
Evo Morales, Nicolás Maduro e Rafael Correa. 2013. Flickr. Alguns direitos reservados.
O populismo latino-americano, tal como o conhecemos nos últimos dez anos, chegou ao seu fim. Enquanto outro tipo de populismo mais identitário floresce na Europa, o populismo latino-americano enfrenta-se ao final do seu recente ciclo de popularidade. Na Venezuela, os indicadores económicos negativos ameaçam a expansão dos direitos sociais enquanto se continuam a recortar os direitos políticos e a existência de uma imprensa independente. Esta combinação de crise e repressão faz que o regime do presidente Maduro se assemelhe cada vez mais a regimes autoritários clássicos de esquerda e direita, questionando assim sua caracterização como regime populista. Maduro, ao utilizar meios não democráticos para influir em resultados eleitorais, para deportar imigrantes e para incrementar as restrições aos meios, parece tomar a direção contrária.
A experiência venezuelana é um sinal de como estão a mudar os tempos. O populismo já não é o que era, e vai continuar a evoluir neste sentido. Uma tendência importante neste sentido é que os Estados Unidos, inimigo perpétuo dos populismos, tem unido o início da normalização das suas relações com Cuba a uma já muito longa indiferença para com a região (uma tendência acentuada pela administração de Barack Obama). Mas, se o inimigo externo já não atua como tal, como deve reagir o populismo? A resposta consiste em fixar-se nos inimigos internos, ao mesmo tempo que os vai criando.
A atual crise diplomática entre a Venezuela e a Colômbia, que é em grande parte resultado de problemas internos venezuelanos e, em particular, da utilização do nacionalismo e a repressão por parte do governo, é um exemplo desta mudança. A Venezuela acusou contrabandistas ou paramilitares colombianos dos ferimentos causados a três soldados venezuelanos durante um confuso incidente na fronteira. Depois fechou a fronteira, e deportou 1.000 colombianos. Além disso, mais de 10.000 colombianos saíram do país por medo a ser deportados. O Papa Francisco tem expressado a sua esperança em que se resolva a situação, estando a Argentina e o Brasil a mediar entre os dois países vizinhos. Mas, como é que um país, famoso pela sua promoção da integração latino-americana, esteja agora a deportar cidadãos que têm vivido no seu território durante muitos anos? Que significa isto para o estado atual do populismo e para sua natureza em mudança?
Sinais de esgotamento
Se o populismo, dada a sua legitimação democrática via eleições, pode definir-se em general como uma forma suave de autoritarismo político, os acontecimentos recentes na Venezuela mostram que está a perder a sua melhor metade. E, no entanto, o iminente declive dos governos populistas latino-americanos deve-se a uma mudança de maior calado.
A economia joga um papel determinante. Está a terminar-se um ciclo de expansão económica que permitiu a muitos governos latino-americanos distribuir rendimentos e ajudas sociais entre as classes médias e populares. Inicialmente, este ciclo permitiu a líderes populistas (na Venezuela, Argentina, Equador, Bolívia por exemplo) melhorar os níveis de vida de suas populações e ver então revalidado este avanço através de vitórias eleitorais. Mas a permanência prolongada no poder gerou vícios característicos: personalismo, clientelismo, corrupção, assédio à imprensa. Uma vez que a situação económica começou a deteriorar-se, esta alimentou uma crescente insatisfação e desacordo. Nestes momentos, as fórmulas do populismo político tremem desde dentro.
Na Argentina, há poucas semanas, as eleições para eleger o governador da importante província nortenha de Tucumán viram-se envolvidas pela manipulação e inclusive queima de urnas. Esta situação foi condenada pelo governo da presidenta Cristina Fernández de Kirchner na capital, Buenos Aires. Está claro que, o que na Venezuela se converteu numa regra, na Argentina é uma exceção. Mas faz alguns anos, isto teria sido impensável, quando líderes populistas ganhavam eleições livres e ratificavam as suas credenciais políticas sem necessidade de recorrer a tais ações.
A atual líder argentina, após a derrota do seu partido nas eleições ao congresso, reconheceu que carecia dos apoios públicos necessários para aprovar uma proposta de reforma constitucional que lhe tivesse permitido procurar a reeleição para um terceiro mandato. A presidenta dá agora seu apoio a Daniel Scioli, um candidato presidencial mais moderado, para as eleições de outubro de 2015. Scioli tenta, às vezes, sublinhar a sua independência do radicalismo retórico dos Kirchner (Cristina e Nestor, o seu imediato predecessor). De todas formas, a Argentina é muito diferente da Venezuela de hoje, e ações como a queima de urnas seriam bem mais difíceis de manejar nas províncias do centro como Buenos Aires, Córdoba e Santa Fé, onde vive a maioria da população argentina. Noutras palavras, o populismo na Argentina terá que se manter como uma opção democrática com acento mais pragmático, ou terá que desaparecer de cena.
Na Bolívia e no Equador, os partidos no governo estão a tentar prolongar seu ciclo no poder através da reeleição indefinida do presidente. Também estão a reforçar a simbiose populista entre o estado, o governo e o movimento. Ambos países contam com presidentes carismáticos como Evo Morales e Rafael Correia, mas terão também que admitir que, depois de tanto tempo no governo, tanta concentração de poder está a causar descontentamento e contestação interna.
No outro extremo do espectro político, o presidente populista de direitas Otto Pérez Molina, foi obrigado a demitir –e depois foi detido, depois de graves acusações de corrupção. A atual turbulência política no Guatemala tem raízes locais, sem dúvida, mas faz parte também de uma tendência mais ampla.
O próximo ciclo
O intenso presidencialismo das democracias latino-americanas está a converter-se numa roleta para governos que se aproveitaram dele durante a etapa de bonança económica. Conjuntamente com conflitos sociais provocados por uma recessão prolongada, os presidentes populistas veem como se deteriora ao mesmo tempo a sua imagem e os seus apoios eleitorais. A sua resposta consiste em acusar os suspeitos habituais: conspirações norte-americanas, meios nacionais e internacionais, direitas conservadoras. Mas nenhuma destas é a causa principal do problema. O problema consiste em que a receita populista de liderança vertical, com partidos no governo demasiado acostumados a conservar o poder e a não o largar, esgotou-se.
Os populistas, que chegaram ao poder para mudar a realidade, acabam por converter-se em verdadeiras forças conservadoras. Adoptaram inclusive a linguagem tradicionalista e nacionalista do poder oligárquico que prometeram substituir. Ressentidos pela sua incapacidade de proporcionar mais benefícios sociais, perdida a confiança de grupos sociais e cada vez mais perjudicados por causa da corrupção e outros prejuízos sociais, os populistas acabam por converter-se em defensores de um status quo inaceitável.
Mas não tudo são más noticias nesta história em movimento. Desde os anos oitenta os latino-americanos conseguiram superar estes ciclos conservadores populistas sem cair nos erros das etapas anteriores: rupturas institucionais lideradas pelos Estados Unidos, golpes militares sem piedade e repressão violenta. Agora que outro ciclo, com todas as sus desilusões, chega ao seu fim, o fator prometedor consiste em que a democracia e as sociedade latino-americanas tem muitos mais recursos para reformar as suas instituições e continuar ativos em defensa dos seus direitos civis, políticos e sociais.
Leia mais!
Receba o nosso e-mail semanal
Comentários
Aceitamos comentários, por favor consulte ás orientações para comentários de openDemocracy