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Opinião pública no Brasil depois das campanhas de Trump e Bolsonaro

a plataforma republicana Trump 2016 marcou para sempre a história das campanhas nos Estados Unidos, e consequentemente outras partes do mundo, incluindo o Brasil. Español English

Arthur Ituassu
6 Dezembro 2019, 7.53
24 de setembro de 2019, EUA UU., Nova York: O presidente brasileiro Jair Bolsonaro (R) cumprimenta o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, antes de sua reunião na 74ª sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas
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Foto: Alan Santos/DPA/PA Images. Todos os direitos reservados.

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De olho nas próximas eleições, nos Estados Unidos, o Partido Republicano investe hoje por mês centenas de milhares de dólares numa enorme infraestrutura de dados, envolvendo comitês estaduais e locais, liderados pela campanha nacional Trump 2020. Todo esse aparato concentra ao menos um número de telefone ou endereço de email de cada cidadão ali cadastrado e é gerenciado por Brad Parscale, chefe de Comunicação de Trump e quem comandou a estratégia de mídias sociais em 2016. Na ocasião, causou espanto a nomeação de um profissional que nunca havia antes trabalhado com campanhas eleitorais, com perfil de especialista em marketing digital e estrategista de dados. Em entrevista para uma rede americana de TV, Parscale disse esperar chegar ao dia das próximas eleições com 50 milhões de eleitores em seu banco de dados.

Sob o comando de Parscale, a estratégia para o Facebook na campanha de Donald Trump em 2016 teve um papel central. Estima-se que a equipe republicana foi capaz de postar até 100 tipos diferentes de anúncios direcionados na mídia social, no espaço de 24 horas. Anúncios direcionados são postagens com mensagens específicas para cada eleitor ou grupo de eleitores. Para tanto, pode haver determinação geográfica – como no caso de uma região com mais empregados na indústria – ou, por exemplo, por tema supostamente priorizado pelo cidadão.

Com o mesmo sistema, a campanha consegue também fazer gradações de linguagem para públicos específicos sobre o mesmo assunto, podendo ir de um conteúdo conservador mais agressivo para um mais moderado, a depender do público. Além disso, muitas vezes um grupo específico de eleitores pode não saber o que outro grupo está recebendo. Estes são os chamados dark posts, postagens que não aparecem na página oficial da campanha, mas somente para quem foram enviadas. A partir do momento que uma postagem desse tipo é compartilhada, torna-se muito difícil descobrir sua origem. Com os dark posts, a campanha consegue mais liberdade para trabalhar conteúdos para audiências específicas, sem correr o risco de perder um ou outro público com mensagens mais polêmicas, de modo que grupos que poderiam ser sentir ofendidos não tenham ciência da postagem ou possam associá-la à campanha.

Seguindo os passos de autores tradicionais da Comunicação Política no Brasil e no mundo, este artigo discute modos como as mídias digitais vêm afetando as campanhas eleitorais e, nesse sentido, a própria política e a democracia. A discussão tem por base as campanhas de Donald Trump, em 2016, nos Estados Unidos, e de Jair Bolsonaro, em 2018, no Brasil. Ao fim do caminho proposto, serão feitas duas sugestões. A primeira é a ideia de “hipermediatização expandida”, como forma de se entender a configuração da comunicação política contemporânea.. A segunda é a noção de “atomização do público” ou "disrupção da esfera pública", como uma consequência da comunicação política digital para o desenvolvimento democrático das sociedades.

Por hora, é preciso lembrar de algumas coisas que aconteceram em 2016, nos Estados Unidos. Vale notar, a importância de se analisar o contexto norte-americano se reforça pelo fato de que o desenvolvimento das tecnologias de comunicação se dá em grande parte nos Estados Unidos. Quando candidatos e partidos, bem como profissionais de campanha e do noticiário, têm contato, no Brasil, com as novas tecnologias de comunicação, acabam tendo como referência as práticas já testadas por seus colegas na América do Norte. Não à toa, o campo da Comunicação Política apresenta a hipótese tradicional da "americanização" das campanhas, que sustenta que campanhas eleitorais em democracia de todo o mundo acabam por se tornar cada vez mais americanizadas, à medida que candidatos, partidos e jornalistas seguem as práticas de seus pares nos Estados Unidos.

