democraciaAbierta: Analysis

O novo municipalismo e a esquerda latino-americana

Alguns exemplos se propõem a construir uma alternativa à política tradicional e desafiar a velha esquerda regional

Gabriel Silvestre Marilín López Fittipaldi
30 Janeiro 2023, 9.41
Representantes da Gabinetona. A partir da esquerda: deputada Áurea Carolina, ex-vereadora Cida Falabella, vereadora Bella Gonçalves e deputada regional Andréia de Jesus
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Tamás Gontijo Bodolay

A terceira edição da conferência Cidades sem Medo foi realizada na cidade argentina de Rosário entre 21 e 23 de outubro de 2022. Esta foi a primeira reunião presencial desde o evento inaugural realizado em Barcelona em 2017 que reuniu uma nova geração de políticos, ativistas, ONGs e acadêmicos, entre outros, para discutir os contornos e a direção do nascente “movimento municipalista global”. Desde então, ocorreram encontros regionais e uma segunda conferência online organizada em 2021.

A trajetória desse movimento mudou consideravelmente desde sua “estreia” em 2017, realizada no auge do processo “cidades pela mudança” que levou diversas plataformas cidadãs a serem eleitas para algumas das prefeituras das principais cidades da Espanha. Olhar para essa trajetória desde a América Latina permite analisar como este movimento tem tido um alcance além das fronteiras europeias e até que ponto tem sido capaz de provocar mudanças em políticas locais em um contexto turbulento que marcou a região na última década. Tendo em vista uma nova “onda rosa” de governos de esquerda latino-americanos que se consolidou nos últimos anos, também é importante questionar como este movimento se posiciona em relação a mudanças mais amplas na política nacional.

Uma onda de municipalismo latino-americano?

O novo municipalismo pode ser entendido como a expressão política de um movimento que é articulado fora das instituições formais, liderado por movimentos sociais, coletivos populares e cidadãos em geral, para construir uma alternativa à política tradicional que responda à precariedade urbana, desigualdade social, participação direta e mais autonomia na construção de projetos coletivos para o bem comum.

É compreendido como resultante dos protestos e mobilizações sociais que marcaram o final dos anos 2000 e início dos anos 2010 em muitas cidades ao redor do mundo (como a Primavera Árabe, o movimento dos Indignados da Espanha, o Occupy nos Estados Unidos, protestos estudantis no Chile, as demonstrações no Parque Gezi em Istambul e na Praça Syntagma em Atenas, assim como as manifestações de junho de 2013 no Brasil, entre outros) que expressaram sua descrença na ordem político-econômica vigente. Apesar dos contextos variados em que essas manifestações surgiram, o principal desafio seria, como reconheceram os acadêmicos Dikeç e Swyngedouw (2017), “passar das explosões de indignação para o lento processo de construir estratégias transformadoras sustentáveis” onde uma nova política urbana poderia ser “imaginada, praticada e universalizada”.

Em alguns casos, esse processo foi meteórico, com movimentos decidindo formar uma alternativa política e concorrer às eleições. Na Espanha, plataformas cidadãs e novos partidos políticos foram eleitos em várias cidades assim como adquiriram uma improtante representação no congresso nacional em 2015. O partido Barcelona en Comú tem estado na vanguarda desse movimento desde então – não menos depois do fim de muitas experiências em outras cidades nos anos seguintes – ao mesmo tempo em que articulou uma agenda internacionalista com outras experiências afins que resultaram na primeira conferência Cidades sem Medo de 2017. No palco com a prefeita de Barcelona, Ada Colau, na abertura do evento, estavam figuras-chave da emergente ”rede municipalista internacional”, incluindo representantes de três plataformas eleitorais latino-americanas recentemente formadas que tiveram graus variados de sucesso. Suas trajetórias ilustram como o municipalismo tem ganhado forma na região.

