
O jornalismo é muito mais do que likes
As boas histórias – tal como as boas notícias – ajudam-nos a entender o mundo, as outras pessoas e os problemas que nos são comuns. Español

“Os livros não foram feitos para serem acreditados mas para que os questionemos. Quando lemos um livro, devemos perguntar a nós próprios não o que diz mas o que significa.”
-Umberto Eco
A inspiração surge nos momentos mais inesperados. Estava eu no supermercado, já preparado para pagar, quando ouvi três vozes a discutir Os Maias. Para quem não leu o livro, estamos a falar de uma das obras mais importantes e influentes da cultura portuguesa. Fazendo uso de uma crítica social impiedosa da sociedade portuguesa e dos seus tipos humanos e sociais, Eça de Queirós expõe um país virado para si mesmo, fechado e incapaz de superar o pessimismo e o desalento. Um país entregue a umas elites sociais e políticas que habitam um mundo parado e diletante, demasiadas vezes sem destino, que ajuda a explicar como chegámos aonde chegámos. Uma obra que analisa a influência da educação na formação pessoal dos indivíduos, e que nos lembra que o mundo pode ser trágico e cómico ao mesmo tempo.
Mas os miúdos no supermercado não falavam de Carlos ou de Maria Eduarda, os personagens principais. Também não discutiam o papel de João da Ega, que desempenha o papel de boémio romântico como ninguém, nem sobre o Ramalhete, o Hotel Central ou a Toca, lugares incontornáveis da narrativa queirosiana. Uma das vozes, que rapidamente atribui a um aluno de secundário, explicava aos seus colegas como era possível ter uma óptima nota sem ler o livro. Tive dezoito, dizia orgulhoso. Os seus colegas pareciam surpreendidos, e perguntavam-lhe como tinha conseguido tal proeza. Afinal, eles tinham visto o filme e não passaram dum treze.
Devo confessar que ao princípio esbocei um sorriso. Não estou habituado a ouvir miúdos desta idade demonstrar qualquer tipo de interesse em Eça de Queirós, ou pelo menos a falarem do tema em público. Contudo, fui revisitando a conversa durante o dia, e pouco a pouco o optimismo transformou-se em pessimismo. Independentemente de serem obrigatórios ou não nas escolas, os Maias são uma obra obrigatória para entender um passado que continua a falar aos nossos dias. Comecei então a pensar no que não estamos a fazer para convencer os mais novos que há coisas que podemos aprender com a boa literatura que não podemos aprender nas redes sociais. Dei por mim, finalmente, a pensar no trabalho dos jornalistas e comentadores políticos, e como temos muito pouco que oferecer aos leitores quando somos incapazes de explicar porque há histórias que vale mais a pena contar do que outras.
Os novos desafios emergem desde dentro, dum ciclo de notícias em contínua mutação e duma sucessão de acontecimentos exibidos de forma aleatória e descontextualizada que aborrecem, confundem
Vivemos num mundo onde muitas pessoas evitam as notícias. Muitas delas não confiam nos meios de comunicação. Outras queixam-se que as notícias sobre os grandes problemas que não propõem soluções são deprimentes. Outras tantas confessam que as notícias lhes provocam ansiedade e que tem um efeito negativo no seu dia-a-dia. Surpreendentemente, os inimigos da democracia já não são unicamente os autocratas, as organizações criminosas e os fundamentalistas aos que já nos tínhamos habituado. Os novos desafios emergem desde dentro, dum ciclo de notícias em contínua mutação e duma sucessão de acontecimentos exibidos de forma aleatória e descontextualizada que aborrecem, confundem e acabam por impedir a maior parte dos espectadores de entenderem o que se está a passar e de desenvolver uma opinião fundamentada.
