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Democracia ameaçada: ataque contra universidades como espaço para o pensamento crítico

A democracia no Brasil está por um fio. Os ideólogos do governo não estão apenas tentando silenciar todo o pensamento crítico; eles estão empenhados em reescrever a história. Español English

Daniel Peres
Daniel Peres
2 Agosto 2019, 12.01
Manifestantes contra Bolsonaro com bandeiras de vítimas da ditadura.

As eleições do ano passado certamente foram a mais polarizada desde o fim de uma ditadura que durou mais de vinte anos, de 1964 a 1985. De 1985 a 2013, a democracia brasileira passou por um período de consolidação constante. Em 2013, no entanto, o cenário começou a mudar. Perspectivas sobre o que aconteceu abundam, muitas opostas entre si e ainda em grande parte em fluxo.

O fato, no entanto, é que um movimento ao mesmo tempo conservador e antissistema saiu vitorioso nas eleições de 2018. O Brasil elegeu um presidente que parece se orgulhar de ser anti-intelectual, que não esconde seu racismo, misoginia e homofobia, que defende abertamente a tortura e o assassinato de oponentes políticos. Bolsonaro era, até então, apenas um representante medíocre, com sete mandatos dedicados à agenda corporativa dos militares e apoiado por dinheiro das milícias cariocas. Ele ganha um palco nacional quando, no momento da votação do impeachment da presidente Dilma Rousseff, em 2016, ele dedica gritantemente seu voto a uma figura histórica da ditadura, o coronel Brilhante Ustra. Ustra foi o conhecido torturador da então ativista de esquerda Dilma Rousseff. Daquele momento em diante, Bolsonaro começou a unificar um conjunto diverso de sentimento anti-PT, anti-esquerdismo, de cristianismo conservador (asas evangélicas e ortodoxas da Igreja Católica) e partidários de um papel maior para os militares em todos os aspectos da vida politica da república.

Em 31 de março de 1999, outra figura obscura, Olavo de Carvalho, dava uma conferência no Clube Militar do Rio de Janeiro. Um autoproclamado filósofo e hoje um influenciador digital baseado em Richmond, Virgínia, Olavo finalmente encontra entre os militares a audiência que ele estava procurando. A palestra defende o golpe civil/militar de 1964 – e a ditadura brutal que então se enraizou – argumentando que se trata de uma alternativa melhor que a suposta iminente revolução comunista. Ele então pronuncia a seguinte questão: “Se chegou um único comunista vivo ao fim de 1964, ele deveu isso às Forças Armadas”.

Como “não tinham plano, não tinham ideologia”, os militares perderam a guerra cultural, sobretudo na tríade universidade, artes e imprensa

Pior ainda: os militares não apenas permitiram que muitos sobrevivessem, mas que sobrevivessem em liberdade para “fazerem o que fizeram, [e os militares] ainda criaram instrumentos, financiaram filmes comunistas, deixaram que os comunistas tomassem toda a imprensa e toda a universidade onde hoje [os comunistas] exercem cinicamente um poder de censura”. Como “não tinham plano, não tinham ideologia”, os militares perderam a guerra cultural, sobretudo na tríade universidade, artes e imprensa.

Com o governo Bolsonaro, o ideólogo do quartel passa para primeiro plano e passa a contar também com políticos evangélicos e economistas neoliberais. Olavo nomeou dois ministros de Estado: o ministro das Relações Exteriores (Ernesto Araújo) e o Ministério da Educação (primeiro, por um breve período, Ricardo Velez e depois Abraham Waintraub). Isso trouxe uma tendência ideológica sem precedentes para essas agendas. Em um texto intitulado “Trump e o Ocidente”, o Sr. Ernesto Araújo escreve o seguinte:

“[A]o lado da política, no sentido normal de processo decisório estatal e tudo o que o cerca, percebe-se cada vez mais a existência e importância de uma metapolítica, ou seja, o conjunto de ideias, cultura, filosofia, história e símbolos que agem tanto no nível racional quanto no nível emotivo da consciência”.

Esse conjunto de ideias, no entanto, é estranho à modernidade. Contra a decadência do Ocidente, que conhece seu o seu ponto mais baixo no niilismo pós-moderno, Araújo propõe a retomada de uma agenda contrária aos valores da modernidade, ou seja, um movimento de retorno ao que ele considera o “patrimônio mítico do Ocidente", representada por ninguém menos que Donald Trump e sintetiza em seu discurso ao povo da Polônia. O que guia o Ocidente como nação não são os direitos humanos, a soberania do povo, a liberdade como um direito individual que deve ser protegido contra a opressão ou a igualdade; em vez disso, a nação ocidental é guiada pela fé em Deus. Mas por que Trump?