Nesse contexto, a plataforma republicana Trump 2016 marcou para sempre a história das campanhas nos Estados Unidos, especialmente em relação às mídias digitais. Não se trata de feito pequeno, dado que ocorre após as duas eleições de Barack Obama, em 2008 e 2012, ambas vencidas com uso intenso da internet.

Na verdade, a história da internet nas eleições americanas já é bastante longa

Na verdade, a história da internet nas eleições americanas já é bastante longa. Em 1998, o lutador Jesse Ventura, um outsider da política naquele momento, foi eleito governador do Minnesota pelo Partido Reformista, anti-establishment, com uso intenso da sua rede de e-mails, construída ao redor da comunidade de lutadores e eventos de luta. A rede foi utilizada para promover encontros de campanha, reuniões e comícios no estado.

Em 2000, a chapa democrata Gore-Liberman desenvolveu um chat online, para interagir com eleitores. Na época, uma inovação nas campanhas presidenciais. Quatro anos depois, em sua reeleição, o republicano George W. Bush abriu um canal de perguntas e criou o famoso website "Kerry Gas Tax Calculator", que calculava, pelo número de litros, quanto a mais iria custar a gasolina com o plano do adversário de aumentar os impostos sobre o combustível.

Uma forma simples de ver a crescente importância da internet nas campanhas presidenciais americanas é "seguir o dinheiro". Em 2000, o senador republicano John McCain fez uma campanha e arrecadou pela internet US$ 500 mil em 24 horas. Ao todo em sua corrida presidencial naquele ano, McCain recebeu online US$ 6,4 milhões por meio da internet, ou 25% do que gastou em toda a campanha.

Em 2003, em corrida nas primárias democratas, Howard Dean e sua rede de blogs (Dean Nation, Change for America, Howard Dean Call To Action e Blog for America) arrecadaram US$ 20 milhões pela internet ou 40% dos gastos da campanha. John Kerry, que acabou ganhando a nomeação do partido, arrecadou em 2004 US$ 89 milhões online, ou 33% de todos os seus gastos.

Em 2008, Barack Obama levou os números a outro patamar. Sua primeira campanha presidencial arrecadou US$ 750 milhões, um recorde histórico nos Estados Unidos e mais da metade do que conseguiu seu oponente republicano, John McCain. Do total, Obama recebeu US$ 500 milhões via internet e mais de US$ 400 milhões a partir do que a campanha chamou de "esforço digital", isto é, quando a doação se dá após comunicação via e-mail, mídias sociais, telefone celular ou em contato do eleitor com alguns dos websites da campanha. Em 2008, Barack Obama obteve 3,95 milhões de doadores únicos.

Em 2012, o modelo da campanha Obama foi repetido, mas com muito mais gente online. Para se ter uma ideia, o democrata tinha no dia da eleição, em 2008, pouco mais de dois milhões de "amigos" no Facebook. Quatro anos depois eram 32 milhões. No Twitter, eram 125 mil seguidores no dia da eleição e 22 milhões, na reeleição. Apesar da grande arrecadação republicana em 2012 – a plataforma de Mitt Romney ultrapassou os US$ 990 milhões –, a cena principal ocorria no lado democrata, com Barack Obama se tornando o primeiro candidato presidencial americano de um bilhão de dólares, com a arrecadação de US$ 1.072,6 milhões, com 4,4 milhões de doadores e mais de US$ 500 milhões via "esforço digital".

Quatro anos depois, a campanha vitoriosa de Donald Trump em 2016 e suas estratégias de comunicação digital geraram uma relativa apreensão sobre os impactos da Web para os contextos eleitorais e a democracia em geral. A campanha, por exemplo, atuou de forma polêmica com relação à qualidade da informação que circulou na esfera pública durante o pleito. Além disso, foi marcada pelo sucesso de formas questionáveis de discurso no ambiente digital, pelo uso de dados ilegais e pela possibilidade de influência externa a seu favor.

