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Os direitos das mulheres no mundo em desenvolvimento: os construa, e eles virão?

Valerie Percival
5 Maio 2014

Moçambique é uma terra de contradições.

Mulheres participaram ativamente na luta pela independência. Fortes lideranças cívicas femininas, como Graça Machel, participam ativamente na vida pública. Além disso, o governo apoia incondicionalmente normas internacionais sobre igualdade das mulheres, tais como a Plataforma de Ação de Beijing e os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio. Até mesmo a página da internet da ONU em Moçambique afirma com orgulho que "no país existe um quadro jurídico, politico e institucional favorável para a promoção das questões de género e empoderamento das mulheres.” 

No entanto, Moçambique continua a ser um lugar muito difícil para meninas e mulheres. As taxas de alfabetização de mulheres, seus níveis de escolaridade e de pobreza, e os seus índices de saúde são alarmantes. Abusos sexual e físico são generalizados. O país tem uma das maiores taxas do mundo de casamento infantil. Agressão sexual em escolas é comum, tanto por parte de garotos como de alguns professores que exigem sexo como condição para melhora de notas.

Claramente, os direitos de mulheres e meninas não são respeitados, protegidos ou sequer compreendidos. 

Ações recentes do Parlamento de Moçambique ressaltam esse ponto. Uma reforma do Código Penal, em clara violação dos direitos fundamentais de mulheres e meninas, foi objeto de debate no Parlamento em dezembro passado sem sinais de dissidência. O mais chocante: a presidente do Parlamento e 39% dos parlamentares são mulheres. 

O artigo 223 do código proposto é intitulado "Efeitos do Casamento." Ele define que um estuprador não será processado se ele se casar com a vítima menina ou mulher, desde que permaneça casado com ela por cinco anos. Outros elementos problemáticos incluem a falha em reconhecer o estupro conjugal, a não-conformidade com a definição internacionalmente reconhecida de criança como aqueles menores de 18 anos, a falta de reconhecimento de discriminação com base em orientação sexual e definições incompletas de assédio sexual.

Espera-se que o artigo em questão não constará na versão final do Código Penal. Grupos da sociedade civil organizaram um protesto. Doadores se opuseram vigorosamente. Parlamentares canadenses em visita a Moçambique expressaram sua consternação. Em resposta a esta publicidade negativa, o presidente da Comissão Parlamentar alegou que trata-se de um mal-entendido – os elementos problemáticos do Código já haviam sido removidos há meses. O Parlamento só se esqueceu de divulgar tais mudanças. Sua resposta carece de credibilidade, mas é uma prova de que pressão funciona.

No entanto, resta aberta uma questão importante: como pode o Parlamento sequer ter considerado este artigo? Foi um descuido, o qual parlamentares o deixaram passar em uma longa e complexa parte legislativa? Ou um reflexo da cultura de Moçambique que os de fora não conseguem compreender? Ou uma rejeição de esforços nacionais e internacionais para promover a igualdade de gênero?

Manter artigo 223 não foi um erro. O Código Penal de Moçambique continua a ser um legado de Portugal, a potência colonial. O Código colonial incluía o artigo 223, mas este não era colocado em prática. Funcionários públicos revisaram o código e o enviaram ao Parlamento em 2008. Ativistas me asseguraram que a versão preparada por servidores públicos não incluía o artigo 223. Entre 2008 e 2013, o Parlamento debateu o texto do Código com líderes comunitários e religiosos. Só então o artigo 223 reapareceu. 

Mas por que adicionar esta cláusula? Alguns deputados argumentaram que a cultura de Moçambique justifica o artigo 223. Moçambique continua a ser uma sociedade patriarcal onde poligamia é comum, e meninas e mulheres são vistas como propriedade de suas famílias ou maridos. As vítimas de estupro – principalmente meninas – são frequentemente marginalizadas. Para apologistas culturais, permitir que o estuprador se case com suas vítimas lhes proporciona alguma proteção social e econômica.

Mas o que dizer a respeito do compromisso retórico de Moçambique com a igualdade de gênero? Será isso um sinal da indiferença nacional frente a igualdade de gênero? Ou será que a oposição da sociedade civil ao projeto mostra a força desse compromisso?

Combater patriarcalismo é esgotante. Grupos da sociedade civil de Moçambique merecem grande crédito por liderar a luta contra o artigo 223. Ativistas têm orçamentos extremamente limitados e são bastante criticados por seus esforços. Seu trabalho é solitário e difícil, sua batalha é definitivamente ascendente, e o resultado não é certo. 

Mas e quanto aos esforços internacionais para promover os direitos das mulheres, e apoiar este trabalho? Em Nova York e Genebra, representantes de países debatem normas progressivas que promovem igualdade entre homens e mulheres, identificam limitações para o empoderamento das mulheres, e reconhecem o sofrimento pelo qual passam meninas e adolescentes.

No entanto em países como Moçambique a comunidade internacional se concentra em indicadores: aumento do número de meninas na escola; de mulheres grávidas que recebem cuidados médicos; de mães em fase de amamentação que recebem tratamento antirretroviral; e o número de mulheres no Parlamento. Na era dos Princípios de Paris e dos ODM, financiamento é voltado para alcançar certos indicadores, e recursos percorrem canais governamentais – mesmo que estes governos sejam patriarcais. 

Esse processo cria um ‘esqueleto de igualdade de gênero.’ Uma estrutura institucional é criada (por exemplo, mulheres no Parlamento), e intervenções pontuais com vistas a construir uma sociedade mais igualitária (por exemplo, ao alcançar certos indicadores sobre educação de meninas e saúde materna). Portanto, aborda-se igualdade de gênero da seguinte forma – a construa, e ela virá.

No entanto, esta abordagem, de maneira conveniente, evita confrontar estruturas patriarcais e embates difíceis sobre comportamentos e papéis de gênero. Em alguns países islâmicos, onde grupos insurgentes usam a luta contra os direitos das mulheres como uma ferramenta de mobilização, essa abordagem pode ter benefícios estratégicos de curto prazo. Isso também garante a prestação de contas em programas de desenvolvimento. 

Mas em Moçambique e em muitos outros países ao redor do mundo, normas culturais e papéis tradicionais desvalorizam e denigrem mulheres e meninas, além de minar e restringir o seu status social, oportunidades de subsistência, comportamentos e liberdades.

Muitas vezes evitamos desafiar diretamente essas normas culturais por medo de sermos insensíveis às circunstâncias locais e desrespeitosos às tradições nacionais. No entanto, normas culturais não são vacas sagradas. Isso é especialmente verdade se elas prejudicam mulheres e meninas. Tampouco, a cultura é homogênea ou rígida – ela pode mudar. 

Portanto, para verdadeiramente promover igualdade de gênero, a comunidade internacional deve fazer mais do que pregar o evangelho em Nova York, enquanto silenciosamente define uma série de indicadores técnicos. Devemos em voz alta e de forma inequívoca promover a igualdade entre homens e mulheres e os direitos de meninas e meninos. Grupos nacionais devem receber o apoio financeiro necessário para liderar esta causa e facilitar o debate sobre as implicações de tais direitos.

Os direitos das mulheres nunca foram realizados sem luta. Essa luta talvez não seja agradável. Será desconfortável. E não pode ser encapsulada num gráfico sobre o progresso de indicadores. Ao contrário, como o artigo 223 demonstra, sem mudar mentalidades, podemos facilmente regredir. E isso é algo com que as mulheres de Moçambique e de outros países em desenvolvimento não podem arcar.

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