“Ao chamar por Deus, na praça de Varsóvia, Trump ataca o cerne da pós‐modernidade (…) esse Deus por quem os ocidentais anseiam ou deveriam ansiar, o Deus de Trump(…) É o Deus que age na história, transcendente e imanente ao mesmo tempo(…) Somente um Deus poderia ainda salvar o Ocidente, um Deus operando pela nação – inclusive e talvez principalmente a nação americana. Heidegger jamais acreditou na América como portadora do facho do Ocidente (…) Talvez Heidegger mudasse de opinião após ouvir o discurso de Trump em Varsóvia, e observasse: Nur noch Trump kann das Abendland retten, somente Trump pode ainda salvar o Ocidente″.

Não há argumento, no entanto, que apoie tal visão, uma vez que encontra sua base, segundo Araújo, na fé mais inexorável, e somente na fé e cultura que dela emana. De fato, toda a Teoria que guia o pensamento político moderno é superficial, prova da inanidade intelectual dos filósofos que, como anti-cristãos, fomentaram a Revolução Francesa. Assim, não é por acaso que, para os ideólogos do Bolsonarismo, o ponto alto da história do Brasil, aquele passado mítico ao qual, segundo eles, devemos retornar, se encontre entre os anos de 1806 a 1822, período em que a monarquia portuguesa foi transferida para o Brasil, a fim de salvar o cristianismo. Uma obra que ajuda a entender esse movimento de ideias é “Por que os a extrema direita brasileira ama a Idade Média Europeia,” de Paulo Pachá (Pacific Standard, 12 de Marzo de 2019).

Não é de surpreender, portanto, que a filosofia e a sociologia, assim como as humanidades, estejam sob forte ataque no Brasil pelo presidente Bolsonaro. A justificativa pública oferecida é orçamentária – eles priorizariam outras áreas, que apresentam como tendo maior potencial econômico. Ou seja, o governo estaria retirando recursos das Humanidades e investindo em áreas técnicas para proporcionar melhor retorno aos contribuintes e aos alunos. No entanto, o motivo não reconhecido não é diferente daquele que levou o ditador húngaro Viktor Orbán, um aliado de Bolsonaro, a tornar a continuidade da Universidade Centro-Europeia (CEU) inviável, uma tentativa de eliminar qualquer espaço onde os problemas do país são examinados e possíveis soluções debatidas.

A filosofia e a sociologia são as primeiras a serem atacadas porque, enquanto forem ativas e livres, a narrativa obscurantista da identidade nacional que gostariam de vender não prosperará. No mundo das ideias, tudo o que o governo Bolsonaro, seus servos e seu guru têm a oferecer, é o obscurantismo mais arrepiante, é mistificação e mentiras descaradas.

Assim como há uma única fé e um único Deus (mesmo sob disfarces diferentes), há também um outro, traiçoeiro, furtivo, disfarçado: o marxismo cultural, o comunismo, que se insinua desde a Epicuro

Olavo de Carvalho, como filósofo, é ridículo. Seus livros não têm nada verdadeiramente filosófico, mas apenas besteira, para usar a terminologia de Henry Frankfurt. Eles pega emprestado de pensadores irrelevantes de quinta categoria a fim de justificar uma salvação fácil, mas ilusória, tudo com um ar de grande profundidade. É uma promessa de iniciação e salvação para uma alma que se encontra perdida no meio de um materialismo que domina todos:

“O novo mundo espiritual emerge num panorama exterior de sinistra desolação. Somente o homem da fé pode enxergar ali a semente de um futuro glorioso. Para aqueles que o veem de fora, do ponto de vista do mundo antigo, ele promete nada além da escuridão, a dissolução dos valores sagrados do Império nas mãos das hordas de invasores bárbaros”.

Aqueles que veem o mundo de fora são aqueles que não foram tocados pela fé, são aqueles que seguem os caminhos da modernidade, da razão, da liberdade e da igualdade, da iluminação. Claramente, não há como entrar em um diálogo racional com quem está pregando. A filosofia não é entendida como diálogo, como um esforço conjunto de reflexão, como uma compreensão da experiência humana que busca sua expressão na forma de um conjunto de conceitos e ideias. Não é entendida como a atividade de julgar e compartilhar juízos, de buscar, juntos, orientações para lidar com as vicissitudes da existência em suas mais diversas figuras. Pelo contrário, aqueles que não são tocados pela mesma fé aparecem como inimigos, como infiéis.