Sin miedo BCN

Conferência Cidades sem Medo 2017 com a prefeita de Barcelona Ada Colau no centro (em vermelho) com Áurea Carolina e Bella Gonçalves de Muitas (primeira da direita e segunda da esquerda), Caren Tepp do Ciudad Futura (segunda da direita) e Jorge Sharp do Valparaíso Ciudadano (quarto da direita)

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O Ciudad Futura é um partido-movimento estabelecido em Rosário, a terceira maior cidade da Argentina. Era uma das experiências de maior maturidade quando se formou a rede municipalista, tendo suas origens em dois movimentos separados atuantes nas periferias empobrecidas de Rosário por mais de uma década. A trajetória recente dos movimentos autonomistas na Argentina tem um precedente mais longo do que a maioria das outras articulações municipalistas, nascendo da profunda crise econômica e social que atingiu o país após a recessão econômica e o colapso social de 2001. Após consolidar programas voltados à educação, cultura e segurança alimentar, decidiu-se ocupar as instituições políticas para fortalecer sua atuação após o êxito em barrar um projeto imobiliário para a construção de um condomínio fechado que desalojaria a fazenda cooperativa do movimento e assentamentos populares próximos.

O segundo exemplo é personificado pelo prefeito Jorge Sharp, de Valparaíso, a principal cidade da segunda maior aglomeração metropolitana do Chile. Líder de movimentos estudantis locais, Sharp foi escolhido para representar a campanha independente liderada por cidadãos locais batizada por Valparaíso Ciudadano na candidatura a um cargo público em sua primeira tentativa. A mobilização nasceu da insatisfação popular catalisada por um grande incêndio que devastou parte da cidade em 2013. Cidadãos debateram e co-desenharam um programa de governo em reuniões abertas para as quais candidaturas independentes, principalmente de movimentos existentes, poderiam postular para liderar a campanha. Eleito para a prefeitura em 2016, Sharp posteriormente desertou do grupo e foi reeleito ao criar a plataforma municipalista Territorios en Red.

Por fim, a plataforma Muitas – como era originalmente chamada antes de mudar para Gabinetona – surgiu das manifestações de rua em Belo Horizonte, centro da terceira maior região metropolitana do Brasil, que espelharam as manifestações do país em junho de 2013. Nos anos seguintes, participantes de diferentes coletivos autônomos e os movimentos sociais articularam a ocupação de prédios públicos e exerceram pressão pos mudanças através dos canais de participação popular. Em 2016, a mobilização decidiu “ocupar a política” e criou a plataforma feminista, antirracista e pró-LGBTQ+ Muitas para concorrer às eleições municipais que resultaram em duas vereadoras. A plataforma foi hospedada pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e desde então elegeu uma deputada estadual e nacional enquanto ocupava as duas cadeiras na prefeitura.

A conferência Cidades sem Medo 2022

As três experiências constituem algumas das principais referências do novo municipalismo na América Latina. Eles têm atuado na rede Cidades sem Medo e o evento de outubro passado teve como objetivo demonstrar o crescimento do movimento na região. No entanto, seu alcance é limitado por seu ativismo localista, por estar fora dos grandes centros urbanos de seus respectivos países e pela volatilidade política no nível nacional. Portanto, é prematuro afirmar que exista uma “onda” de plataformas municipalistas na América Latina, pois os exemplos são poucos, mas a agenda discutida em outubro passado permite uma compreensão do conteúdo do movimento latino-americano.

A conferência Cidades Sem Medo de 2022 em Rosário foi organizada pelo Ciudad Futura e simbolizou sua ascendência como alternativa política na cidade. Segundo dados oficiais, atraiu 15.000 participantes e trouxe mais de 100 palestrantes conhecidos por seu ativismo político, principalmente da América Latina. Foram três dias de palestras, oficinas, eventos culturais e feiras em diferentes locais do centro de Rosário, além de visitas guiadas a atividades comunitárias do Ciudad Futura, cooperativas e iniciativas de outros movimentos sociais. Figuras importantes do Barcelona en Comú – como a prefeita de Ada Colau – e da Fundação Rosa-Luxemburgo participaram através de vídeos.

O ato de abertura contou com a presença de representantes do Ciudad Futura, Barcelona en Comú, Valparaíso, Belo Horizonte e do governo nacional argentino. O fio condutor das intervenções foi como cada contexto respondeu a um cenário de “crise inter-relacionada em múltiplas escalas” (Júlia Miralles, Barcelona en Comú), desde “uma nova rodada de ajuste neoliberal à construção de alternativas à extrema-direita que não se pareçam com velhas formas” (Rodrigo Ruiz, Valparaíso). O novo municipalismo deve responder então, segundo Juan Monteverde, do Ciudad Futura, à construção do poder popular e da democracia direta cruzando as fronteiras em três frentes: entre países, ideológica e entre partidos, e entre instituições e pessoas.

