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Pós-conflicto na Colômbia (14): Desvinculando crianças das FARC

Não é suficiente estabelecer um programa de reintegração das crianças desmobilizadas. É preciso entender que estas crianças são essenciais para a construção da paz. Español English

Paola González Cepero
6 Junho 2016
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Um polícia fala com as crianças antes da abertura de uma nova estação de polícia em La Uribe, ex-reduto da FARC no sul da Colômbia. 2009. AP Photo / Fernando Vergara.

Nas últimas semanas, os meios de comunicação, analistas e especialistas não pararam de falar dos desafios que se avizinham em relação à desvinculação das crianças das FARC-EP. Isto teve lugar no marco do comunicado conjunto que emitiu a Mesa de Conversações no passado dia 15 de maio. No mesmo assinala-se o acordo sobre a saída dos menores de 15 anos dos acampamentos desta guerrilha e o compromisso de elaborar um plano que facilite a desvinculação de todas as outras crianças assim como desenvolver um plano integral de atenção.

Apesar de existirem numerosos desafios, não deixa de ser uma oportunidade que não se deve desperdiçar. A Mesa Técnica, estabelecida no dia 19 de maio, encarregada da elaboração do protocolo para a saída dos menores de 15 anos dos acampamentos, do plano transitório de acolhida e da proposta do programa de atenção, deverá desempenhar uma papel fundamental para velar pelos princípios reitores em matéria dos direitos infantis, garantindo que os mesmos se cumpram.

Primeira Tarefa: Determinar o número total de crianças que serão desvinculadas das FARC

Desconhece-se quantas crianças fazem ou fizeram parte de grupos armados ilegais na Colômbia. Isto explicasse, de certa maneira, à pouca visibilidade do problema e à pouca vontade política das partes quando se sentam para “negociar a paz”. Mesmo quando existem grandes esforços das organizações internacionais e de entidades do Estado para transpor à esfera pública esta realidade, o tema ainda gera um certo mal-estar, especialmente devido aos erros cometidos no passado.

Os números do Observatório do Bem-Estar da Infância do Instituto Colombiano do Bem-Estar Familiar (ICBF), mostram que desde 1999 até 31 de março de 2016, 5969 menores de idade receberam assistência do programa de Atenção Especial para o restabelecimento de direitos às crianças y adolescentes (NNA) vítimas de recrutamento ilícito. Deste universo, as FARC são o grupo armado ilegal do qual se desvinculam a maior percentagem de crianças, 60% (3607 NNA), facto que exige um maior compromisso deste grupo para que entregue toda a informação disponível de todos os menores de idade que se encontram nas suas filas. Os 21 casos a resolver de forma imediata aos que se referiu “Iván Márquez” desestimam a magnitude do fenómeno. O país está à espera para saber quantos menores de 18 anos estão em poder das FARC para analisar o panorama e determinar o alcance do conflito armado colombiano sobre as crianças.

Por outro lado, e de acordo com números disponibilizados pela Unidade de Analise do Contexto da Procuradoria (DINAC), mais de 11.500 crianças foram recrutadas penas FARC entre 1975 e 2014, no contexto duma política sistemática de inclusão de novos combatentes, sendo o período da chamada Zona de Distensão o período de maior recrutamento de menores de idade para aumentar a força do grupo. As fontes analisadas que proporcionaram estes números foram os estatutos das FARC, os computadores confiscados aos diferentes líderes deste grupo, dispositivos USB e os documentos da 3ª e 7ª conferência, entre outros. Finalmente, a Procuradoria assevera que o Secretariado das FACR, formado por 7 comandantes e 32 chefes de frentes e blocos regionais são responsáveis pelos recrutamentos forçosos, que se encontra tipificado como crime de guerra.

O desconhecimento e a disparidade dos números impõem maiores desafios institucionais, não só para assistir a população que está mais próxima da desvinculação, mas também para caracterizar o fenómeno e elaborar recomendações mais adequadas às necessidades desta população.

Segunda Tarefa: Garantir os direitos das crianças e adolescentes para diminuir o risco de recrutamento.

Esta é a perspetiva de trabalho na que se baseia o documento do Concelho Nacional de Política Económica e Social sobre Prevenção, Recrutamento e Utilização de crianças e adolescentes, oferece uma visão mais amplia frente a este problema. Os direitos das crianças são vulnerados, de acordo com este documento, devido aos fatores de risco presentes no contexto familiar, comunitário e regional.