Nas mídias sociais, a campanha de Donald Trump foi marcada, como já dissemos, pela escolha de Brad Parscale para o comando das ações nesse terreno. Parscale é chamado de o primeiro consultor "puramente digital" a liderar uma importante campanha presidencial nos Estados Unidos e centrou sua estratégia na importância do Facebook, inclusive sobre os anúncios na TV.

O estrategista comandou um esquema fordista de produção de memes. A equipe dividiu a produção dos recursos (texto, imagem, vídeo, links) de modo a criar um número grande de variações e distribuí-las de forma automatizada nas mídias sociais. Um comentarista tradicional das eleições nos Estados Unidos afirmou que nunca tinha visto uma campanha política ter construído um sistema para o Facebook na mesma magnitude que a de Trump em 2016.

Um dado polêmico do sistema desenvolvido, no entanto, como já comentamos, foi o uso dos chamados "dark posts”, ou seja, postagens que não aparecem na página oficial da campanha no Facebook, mas somente para quem o post foi diretamente enviado. Foi particularmente importante para a plataforma Trump o envio de determinadas mensagens de conteúdo negativo sobre Hillary Clintor a certos grupos de eleitores mais propensos a votar nos democratas, como mulheres, negros e trabalhadores da indústria de alguns estados-chaves. As mensagens foram enviadas com o intuito de desmobilizar esses grupos a votar na candidata democrata.

Nesse contexto, mais da metade do gasto da campanha Trump com mídia foi em mídias digitais. A plataforma republicana gastou e arrecadou no total menos que Hillary Clinton – os democratas arrecadaram US$ 1.191 milhões, os republicanos, 646,8 milhões – mas Trump investiu no Facebook mais que a candidata democrata.

Nesse contexto, estimativas apontam que mensagens da campanha Trump foram três vezes mais retweetadas e cinco vezes mais compartilhadas no Facebook que aquelas de Hillary Clinton. Um dos pontos ressaltados da estratégia nas mídias sociais foi a maior capacidade dos republicanos de controlar a pauta do noticiário (set the news agenda). De acordo com um executivo da campanha, uma das principais estratégias de Trump foi “manter as coisas tão rápidas e falar tão alto – literal e metaforicamente – que a mídia e as pessoas não conseguiriam acompanhar”.

Casos como a imitação de Trump de um repórter com necessidades especiais do New York Times, ou seu questionamento ao passado militar de John McCain, ou mesmo as acusações de assédio sexual contra ele, que poderiam ter minado qualquer campanha em outros contextos, não se consolidaram na agenda movida pela “comunicação rolo-compressor” de Donald Trump.

Não à toa, o uso do Twitter pelo candidato (e pelo presidente) tem um papel central em sua comunicação, permitindo a Trump um contato direto com o público sem os filtros do jornalismo e dos jornalistas

Não à toa, o uso do Twitter pelo candidato (e pelo presidente) tem um papel central em sua comunicação, permitindo a Trump um contato direto com o público sem os filtros do jornalismo e dos jornalistas.

Além disso, a plataforma fez uso intenso de bots – automated social media accounts –, robôs usados para impulsionar postagens artificialmente. Como afirmou um comentarista, os robôs acabam por “fabricar consensos”, ao amplificar artificialmente o tráfego ao redor de um candidato ou questão. O Instituto Oxford de Internet encontrou evidências de uma quantidade muito maior de conteúdo pró-Trump e propaganda contra Hilary Clinton disseminado de modo automatizado. De acordo com um relatório do Instituto, a proporção das mensagens automáticas de Trump em relação às disparadas pela campanha de Hilary foi de 5 para 1. Com isso, a campanha republicana também conseguia ter seu conteúdo de mídias sociais coberto constantemente pelo jornalismo norte-americano. Estima-se que, no geral, Trump foi pelo menos 15% mais coberto pela jornalismo que Hillary Clinton no período do pleito.