Conferencia rosario

Palestra de abertura: América Latina do medo à esperança. Sentados da esquerda: Pedro Brieger (jornalista, moderador), Gerardo Pisarello (Barcelona en Comú), Caren Tepp (Ciudad Futura), Isabel Cortez (deputada peruana), Jorge Sharp (Valparaíso) e Mónica Benicio (vereadora do Rio de Janeiro

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Marilín López Fittipaldi

Os três dias reuniram uma ampla espectro de ativistas de movimentos recentes e antigos. Uma questão específica levantada em diferentes conversas foi até que ponto o novo municipalismo seria um rótulo apropriado ou até mesmo “novo”. Seu significado não é entendido automaticamente por muitos grupos e o termo ainda não ganhou expressão relevante nos debates políticos da grande mídia. Tendo em vista os temas do programa da conferência e algumas das organizações representadas, embora fosse claro que estavam ligados a agendas progressistas, era menos óbvio como seriam estes aspectos particulares de uma abordagem municipalista. O tom dos debates e as reivindicações apresentadas não ficaram, por exemplo, longe do conteúdo de encontros como o Fórum Social Mundial. Alguns grupos, como a Frente Pátria Grande - uma coalizão de diversos movimentos sociais na Argentina - destacaram o fato de que temas-chave municipalistas como democracia direta, empoderamento da cidadania por meio da participação ou proteção dos bens comuns eram itens pelos quais os movimentos latino-americanos lutam há muito tempo, especialmente desde o pós-ditadura vivido em vários países da região. No entanto, seu uso, pelo menos no caso de Ciudad Futura, tem sido estratégico para demarcar uma posição política diferente da esquerda tradicional e, assim, possibilitar a construção de um novo projeto capaz de se conectar a públicos mais amplos.

O evento foi encerrado com a apresentação da Carta de Rosário 4-3-3, um documento colaborativo que estabelece quatro princípios, três objetivos e três missões para consolidar a rede e os mandatos políticos municipais populares. Estes consistiam em: “democratizar a democracia e feminilizar a política”, “proteção e gestão social dos comuns” e “internacionalizar o novo municipalismo (princípios); fortalecer o movimento municipalista, empoderar territórios por meio da construção comunitária e desenvolver um ecossistema municipalista de políticas e instrumentos (objetivos); trocar conhecimentos e experiências por meio da criação de uma escola municipalista online, criar uma plataforma colaborativa municipalista e gerar uma estratégia de comunicação compartilhada para conter o avanço da extrema-direita. A experiência na América Latina foi afirmada por Gerardo Pisarello, do Barcelona en Comú, como um farol de esperança para a paralisia vista no Norte Global. Para Caren Tepp, de Ciudad Futura, o desafio comum é clamar por um “novo municipalismo latino-americano revolucionário”.

A onda rosa latino-americana 2.0

Se os três exemplos de novo municipalismo na Argentina, Chile e Brasil podem ser vistos como vetores, ainda que incipientes, de um nova abordagem política progressista na região, como se relacionam com os partidos mais tradicionais? Particularmente aqueles que retornaram ao poder nos governos nacionais, pelo menos em parte, e que foram especulativamente enquadrados como o retorno da “Onda Rosa”? Cada posição é particular ao respectivo contexto nacional, mas a interação teve consequências importantes para a direção de suas atividades.

A comparação é desafiadora, pois os resultados eleitorais foram variados: enquanto em Valparaíso Sharp comanda o executivo desde 2016, Ciudad Futura é um bloco independente com grande representação na Câmara de Rosário, ao passo que a Gabinetona é um bloco menor de oposição em Belo Horizonte. Em todos os três casos, as diferentes estratégias para concorrer à política, de movimentos partidários a plataformas cidadãs e o 'hacking' de um partido existente, constituíram uma mudança na política tradicional nas cidades relacionadas. Olhando em retrospecto, apesar do lento crescimento de sua representatividade, os três exemplos ocuparam uma posição dentro do campo de esquerda da política local, diminuindo ou desalojando o poder dos partidos de esquerda tradicionais. No entanto, sua capacidade para ganhar mais força também está relacionada aos rumos da política nacional.

