12 milhões com problemas de abastecimento de água, após uma série de falhas governamentais que causaram uma catástrofe evitável no segundo estado mais rico do país mais rico do mundo. A minha obsessão foi interrompida por uma risada quando eu li o post do Facebook escrito pelo agora ex-prefeito de Colorado City, no Texas, reclamando das pessoas pedindo ajuda para sobreviver a temperaturas de menos 10ºC sem eletricidade.

“Ninguém deve nada a você ou à sua família; Nem é responsabilidade dos governos locais apoiá-los em tempos difíceis como este! Afundar ou nadar, a escolha é sua! A cidade e o condado, juntamente com os fornecedores de energia ou qualquer outro serviço, não lhe devem NADA! "

É assim que começa seu "desabafo". Infelizmente, a ideia de que os políticos são eleitos apenas para permanecer no poder sem qualquer obrigação para com os eleitores não é nenhuma novidade.

Essa realidade já é velha conhecida dos brasileiros, mas ficou escancarada nos últimos dias. Em 12 de fevereiro, Bolsonaro aprovou quatro decretos diferentes que facilitam a compra de armas de fogo e munições. Os decretos, que entram em vigor 60 dias depois de assinados, modificam quatro decretos previamente aprovados pelo próprio Bolsonaro. Os decretos são atos do presidente da República que regulam as leis e, por tanto, não requerem a aprovação do Congresso.

Com seus quatro decretos, Bolsonaro fez mudanças legais importantes a decretos anteriores, incluindo:

A primeira dama Michelle Bolsonaro e o vice-presidente Hamilton Mourão junto ao presidente brasileiro Jair Bolsonaro enquanto faz uma arminha com a mão no Palácio Planalto, em Brasília, Brasil, em março de 2020.
A primeira dama Michelle Bolsonaro e o vice-presidente Hamilton Mourão junto ao presidente brasileiro Jair Bolsonaro enquanto faz uma arminha com a mão no Palácio Planalto, em Brasília, Brasil, em março de 2020.
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Andre Borges/NurPhoto/PA Images

Aumenta de quatro para seis o limite de armas que um cidadão comum pode ter. No caso de policiais, agentes penitenciários e membros do Ministério Público e tribunais, o limite sobre para oito.

Autoriza o porte simultâneo de duas armas. A quantidade de armas que um cidadão poderia portar não estava especificada no decreto anterior.

Muda a regra de quem tem as credenciais para confirmar a aptidão psicológica de um comprador de armas. Anteriormente, o cidadão precisava passar por um teste fornecido por um psicólogo cadastrado na Polícia Federal. Agora, o teste pode ser aprovado por qualquer psicólogo cadastrado no Conselho Regional de Psicologia.

Aumenta a quantidade de munições que caçadores, atiradores e colecionadores, ou CACs, podem comprar por ano. Os CACs agora podem comprar 2 mil munições para cada arma de uso restrito, em comparação com mil no decreto anterior. Para armas de uso irrestrito, podem comprar até 5 mil munições. Os caçadores podem ultrapassar esse limite em até duas vezes e os atiradores em até cinco vezes, desde que tenham autorização do Exército.

Com essas mudanças, Bolsonaro deixa clara sua intenção de armar um segmento da população, aquele composto pelo "cidadão de bem". E os cidadãos de bem estão se armando. Como mostram dados compilados pela BBC News Brasil, os novos registros de CAC concedidos pelo Exército bateram recorde em 2019 e 2020, totalizando 178.721, valor que supera todos os registros nos dez anos anteriores (150.974 entre 2009 e 2018).

O registro de novas armas pela Polícia Federal também é sem precedentes, conforme mostram os dados da BBC News Brasil. Na primeira metade do governo Bolsonaro, 273.835 armas foram registradas, das quais 70% são de cidadãos comuns. O valor representa um aumento de 184% em relação ao período de 2017 e 2018 (96.512) e supera o total dos seis anos anteriores a Bolsonaro (265.706 de 2013 a 2018).

A estratégia de Bolsonaro é semelhante à usada há séculos por seus colegas texanos. O ex-prefeito de Colorado City, ao afirmar que “se você está sentado em casa no frio porque não tem eletricidade e está esperando que alguém venha resgatá-lo porque você é preguiçoso, isso é um resultado direto de sua educação! Só os fortes sobreviverão e os fracos morrerão”, isenta-se da responsabilidade de governar, transferindo-a para o indivíduo.

As promessas de segurança de Bolsonaro motivaram o voto de 17% dos entrevistados

Ao armar a população, Bolsonaro transfere a responsabilidade de enfrentar a eterna crise de violência no país para os indivíduos e as famílias. A mensagem é clara: “Eu lhe forneci as armas para se defender. A responsabilidade agora é sua". E em um país acostumado ao descaso das autoridades e a se defender sozinho, a mensagem é poderosa, porque transmite a ideia de que pelo menos você pode fazer algo.

Como mostra a pesquisa Datafolha de outubro de 2018, publicada entre o primeiro e o segundo turno das eleições presidenciais, as promessas de segurança de Bolsonaro motivaram o voto de 17% dos entrevistados, ficando atrás apenas do desejo de mudança no poder (30%) e da rejeição ao PT (25%).

Vivi os primeiros seis meses do governo Bolsonaro no litoral norte do estado do Rio de Janeiro – uma região turística onde a desigualdade é avassaladora e que tem visto uma forte escalada da violência na última década como resultado da pacificação das favelas da capital, que levaram traficantes para outras partes do estado – e minhas conversas com os moradores naquela época sempre terminavam no tema das armas. Para eles, ter uma arma é uma forma de combater a crescente onda de violência em um lugar antes relativamente tranquilo.

Em um Estado democrático de direito, a gestão da violência é um monopólio do Estado. Se aquele Estado abandona sua responsabilidade de proteger, transferindo-a para o cidadão, entramos em um cenário de salve-se quem puder. E neste cenário, o mais forte se salva. Não é por acaso que o senador republicano do Texas Ted Cruz fez uma viagem em família a Cancún, no México, para escapar da trágica nevasca que matou cerca de 50 de seus constituintes.

Como mostram estudos de décadas sobre os Estados Unidos, e os jornais nos relembram sempre que há um tiroteio em massa, um aumento no número de armas em circulação leva a mais violência e não o contrário. Na Região dos Lagos, por exemplo, o número de homicídios aumentou 37% entre janeiro e abril de 2020, já depois da flexibilização anterior assinada por Bolsonaro.

Minhas conversas com amigos locais sempre terminavam com “você não entende a realidade aqui”. E eles estão certos. Saber que o aumento do número de armas nas mãos da população civil aumenta a violência em geral não me prepara para sobreviver a essa violência. É por isso que a estratégia do governo Bolsonaro e de seus colegas de direita é tão perigosa. Quando transferem a responsabilidade de proteger ao indivíduo, o indivíduo se vê obrigado a querer fazê-lo, e o resultado são as catástrofes evitáveis.

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