Ao mesmo tempo, a estratégia de mídias sociais da campanha Trump esteve conectada a uma estratégia de Big Data, em especial a partir da contratação da empresa Cambridge Analytica pela campanha. Segundo o site da firma, encerrada em 2018, a Cambridge Analytica era uma "empresa de comunicação estratégica", cuja missão era “usar dados no intuito de modificar o comportamento do público”. Nascida de um modelo criado na Universidade Cambridge por Michal Kosinski, por meio do qual analisa-se o perfil do usuário a partir de rastros que o mesmo deixa no mundo digital, a Cambridge Analytica (C.A.) armazenava perfis de eleitores em grandes bancos de dados e por meio deles oferecia "direcionamento individual psicológico". Criada em 2013, a empresa participou de 44 campanhas nos Estados Unidos até que, em junho de 2016, foi contratada pela campanha Trump para assumir todas as operações com dados.

Além de auxiliar no direcionamento das mensagens, a C.A. identificou para a campanha que tipo de mensagem estava ressonando e onde, de modo a influenciar o calendário de viagens do candidato. Se houvesse uma grande quantidade de mensagens, curtidas ou compartilhamentos de um artigo, por exemplo, sobre imigração, em um certo condado da Pensilvânia, a campanha colocava o local na agenda de viagens de Trump e o candidato faria por lá um discurso sobre o tema.

No modelo eleitoral dos Estados Unidos, em que um punhado de swing states pode definir o resultado geral, a importância dessa estratégia não deve ser desprezada. Como se tornou público, a Cambridge Analytica fechou suas portas após o escândalo do vazamento ilegal de informações de 50 milhões de cidadãos americanos no Facebook, noticiado pelo jornal inglês The Guardian, em 2018.

Mas não foram somente dark posts, robôs e Big Data os elementos que marcaram a campanha de Donald Trump em 2016. Outro ponto importante foram as fake news. É verdade que, desde que o tema se tornou público, uma grande controvérsia se estabeleceu em torno do termo "fake news", que muitos autores consideram equivocado, preferindo denominar o fenômeno como "desinformação". Ao ver deste artigo, há os dois tipos de problema, sendo as fake news informações falsas em formato de jornalismo, originadas em sites que falseiam identidade jornalística. Por outro lado, desinformação são aquelas informações falsas ou controversas sem fonte propriamente dita ou assinadas por fontes falsificadas.

Em julho de 2016, por exemplo, um website de notícias falsas chamado WTOE 5 News publicou em seu site e compartilhou no Facebook que o papa Francisco havia demonstrado “inequívoco apoio” a Donald Trump para a Presidência dos Estados Unidos. A postagem, talvez a fake news mais representativa do momento, obteve mais de um milhão de compartilhamentos.

Além de se disseminarem preponderantemente pelas mídias sociais, as fake news parecem, ao menos no contexto de 2016 nos Estados Unidos, mais ligadas a eleitores conservadores. Estima-se que houve pelo menos 40 milhões de compartilhamentos de notícias falsas no Facebook durante essas eleições, com três vezes mais notícias falsas pró-Trump que pró-Clinton. Além disso, estimativas sugerem que as notícias falsas pró-Trump foram quatro vezes mais compartilhadas que notícias falsas pró-Clinton.

Um pesquisador do fenômeno chegou a sugerir que as fake news mais populares podem ter superado as notícias reais em termos de compartilhamentos em 2016 e que 75% dos americanos adultos que tiveram contato com uma notícia falsa acreditaram que era verdadeira. Donald Trump retweetou uma reportagem falsa que indicava que seu apoio entre os trabalhadores da indústria norte-americana (blue-collar workers) era o maior entre todos os candidatos à Presidência nos Estados Unidos desde Franklin Roosevelt. Eric Trump, Kellyanne Conway e Corey Lewandowski, todos ligados ao candidato, retweetaram uma reportagem do website de notícias falsas abcnews.com.co, que afirmava que Hillary Clinton havia contratado gente para causar tumulto nos comícios de Trump.

No Brasil, o uso das mídias digitais em campanhas eleitorais também não é recente, assim como a utilização de robôs ou a presença de notícias falsas, que já apareceram em pleitos ou eventos políticos anteriores, como as manifestações de 2013 ou o assassinato da vereadora da cidade do Rio de Janeiro Marielle Franco, em março de 2018. De fato, a partir de 2010 tem início no país a chamada segunda fase das campanhas online, caracterizada pela queda de restrições legais e pelo uso intensivo de recursos digitais.