Na Argentina, Ciudad Futura adotou até agora uma posição independente em relação à política nacional representada pela Frente de Todos, a coalizão de peronistas e kirchneristas que derrotou o governo neoliberal do ex-presidente Mauricio Macri nas eleições nacionais de 2019. No entanto, estabeleceu conexões importantes com representantes de movimentos sociais na base do atual governo de Alberto Fernádez. Uma conquista importante foi a inclusão da área de Nuevo Alberdi, reduto político do Ciudad Futura na periferia de Rosário, em um programa nacional de integração social e urbana de assentamentos populares, uma de treze iniciativas em todo o país. Entretanto, uma crise econômica marcou a maior parte de 2022 no país enquanto o governo voltava a negociações com o Fundo Monetário Internacional – trazendo de volta memórias de duas décadas atrás. A redução de gastos em políticas sociais abalou a base de apoio da Frente de Todos, com os movimentos sociais prestes a deixar a coalizão – processo interrompido pela tentativa de assassinato da vice-presidente Cristina Fernández de Kirchner.

A relação entre a política local de Valparaíso e a ruptura radical em nível nacional é mais estreita no caso do Chile. Jorge Sharp é aliado do presidente Gabriel Boric há muitos anos, um dos líderes dos protestos estudantis de 2011, mas não sem disputas ocasionais antes da eleição inédita da Frente Amplio de Boric para o governo nacional em 2021. Sharp se distanciou e seguiu uma posição independente desde os protestos do Estallido Social de 2019 e recentemente anunciou a criação de um novo partido político, o Transformar Chile. A organização é formada por prefeitos e vereadores que reivindicam a necessidade de ocupar um cargo com vínculos territoriais explícitos – ligados a associações de moradores, movimentos sociais, grupos indígenas – capazes de demonstrar o apoio popular a políticas progressistas que o governo do presidente Boric até agora tem vacilado – um processo afetado pelo referendo derrotado na aprovação uma nova constituição popular. A iniciativa de Sharp não é isolada. A esquerda chilena – tanto independentes quanto partidos tradicionais, como o Partido Comunista do Chile – também tiveram vitórias inéditas nas eleições locais de 2021 e formam um importante caldeirão para a ampliação de políticas municipalistas e progressistas. Um exemplo claro é o município da Recoleta de Santiago, administrado pelos comunistas, onde políticas municipalistas, ainda que não explícitas no uso do rótulo; incluem uma rede de farmácias cooperativas de baixo custo, uma universidade aberta, programas extracurriculares entre outros, que ganharam atenção por sua inovação.

As experiências municipalistas mostram o papel fundamental de se construir uma plataforma popular de baixo para cima

Por fim, a plataforma eleitoral da Gabinetona encontrou um ambiente político muito hostil com a ascensão da extrema-direita brasileira que levou à eleição do presidente Jair Bolsonaro para o governo 2019-2022. As experiências pioneiras com mandatos compartilhados em outras cidades diminuíram significativamente, enquanto as agendas progressistas foram atacadas pela política reacionária representada por Bolsonaro. A maioria dos partidos do campo político de esquerda, e logo após muitos do centro, gravitaram em torno da candidatura do ex-sindicalista e presidente (2003-2010) Lula da Silva para disputar as eleições nacionais de 2022. As representantes da Gabinetona gradualmente abraçaram a representação mais tradicional da esquerda brasileira, com alguns membros mudando para o Partido dos Trabalhadores (PT) de Lula. Integrantes da ampla coalizão democrática que o elegeu, as integrantes da Gabinetona participaram das equipes de transição relacionadas a políticas urbanas e culturais do novo governo. Embora o uso do rótulo municipalista seja menos evidente no caso brasileiro, ativistas esperam que o legado de rodadas anteriores de mudança política possa ser aprofundado, como os conselhos políticos temáticos que eram um canal de participação popular e que foram extintos em governos recentes ou mesmo orçamentos participativos apoiados na escala nacional – ambas inovações implementadas na escala local por governos municipais do PT das décadas de 1980 e 1990.

Apesar dos desafios que cada contexto apresenta para o avanço da agenda municipalista latino-americana, as experiências discutidas ajudaram a (re)introduzir temas-chave para o debate, renovando uma geração de ativistas e políticos. Para evitar as frustrações com a onda anterior de governos de esquerda, algumas lições podem ser tiradas das experiências municipalistas. Estes incluem o papel fundamental de se construir uma plataforma popular de baixo para cima capaz de dar suporte a políticas progressistas, superando o objetivo de meras políticas redistributivas para uma redistribuição de poder, descentralizando a tomada de decisões e a liderança política, ampliando o escopo para novas agendas e políticas, e transformando instituições para novos tipos de subjetividades políticas.

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