Tendemos a acreditar que os problemas que nos são apresentados todos os dias nos telejornais poderiam ser solucionados facilmente se tivéssemos bons políticos, bons funcionários públicos e bons comunicadores. Não se fala da dificuldade que supõe mudar a forma de pensar nem da necessidade de construir melhores instituições em vez de suspirar por líderes messiânicos. Esquecemo-nos que os meios de comunicação não decidem o que é a realidade, mas simplesmente seleccionam aquilo que consideram que é mais importante e que merece mais atenção por parte dos leitores. Que há muitos temas que não entram no ciclo de notícias por falta de interesse, pela sua suposta complexidade ou pela simples falta de curiosidade, enquanto outros como as gafes, o sensacionalismo e o futebol dispõem dum lugar cativo.
A realidade é que o jornalismo não foi reinventado nestes últimos anos pelos jornalistas, mas sim pelos gigantes tecnológicos. Graças a eles nada permanece exclusivo durante mais de dois minutos, e os trending topics e o Chartbeat substituíram o critério editorial, a agenda política e social e o valor da reflexão e da análise exaustiva. Organizações como o BuzzFeed e o Breitbart não têm qualquer respeito pelas regras do jornalismo ou por cultivar um espírito critico, e alimentam-se das facilidades que Mark Zuckerberg oferece para manipular e confundir. Mas, contrariamente ao que pensa o fundador do Facebook, existem valores que transcendem opiniões individuais e que devem continuar a reger a forma como fazemos jornalismo. Se quisermos saber se está a chover, não ligamos aos nossos amigos a perguntar pelo tempo. Como jornalistas, a primeira coisa que fazemos é olhar pela janela. As notícias não são aquilo que os governos querem que sejam, mas também não podem ser aquilo que Silicon Valley acha que devem ser.
Convém lembrar que notícias alteram as percepções, e que muitas vezes, as percepções se tornam realidade. Ao vivermos num contínuo estado de crise, acabamos por acreditar que nunca estivemos pior e que estamos perante uma batalha entre o bem e o mal. Esta percepção impede-nos de avaliar os problemas sistémicos e de identificar as realidades subjacentes. Leva-nos a confundir as causas com as consequências, e a atribuir responsabilidades de forma arbitrária e irresponsável.
Este ecossistema também alimenta os mesmos líderes que queremos combater, proporcionando-lhes uma cobertura mediática sem precedentes
Este ecossistema alimenta os meios de comunicação, permitindo a muitos recuperar as suas audiências invocando a necessidade de se estar informado para enfrentar as forças populistas e nacionalistas que ameaçam as nossas democracias. Contudo, convém lembrar que este ecossistema também alimenta os mesmos líderes que queremos combater, proporcionando-lhes uma cobertura mediática sem precedentes. Podíamos pensar assim em muitos meios de comunicação como palcos abertos 24 horas para o Presidente dos Estados Unidos estar em contacto com os seus apoiantes, ou como plataformas para o novo populista da moda tirar proveito duma atenção mediática desmedida. Alguns meios de comunicação assemelham-se hoje aos partidos políticos. Querem mais visibilidade, mais leituras e mais partilhas, e estão dispostos a sacrificar o bom senso e os princípios editoriais para os conseguir. Perdem assim de vista a sua função social, e a noção do que é e do que não deve ser notícia.
Isto não invalida que muitos cidadãos cedam sem contemplações a sua capacidade de pensar, esperando que os jornalistas argumentem por eles, discutam por eles e acabem por indicar-lhes o que está certo e o que está errado num mundo complexo e interligado. Mas é sobretudo por este motivo que o jornalismo bem feito é tão importante. Para nos lembrar que há mais do que manchetes e do que problemas. Que também há histórias de êxito, de superação e de humanidade que merecem ser bem contadas. Que há valores que merecem ser cultivados e defendidos. Que há melhor e pior jornalismo, e que o primeiro deve ser defendido ante o segundo.
As boas histórias – tal como as boas notícias – ajudam-nos a entender o mundo, as outras pessoas e os problemas que são comuns a todos nós. As ideias que nos alimentam, os argumentos que construímos na nossa vida e como justificamos as nossas acções. Gostava de ter dito aos três alunos na fila do supermercado que há muito mais nos Maias do que personagens e palavras, tal como há muito mais do que likes no jornalismo.
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