Assim como há uma única fé e um único Deus (mesmo sob disfarces diferentes), há também um outro traiçoeiro, furtivo, disfarçado: o marxismo cultural, o comunismo, que se insinua desde a Epicuro. Mesmo antes de Bolsonaro tomar posse, as universidades públicas começaram a ser atacadas, sob a acusação de doutrinação, ou de disseminar a ideologia marxista-comunista. Que as universidades públicas brasileiras são responsáveis por 95% de toda a pesquisa e ciência que produzimos é algo que pode ser deixado de lado, dada a missão muito mais importante de salvar a alma da nação.

As universidades brasileiras são autônomas, então o governo Bolsonaro tem poder limitado sobre elas. As universidades, como instituições de ensino, respondem a uma estrutura legal independente e, nesse sentido, são relativamente protegidas da arbitrariedade de um governo autoritário.

O mesmo, no entanto, não pode ser dito da pesquisa que é realizada neles. Aqui o poder do governo é muito maior, pois controla a alocação de recursos. Filosofia, sociologia e humanidades certamente serão privadas de recursos para continuar toda e qualquer atividade de pesquisa e investigação.

A liga liberal-conservadora produz um aço firme, capaz de enfrentar a esquerda mesmo com o domínio que esta criou sobre a mídia e a academia

Nós, filósofos, sociólogos, intelectuais progressistas ligados às humanidades e às artes, vamos lutar com todas as nossas forças contra esse projeto ideológico que está sendo instalado. Nós devemos resistir a isso. Devemos nos opor vigorosamente, com crítica e discussão, ao projeto que o Ministro das Relações Exteriores define nos seguintes termos:

"O que está surgindo no Brasil e em outros países com outros formatos mas o mesmo espírito, como na Polônia, na Hungria e nos EUA de Trump, é justamente isso, o amálgama liberal-conservador, onde o anseio de uma economia aberta e a defesa das liberdades individuais se somam à promoção dos valores do patriotismo, da fé e da família (...)A liga liberal-conservadora produz um aço firme, capaz de enfrentar a esquerda mesmo com o domínio que esta criou sobre a mídia e a academia. (...) A força dessa liga provém, talvez, do fato de que ele corresponde à essência do ser humano, que quer ao mesmo tempo liberdade e segurança, prosperidade e orgulho de si mesmo, paz e aventura, alegria e transcendência” Araújo escreveu.

Com tal essencialismo, quem precisa de pensamento crítico? Afinal, por que correr o risco do indeterminado, diante da certeza tão bem assegurada? Para Araújo, conceitos como "democracia", "justiça social", "direitos humanos" são todos superficiais. Como se a essência humana, como definida aqui, fosse realmente profunda: uma liga liberal-conservadora que respondesse aos valores listados. Enquanto os estudantes militantes, respondendo ao chamado do presidente, filmam os professores na sala de aula, cujas palestras se opõem aos oficiais do governo, o Ministério da Educação, Abraham Weintraub, como amplamente relatado, declara abertamente que “comunistas” (i.e., todos aqueles que se opõem a seus pontos de vista) devem ser baleados na cabeça).

O Brasil tem numerosos problemas. O maior deles talvez seja determinar quem somos, para que possamos nos orientar juntos e deliberar sobre nosso destino e objetivos comuns. O Brasil ainda precisa ser constituído, como diz Benedict Anderson, como uma comunidade imaginada. Não faremos isso negando ou relativizando nosso passado de escravidão, nosso passado de autoritarismo político, especialmente a ditadura que nos estuprou por mais de 20 anos nos anos 60 e 70. Não faremos isso desprezando nossa cultura, nossa música e nossa literatura.

Nós não nos constituiremos como um povo sem o trabalho das humanidades, da filosofia, da sociologia, da história, da antropologia. O Brasil ainda pode voltar ao caminho que percorreu sob os governos de Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Luís Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff. Democracia não é fácil, não é simples, nunca é perfeita. A democracia não é fácil nem simples e nunca é perfeita. Há muito a ser dito contra cada um desses governos passados. No entanto, nenhum deles se distanciou nem um milímetro da democracia. Cada um deles viveu com forte oposição que respeitava. Aqueles que não se reconhecem nesse processo são os derrotados pela abertura política que pôs fim à ditadura.

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