De fato, o Brasil chega às eleições de 2018 com mais de 110 milhões de cidadãos com acesso à internet, ocupando o terceiro lugar entre os países com maior número de usuários do Facebook e o sexto, entre os do Twitter. Além disso, para 2018, as restrições legais às campanhas online foram reduzidas, em função das novas regras editadas pelo Congresso Nacional em 2017 (Lei 9.504/97), que passaram a permitir o chamado "impulsionamento de conteúdo", como forma de propaganda paga na internet.

Nesse contexto, um dos elementos digitais que chamaram a atenção foram os robôs. Um relatório publicado entre o primeiro e o segundo turno do pleito apontou que as interações provocadas por robôs no Twitter chegavam a 10,4% do total, com 13,8% entre os apoiadores de Bolsonaro. Os robôs em prol do candidato movimentaram 70,7% das interações automatizadas naquele momento, no Twitter. Nesse ponto da eleição, havia uma média de 1,5 milhão de tweets por dia sobre os candidatos. Entre 10 e 16 de outubro, houve 852,3 mil publicações de robôs, 602,5 mil na base de apoio de Bolsonaro, segundo a Diretoria de Análise de Política Públicas, da Fundação Getúlio Vargas (DAPP/FGV).

Com relação às fake news, elas aparecem mais ligadas, no contexto brasileiro, ao WhatsApp do que ao Facebook e muito caracterizadas mais como "desinformação" que "notícia falsa"

Com relação às fake news, elas aparecem mais ligadas, no contexto brasileiro, ao WhatsApp do que ao Facebook e muito caracterizadas mais como "desinformação" que "notícia falsa". Um monitoramento feito pelo jornal El País, em setembro de 2018, em três grupos públicos de WhatsApp favoráveis a Jair Bolsonaro, afirma que dois deles distribuíam desinformação de forma notória. Na ocasião havia pelo menos 100 grupos públicos de WhatsApp a favor do candidato.

Entre os casos que se tornaram públicos, ainda no período eleitoral, estão a suposta fraude nas urnas eletrônicas, no primeiro turno; as ligações de Manuela D´ávila (PCdoB), candidata a vice-presidente na chapa de Fernando Haddad (PT), com Adélio Bispo de Oliveira, o criminoso do atentado que esfaqueou Bolsonaro em plena campanha; a acusação de que o candidato Fernando Haddad teria feito apologia ao incesto em um de seus livros; a acusação de Joice Hasselmann, na ocasião candidata a deputada federal, de que um importante órgão de imprensa teria recebido R$ 600 milhões para atacar a candidatura de Jair Bolsonaro; o texto divulgado por Eduardo Bolsonaro indicando que o grupo “Mulheres Unidas Contra Bolsonaro”, no Facebook, teria comprado sua base de mais de um milhão de usuários de uma página qualquer já existente; e o polêmico kit gay, apresentado pelo próprio Jair Bolsonaro em entrevista ao Jornal Nacional. Bolsonaro se referia ao livro "Aparelho Sexual e Cia - Um guia inusitado para crianças descoladas", escrito por Helène Bruller e ilustrado pelo cartunista suíço Phillipe Chappuis, indicando que o mesmo teria sido distribuído nas escolas públicas brasileiras pelo Ministério da Educação.

No contexto brasileiro, não foi utilizada uma tática de propaganda no Facebook como fez a campanha de Donald Trump. Não há indícios de uma grande campanha de anúncios pagos pela candidatura Bolsonaro, nem mesmo de ações relevantes de microdirecionamento nessa mídia social. Na verdade, o político chega às eleições de 2018 com um posicionamento consolidado no Facebook, trabalhado ao longo de anos, e bem superior ao de seus adversários.