De acordo com este documento, algumas das situações que aumentam o risco de recrutamento e de utilização da população menor de 18 anos são: i) presença ou trânsito de grupos organizado à margem da lei e de grupos delitivos organizados; ii) presença de economias e atividades ilegais; iii) altos índices de violência familiar e intrafamiliar contra as crianças; iv) regiões deprimidas por baixos índices económicos e altos índices de marginalidade social, entre outros.

É preciso entender que existem condições de vulnerabilidade que tornam inevitável uma resposta integral por parte do Estado, das comunidades e das famílias nos territórios. Alguns dos contextos nos quais as crianças colombianas vivem, não são adequados para afasta-los do conflito armado. A diminuição dos fatores de risco e o fortalecimento do ambiente e redes de proteção serão indispensáveis para garantir e promover os direitos da infância.

Terceira Tarefa: Não esquecer as lições do passado

Durante o processo de desmobilização das autodefesas não se denunciaram nem se entregou a totalidade de NNA que se encontravam nesta estrutura armada. Vários destas crianças foram enviadas para as suas casas, sem que se restabelecessem os seus direitos ou processo algum de reparação por parte das entidades responsáveis.

De acordo com as estadísticas do ICBF, 963 (3%) das crianças foram desvinculadas das Autodefesas Unidades da Colômbia (AUC) durante os anos 2003 e 2006, numero muito baixo se calcularmos que 31.671 integrantes desta organização se desmobilizaram. Organizações como a Human Rights Watch afirmam que as autodefesas tinham à vilta de 20% de menores de idade nas suas filas, o que sugere que foram muito poucos os menores que pertenciam a este grupo que puderam ser atendidos pelo Instituto Colombiano do Bem-Estar Familiar (ICBF).

Para mitigar esta situação, e no cumprimento do mandato outorgado pelo Concelho de Segurança da ONU, especificamente a da comissão da verificação dum eventual abandono das armas e um cesso do fogo bilateral, devem estabelecer-se mecanismos de verificação e seguimento duma efetiva desvinculação de todas as crianças das FARC.

Experiências Internacionais 

De acordo com o Instituo de Estudo Internacional de Paz Kroc, somente em cinco países (Burundi, Libéria, Sudão, Nepal e África do Sul) se incluíram de forma expressa e especifica a perspectiva da infância nos acordos para a terminação de conflitos armados. Mesmo quando este tema se incluiu, a implementação dos acordos não cumpriu o seu objetivo perante esta problemática.

Por exemplo, no Acordo de Paz e Reconciliação Arusha para o Burundi, assinado no dia 28 de agosto de 2000, explicitasse a necessidade de promover o cuidado, bem-estar, saúde e segurança física de todas as crianças, prestando especial atenção à proteção contra o maltrato, abuso, exploração e utilização direta nos conflitos armados. Em 2002, o Governo de Transição, juntamente com a UNICEF, começou a desvinculação dos NNA que faziam parte das estruturas armadas; em dezembro de 2004, 2.261 criança tinham sido desvinculadas e reintegradas nas suas famílias e comunidades. Contudo, e apesar dos esforços por integrar este tema no acordo final em 2006 – quatro anos depois de ter sido assassinado --, o Secretário Geral da ONU pediu ao governo do Burundi trabalhar de imediato para pôr termo às violações recorrentes, matanças, detenções e recrutamento de crianças que mesmo após terem sido postas em liberdade e devolvidas às suas famílias, continuavam a sofrer os vexames da guerra.

Para o caso da Libéria, o Acordo de Paz de Accra, assinado no dia 18 de agosto de 2003, mencionava que o Governo Nacional de Transição deveria desenhar e implementar um programa para a reabilitação das vítimas da guerra (crianças, mulheres, adultos seniores e pessoas com invalidez), prestando especial atenção ao tema das crianças desvinculadas. Aproximadamente 15.000 crianças foram recrutadas pelas diferentes facções armadas que participavam no conflito. Devido à magnitude do problema, o acordo evidenciou necessidade de mobilizar recursos da comunidade internacional, especialmente da UNCIEF, do Comité Africano de Especialistas sobre Direitos e o Bem-Estar da Criança e outros mecanismos competentes para fazer frente às necessidades especiais da desvinculação e reintegração. Não obstante, e apesar de que os acordos supunham um tratamento diferencial, os NNA desvinculados participaram no mesmo programa de Desarme, Desmobilização e Reintegração (DDR) que os adultos ex-combatentes, aumentando desta forma os problemas para o restabelecimento dos seus direitos.

