
Os membros do parlamento votam para eleger o presidente da Assembleia Nacional durante a primeira sessão que teve lugar no dia 23 outubro 2015, na sequência das eleições gerais de 4 de outubro. AP Photo/Armando Franca
A política implica necessariamente estabelecer uma relação com os cidadãos. Logicamente, os políticos, para ser reconhecidos como tais, devem relacionar-se com os cidadãos. Contudo, isto tende a não acontecer. As vozes dos cidadãos são constantemente mal interpretadas, distorcidas ou ignoradas por aqueles que em primeiro lugar deveriam ter as suas necessidades como prioridade – e só depois governar.
Os efeitos negativos desta apropriação indevida tornam-se visíveis através de diversas formas. Em Portugal, adotou a forma de austeridade. Enquanto o Welfare State estava a ser reduzido drasticamente, a austeridade converteu-se na lei da terra. Tornou-se na norma, apesar de não terem sido dadas explicações convincentes. Não se terem realizado consultas. Não ter havido debate. Alguma coisa se perdeu no processo que vai desde a crise à solução. Esta não é uma perda insignificante.
Os portugueses foram despojados do seu direito a fazer valer a sua opinião. As políticas que mudaram as suas vidas discutiram-se não em Lisboa, mas de maneira informal nos corredores das instituições europeias. Contudo, enquanto a crise perde força, Portugal parece estar a recuperar a sua voz como país soberano. Mais além duma frágil recuperação económica cujos benefícios não alcançaram ainda aqueles que suportaram o peso da austeridade, o verdadeiro motivo de celebração é a troca de ideias que está a ter lugar. A austeridade pode ser ainda a lei da terra, mas agora a mesma está a ser posta em questão.
O estado da nação
O governo português já cumpriu mais de 100 dias no cargo. António Costa, o atual primeiro-ministro, conseguiu ser nomeado para o cargo fazendo bom uso dos seus dotes maquiavélicos de negociação. Entretanto, um novo Presidente da República foi eleito, outro banco foi resgatado pelo Estado e Bruxelas deu luz verdade ao orçamento de estado, depois dum escrutínio insuportável.
A austeridade, outrora tida como um mal menor, está agora a ser posta em causa. E o governo português está a ter um role preponderante neste âmbito. Ao decretar o aumento do salário mínimo de 505 para 530 euros, comprometendo-se a reverter a redução das pensões e os cortes nos serviços públicos, o Executivo está a enviar uma mensagem clara a Bruxelas: o lugar de Portugal como membro da União Europeia não está em causa, mas Portugal não abdicará da sua soberania nacional nem colocará em perigo o bem-estar dos seus cidadãos. Os dias de silenciosa aquiescência e de submissão económica chegaram ao seu fim. O debate sobre as questões políticas volta a ir mais além do seu valor económico.
Portugal está a abandonar o seu role como estudante obediente. Depois de sete anos de dizer que sim a tudo, Portugal já teve suficiente. A austeridade trouxe com ela grande miséria. Fragmentou a sociedade. Mas ainda pior que não ter trabalho, não ter dinheiro e não poder beneficiar-se dos serviços sociais é não tê-lo porque assim o exige Bruxelas.
Um governo conservador foi o responsável por governar Portugal durante um período difícil. Os desafios eram enormes, mas o governo não esteve à altura. O Welfare State foi parcialmente desmantelado e a desigualdade aumentou de forma exponencial. Os banqueiros e os políticos foram resgatados. Os cidadãos não.
Mudança de Maré
Limitando-se a atuar como porta-voz de Bruxelas, o anterior governo não fez esforço algum por explica a situação aos cidadãos. As ameaças de catástrofe eminente e duma União Europeia em ruinas foram as únicas razões dadas para justificar a renuncia à soberania nacional. O governo não abriu nenhum debate interno. Simplesmente pôs em prática as medidas que foram impostas. Obedeceu a ordens.
A austeridade foi, muito provavelmente, um erro. Mas não explicar o tema aos cidadãos, ou sequer tentar fazê-lo, supôs um elevado custo para Pedro Passos Coelho. Apesar de ganhar as eleições legislativas de outubro passado, a sua coligação conservadora foi superada por uma aliança de esquerda formada pelos socialistas, pela extrema esquerda e pelos comunistas. Ondeando a bandeira contra a austeridade, a oposição prometeu o final dos cortes e dos sacrifícios sociais.