Um monitoramento que fizemos na PUC-Rio, por exemplo, em 2014, levantou o número de postagens e a média de interações no Facebook de oito deputados federais do estado do Rio de Janeiro em campanha, na época, para a reeleição, entre eles Jair Bolsonaro. Em nossa análise, Bolsonaro apresentou média de interações (curtidas, comentários e compartilhamentos) 29 vezes maior que o segundo colocado na lista, com, na época, quase 30 mil interações por postagem. Durante as eleições de 2018, segundo a DAPP/FGV, a campanha Jair Bolsonaro conseguiu alcançar em uma única transmissão um pico de 1,3 milhão de interações e 6,6 milhões de visualizações.

Assim, diferentemente do contexto norte-americano em 2016, quando o Facebook foi o centro da campanha de Donald Trump, o WhatsApp alcançou uma relevância maior no Brasil de 2018. O aplicativo de troca de mensagens criptografadas, entretanto, não oferece publicidade. Nessa rede, a mensagem (teoricamente) só se dissemina se os usuários passarem espontaneamente o conteúdo à frente. Além disso, a legislação eleitoral proíbe o envio de mensagens em massa e para números que não foram voluntariamente cedidos às campanhas. Em rede, essa infraestrutura de propaganda se torna de fato eficiente, do ponto de vista da comunicação, quando há uma coordenação entre os administradores dos grupos e a militância voluntária.

Com relação à campanha de Jair Bolsonaro, há discussões acadêmicas e legais sobre a criação de grupos gigantes de militantes, em paralelo com um sistema de ferramentas sofisticadas bancado (ilegalmente) por empresários brasileiros. Nesse contexto, o jornal Folha de S. Paulo publicou, em 18 de outubro de 2018, entre o primeiro e o segundo turno do pleito, que alguns empresários estavam financiando campanhas a favor de Bolsonaro pelo WhatsApp, com contratos de até R$ 12 milhões. Um ano depois, o jornal paulista trouxe uma declaração oficial do próprio aplicativo de que houve, na eleição brasileira, "a atuação de empresas fornecedoras de envios maciços de mensagens, que violaram nossos termos de uso para atingir um grande número de pessoas". O caso está hoje no Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

Vale ressaltar, não se trata de dizer que Jair Bolsonaro foi eleito por causa do WhatsApp, ou Donald Trump, por causa do Facebook ou das fake news. Eleições de figuras políticas como Bolsonaro e Trump não se explicam com poucas variáveis. São inúmeros os elementos por trás dessas vitórias, que se espalham pelos campos da política e da democracia, da economia, dos valores sociais, familiares e individuais etc., tudo isso em meio a um sistema de comunicação fragmentado e complexo, composto por um número variado de atores e mídias. Bolsonaro, por exemplo, não foi somente forte em termos de presença digital (no WhastApp, Facebook e Twitter), como ganhou ampla cobertura dos telejornais e da mídia jornalística em geral com o episódio da facada. Além disso, se beneficiou do antipetismo atrelado aos escândalos de corrupção e à operação Lava Jato.

Mesmo assim, as mídias digitais são, sem dúvida alguma, um elemento novo que afeta de forma tremenda as campanhas eleitorais e, na verdade, a própria política e a democracia. Não à toa, as campanhas online têm sido um importante objeto de estudo de pesquisadores de Comunicação Política no Brasil e no mundo. Pipa Norris, por exemplo, da Universidade Harvard, sugere a ideia de "campanhas pós-modernas" ou "comunicação política pós-moderna". Enquanto no período moderno, a televisão foi o centro da comunicação política, com a profissionalização do marketing político e a crescente importância das pesquisas de opinião, tudo isso pensado estrategicamente a partir de um centro de comando, o momento pós-moderno apresenta um sistema de campanha permanente, um ambiente multivariado e fragmentado de mídias e atores e um eleitorado de comportamento mais volátil.

Philip Howard, do Instituto Oxford de Internet, classifica as campanhas eleitorais atuais como "hipermidiáticas", cuja característica central seria o uso de dados. As campanhas "hipermidiáticas se desenvolvem nos meios digitais, com anúncios dirigidos distribuídos via internet. Nesse contexto, o cidadão que tradicionalmente consome conteúdo político se torna também um potencial produtor e disseminador de mensagens. Uma campanha hipermidiática distribui conteúdo selecionado para audiências selecionadas e a propaganda computacional é um dos seus elementos principais, com uso intenso de dados do eleitor.