Estes exemplos demonstram ao que se poderiam enfrentar as crianças desvinculadas das FARC. Mesmo quando se leve a cabo o esforço de vincular o tema nos acordos de paz, é necessário ter em conta a magnitude dos desafios aos que se enfrentam não só as entidades competentes na matéria, mas também a sociedade em geral. Não é suficiente estabelecer um programa de reintegração somente para os desmobilizados ou um programa especial de atenção para as crianças que abandonem esta guerrilha; é urgente começar a pensar que as crianças desvinculadas supõem uma parte fundamental da construção de cenário de paz e reconciliação nos territórios.

Que se pode fazer?

O trabalho futuro é uma oportunidade para que o Governo Nacional e as FARC, e agora a Mesa Técnica, reflexionem sobre a percepção que se têm, desde a institucionalidade e do grupo armado, sobre a infâncias desvinculadas e se tomem decisões sobre:

- Os espaços institucionais e comunitários que devem dar resposta de forma equitativa àquelas crianças desvinculadas de todos os grupos armados ilegais.

- A responsabilidade das entidades governamentais, das famílias e das comunidades em estabelecer ambientes protetores e integra-los de forma digna na sociedade.

- As medidas que se devem adoptar para garantir a segurança, o restabelecimento de direitos e a reparação integral como vítimas, especialmente para evitar que voltem a ser recrutados por outros grupos ilegais.

Em relação a este último ponto, e ao rever o acordo sobre as vítimas do conflito, produz certa frustração que não se fale de forma explicita dos menores de idade que no futuro abandonarão as filas das FARC. O acordo faz referência à aproximação diferencia e de gênero, sublinhando as necessidades particulares das mulheres e das crianças vítimas do conflito, mas de forma geral. Mas este tema não pode ficar em meras intepretações: é necessário ter claridade sobre os protocolos de desvinculação, a rota de atenção e sobre os mecanismos que permitam garantir o reestabelecimento de direitos, entre outros.

A proteção das crianças e adolescentes desvinculados é um dever do Estado. Contudo, segundo o princípio de corresponsabilidade, a família e a sociedade em geral devem facilitar o disfrute efetivo dos seus direitos. São vários os esforços e chamadas de atenção que se fizeram desde diversos sectores para recomendar pontos específicos para trabalhar o tema, não só desde o marco das negociações com as FARC, mas também em cenários de construção de paz. 

O Provedor de Justiça, no seu relatório Vozes e Oportunidades para as crianças e adolescentes na construção da paz na Colômbia, recomenda:

- Às equipas negociadoras, para que estabeleçam, no marco da Mesa de Conversações, as condições, mecanismo e rotas de desmobilização, desvinculação, desarme e reintegração.

- Às FARC, para que entregue às instituições responsáveis do Estado, todos os NNA menores de 18 aos e que atualmente fazem parte das suas filas.

- Ao Governo, para evitar a invisibilidade dos NNA recrutados por esta guerrilha no processo de negociação e garanta a entrega de todos os menores de idade, para o restabelecimento dos direitos. Deve também flexibilizar a oferta institucional, de acordo com as condições necessárias para a entrega das crianças recrutadas. Especialmente, para que a população desvinculada possa desenvolver projetos de vida que não se enquadrem única e exclusivamente na educação técnica ou de empreendimento, senão que possam explorar e fortalecer as relações entre arte, cultura e paz nos seus territórios. 

- Aos meios de comunicação e entidades do Estado, para que estabeleçam medidas que evitem a re-vitimização e estigmatizaçao dos NNA desvinculados.

Estas são algumas das linhas que considera o relatório e que são fundamentais pata abordar o tema. Contudo, há outras intepretações que podem complementar esta aproximação. Desde há já algum tempo, tem se vindo a falar do conceito de reparação integradora, que considera a criança desvinculada como um cidadão como direitos e responsabilidades e em constante formação. Esta intepretação outorga-lhe uma conotação diferente aos processos de reparação, uma vez que deixa de entender as vítimas como agentes passivos e foca a sua atenção no desenvolvimento e fortalecimento da capacidade de agencia destes indivíduos com o objetivo de integrá-los nos seus territórios. Neste sentido, este processo não só deve ser abordado na sua dimensão individual, mas também na transformação das relações entre as crianças e adolescentes desvinculados e as suas comunidades.

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