A cobertura informativa dos acontecimentos que levaram à formação do atual governo falhou uma mais chegada a hora de identificar a verdadeira notícia. Muitos jornalistas acusaram erroneamente o atual primeiro-ministro, António Costa, de falta de legitimidade para governar. Outros, acusaram-no justamente de ser manipulador e eticamente desonesto. Poucos, contudo, se deram conta da janela de oportunidade que de repente se tinha aberto.
Por primeira vez em muito tempo, os políticos estavam a praticar política. Termos económicos como “produtividade”, “eficiência” e “déficit” mantiveram-se, obviamente, no centro do debate, mas desta vez tiveram que partilhar o protagonismo com outras questões, como o que é melhor para o futuro dos portugueses, ou o que é melhor para o futuro do país.
Pensar em termos económicos pode ser a regra geral no nosso tempo, como reconheceu Tony Judt. Mas não foi sempre assim. António Costa pode ser um político maquiavélico que usa táticas eticamente duvidosas, mas esse é outro debate. Enquanto a este, António Costa acaba de abrir uma janela que muitos poucos tinham denunciado que se tinha fechado.
Mudança política?
Seria precipitado dizer, contudo, que este é o fim da austeridade. A austeridade, como se vê refletido no Orçamento de Estado, continua a ter um grande peso nos assuntos públicos em Portugal. Mas deixou de ser hegemónica.
Como era de esperar, a austeridade foi o principal tema político antes das eleições. Também acabou por ser o tema principal depois das mesmas: o que reflete que o Executivo está a ter em conta as ansiedades dos cidadãos. Isto não se deve aos desejos e interesses de alguém em particular, mas sim porque a situação política assim o exige. António Costa enlaçou o destino do seu governo ao fim da austeridade. Não cumprir com esta promessa custar-lhe-ia a posição como primeiro-ministro. O êxito convertê-lo-ia numa alternativa credível – o que muitos consideram um inevitável mal menor. Seja qual for o resultado, a decisão esta vez será tomada em Lisboa, não em Bruxelas.
A canalização da oposição à austeridade poderia explicar-se em termos de aritmética parlamentaria. Ninguém nega esta possibilidade. Mas muito poucos estão a prestar a devida atenção ao que se encontra mais além do bom e do mau da austeridade. Recuperar a soberania conventicularmente delegada numa força política externa é necessário para que Portugal possa pôr fim à polarização e sarar as suas feridas. Independentemente do resultado do debate, o importante é que o mesmo exista.

O Comissário Europeu para Assuntos Económicos e Financeiros Pierre Moscovici, esquerda, conversa com o ministro das Finanças Português Mario Centeno no Ministério das Finanças, em Lisboa, dia 10 Março 2016. AP Photo/Armando Franca
Mais além da austeridade
O debate sobre a austeridade não podia ser mais oportuno. Países europeus, tais como Portugal e a Grécia, suportaram políticas económicas que não foram nem discutidas nem explicadas de forma adequada. As deficiências destas políticas são claras, e deveriam ser analisadas – especialmente aquelas que afetam o bem-estar dos cidadãos e a coesão das nossas sociedades. O fracasso chegada a hora de se relacionar com as ansiedades e os medos dos cidadãos, e de escutá-los, é um assunto muito sério numa democracia. Ignorá-lo por completo e substituir a vontade coletiva por uma voz fabricada numa reunião informal noutro lugar é ainda pior.
Contrariamente à estratégia do Executivo anterior, o atual primeiro-ministro de Portugal está a ter em conta as ansiedades existentes. Por necessidade política? Talvez. Mas o que começou como uma oposição de base à austeridade já superou a austeridade em si mesma. A questão agora consiste em decidir em que tipo de sociedade queremos viver. Qual é o futuro do Welfare State? Como pode o projeto da União Europeia, ao que os Europeus devemos tanto, ser uma vez mais posto em marcha? Estas preguntas estão há muito tempo no ar, mas só alguns as estavam a discutir.
Esta vez, os políticos estão-se a mobilizar em função dos interesses dos cidadãos, e não ao contrário. Também temos que apreciar a ironia de como um primeiro-ministro que foi acusado de pôr a sua supervivência política por cima dos interesses do seu país, pode ter aberto a porta para a mudança. O mais importante, mais além de aonde leva esta porta, é que a mesma tenha sido aberta. Determinar como terminará o debate seria um exercício especulativo. Pode terminar em nada. Ainda assim, que o mesmo exista é sem dúvida mais produtivo do que não falar de política – ou discuti-la exclusivamente em termos económicos. Apesar de que este tipo de política à que fomos expostos em teoria apresenta respostas para tudo, na prática, não se relaciona com ninguém.
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