A "hipermediatização expandida", assim, se constituiria de uma campanha permanente com uso de dados e mídias sociais em meio a uma complexidade midiática que exige variados tipos de comunicação política (pré-moderna, moderna e pós-moderna) gerenciados de modo independente, mas coordenados como um todo de forma complementar. Dados levantados por pesquisadores do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital (INCT.DD), a partir de números do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), mostram que as despesas de comunicação dos candidatos a deputado federal no Brasil em 2018 foram de quase R$ 15 milhões em impulsionamento de conteúdo nas mídias digitais, mas de R$ 140 milhões com publicação de materiais impressos, incluindo o famoso "santinho", e mais de R$ 80 milhões com militância e mobilização de rua.

Como esse tipo de comunicação política pode afetar a democracia? Que consequências pode trazer aos processos democráticos no Brasil e no mundo?

Como esse tipo de comunicação política pode afetar a democracia? Que consequências pode trazer aos processos democráticos no Brasil e no mundo? Em 1927, uma série de palestras que o filósofo norte-americano John Dewey proferiu um ano antes no Kenyon College, em Ohio, foram publicadas sob o título "The Public and Its Problems" ("O público e seus problemas", ainda sem tradução para o português). Dewey, na obra, apresenta a importante noção de "eclipse do público".

Segundo o filósofo, a complexidade do mundo moderno e suas inúmeras formas de afetar as sociedades teriam levado o "público" – para Dewey, o elemento central da autogovernância democrática – ao seu eclipse. Perdido na dinâmica multifacetada da vida moderna, o "público" não consegue se formar na deliberação sobre interesses "comuns", não constituindo assim uma "comunidade política" de fato. O fenômeno traria prejuízos para a democracia a partir da ideia de descolamento entre a política e o desenvolvimento social da modernidade.

Quase cem anos depois, a formação do "público", que propõe e debate seus problemas comuns, parece continuar sendo um problema. No entanto, hoje talvez menos por causa da complexidade da vida moderna e mais por causa de sua fragmentação ou "clusterização" em muitos e variados mini-públicos. Não se trata de câmaras de eco ou bolhas, que dizem mais respeito ao aspecto informacional do cidadão. Trata-se de comunicação disruptiva que constrói comunidades políticas que pouco se conectam, muitas vezes construindo realidades políticas paralelas. De tão pouco interdependentes, essas realidades se tencionam quando se encontram no espaço público, muitas vezes descambando até para a violência. Esse é o fenômeno que chamamos aqui de a "disrupção da esfera pública".

De fato, durante a era moderna da comunicação política, um dos principais receios da filosofia política foi a famosa "tirania da maioria", quando uma maior parte dos cidadãos, por se constituir de uma maioria, poderia impor prejuízos democráticos a uma minoria. No contexto da democracia de massa centrada na televisão e nos surveys de opinião pública, quanto mais clara a maioria, mais os políticos adaptariam seus posicionamentos e discurso a esse maior número de eleitores. Nesse modelo, importa pouco o que se pensa sobre qualquer questão a não ser o que a maioria pensa, o que não necessariamente pode ser o mais correto, como sugeriu em 1922 outro importante filósofo norte-americano, Walter Lippmann.

Hoje, o perigo vem menos da política seguir as maiorias do que da capacidade de certos agentes políticos de criar suas próprias minorias, por meio da comunicação política digital e direcionada. Basicamente, não importa que a maior parte da população seja contra a desregulamentação das armas, por exemplo, o importante é que, no fim, o político reúna um grande número de minorias ao seu redor no momento do pleito. Dessa forma, é possível reunir aqueles interessados na preservação dos valores da família com aqueles que apoiam a desregulamentação das armas, aqueles ultraliberais na economia com aqueles contrários ao politicamente correto, às políticas de gênero progressistas ou mesmo ao discurso de preservação do meio ambiente. Com relação à democracia, a ameaça hoje não é mais da tirania da maioria. O perigo hoje vem da tirania das minorias construídas por meio da comunicação política digital.

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O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

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